12/06/2020 - 03:00
“Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E você, o que faz?” A tirada bem-humorada e atribuída ao economista britânico John Maynard Keynes costuma ser citada para ressaltar a importância de basear um ponto de vista em evidências. Esse compromisso com a busca da verdade ganhou uma nova dimensão em 2020, ano para sempre marcado como o da primeira pandemia globalizada. Os fatos nunca mudaram tanto e tão rapidamente para tanta gente em tantos lugares ao mesmo tempo. Para complicar esta situação de calamidade mundial, líderes de grandes países, como Brasil e Estados Unidos, vêm negando sistematicamente evidências científicas.
Neste momento único da história, quando temos uma doença que parece ter sido transplantada da Idade Média para a era digital, ÉPOCA decidiu ouvir nove estudiosos de renome mundial a partir de uma mesma premissa: o que aprenderam com a pandemia? Os entrevistados incluem nomes como o britânico Timothy Garton Ash, professor da Universidade de Oxford e um dos maiores especialistas em história da Europa; a ensaísta americana Camille Paglia; o filósofo francês Luc Ferry, um conservador que defende que a filosofia pode desempenhar o papel antes ocupado pela religião; Steven Levitsky, professor de ciência política em Harvard e autor do best-seller Como as democracias morrem; e a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, autora de biografias de Sigmund Freud e Jacques Lacan.
Em comum, todos os intelectuais — cujo contato foi viabilizado pela empresa de palestras Fronteiras do Pensamento — se dispuseram a analisar como a Covid-19 e a transformação dos fatos nos últimos cinco meses impactaram o mundo em que vivemos. Da política à economia, da filosofia ao comportamento, os principais campos que compõem a experiência humana foram analisados, sempre por um prisma interessante, nunca de maneira banal. Como era o desejado, não existe unanimidade. Há quem preveja uma guinada rumo a um planeta mais justo e a uma maior defesa do meio ambiente. Na mão contrária, argumentos igualmente sólidos preveem que a vida pós-pandemia vai ser idêntica à que levávamos antes. Não existe um ponto de vista correto ou errado, e a conclusão final cabe, como deveria ser e depois de muita reflexão, ao leitor. Bom proveito.
CAMILLE PAGLIA
“O VÍRUS REMOVEU A CAPA DE INVISIBILIDADE QUE COBRIA AS DIVISÕES SOCIAIS”
O que faz: professora da University of the Arts, é uma das mais influentes e controversas ensaístas contemporâneas. Crítica do feminismo e de correntes teóricas francesas que se tornaram influentes nas faculdades americanas nas últimas décadas, Paglia é uma intelectual interdisciplinar, que passeia pela filosofia, pela crítica de arte, pelas teorias da sexualidade, pela biologia, pela história e pelos estudos dos mitos e das religiões. É uma ferrenha crítica da esquerda americana e do que chama de “ideologia de gênero“. Participou em 2015 do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento
(depoimento a Ruan de Sousa Gabriel)
As gerações mais recentes se esqueceram de quão próximos sempre estamos do colapso da civilização. Todos os grandes impérios se pensavam eternos e viraram poeira. Essa lição tão importante se perdeu em nossa época moderna e relativamente afluente. A pandemia nos despertou para essa realidade.
Sou da geração do pós-guerra. Minha geração e as anteriores sabiam que, em períodos de guerra, até as culturas mais sofisticadas podem ser reduzidas à barbárie, à existência animalesca. As gerações mais recentes só conhecem a retórica política. Não têm nenhum contato com as engrenagens que trazem a comida a nossas mesas e fornecem os produtos que nos permitem desfrutar de vidas cotidianas seguras e prósperas.
Os jovens de hoje são tremendamente ingênuos e excessivamente politizados. Não sabem que a natureza é onipotente e não se importa com os indivíduos. Estão completamente apartados da economia real. Só descobriram que existia e como funcionava uma rede de abastecimento quando notaram que faltava papel higiênico nos supermercados. Eles não sabem como a sociedade funciona.
Formam uma classe média alta instruída, mas que não conhece ou respeita as classes trabalhadoras. Inesperadamente, o vírus removeu a capa de invisibilidade que encobria as divisões sociais. A classe média alta pode ir para casa trabalhar remotamente. Mas há corpos que continuam limpando as ruas e trabalhando nas fábricas.
A burguesia precisou sair de seu conforto e foi forçada a admitir que há coisas que ela não pode controlar ou comprar. Todo o seu sistema de crenças foi abalado. O coronavírus é um tremendo balde de água fria na arrogância da cultura burguesa ocidental. Não invejo os políticos que precisam tomar decisões sobre a volta ao trabalho e como equilibrar saúde e economia. Não sabemos se haverá novos surtos da doença quando a economia reabrir, apenas que as perdas serão maiores para os trabalhadores braçais e os pequenos comerciantes.
Nos Estados Unidos, a direita acusa a esquerda de promover histeria para minar as chances de reeleição de Donald Trump. A esquerda acusa a direita de se importar mais com a economia do que com a vida humana. Não importa o que os políticos façam. De todo jeito, eles serão culpados, porque é muito difícil equilibrar saúde e economia. Não há escolha que não resulte em um tipo de desastre.
Se a economia se desintegrar, haverá caos. E o único sistema político que emerge do caos, que é capaz de governar o caos, é o fascismo. É isso o que a história nos mostra. Se ignorarmos os alertas de colapso econômico, poderemos assistir também ao colapso das estruturas e dos procedimentos democráticos.
Suspeito que nos países mais afetados pelo vírus ocorrerá uma guinada ainda maior à direita. Porque a direita entende como funcionam o poder e a economia. Sabe como garantir o lucro das grandes empresas. O que a esquerda tem falado não é fundamentado nem na realidade nem na economia. É uma esquerda preguiçosa e arrogante, que vive numa bolha.
Não é bom que a direita seja a voz da razão enquanto os progressistas se refugiam em suas torres de marfim defendendo que a quarentena se estenda indefinidamente. Isso não é boa propaganda para a esquerda. O mais importante agora é pensarmos quais serão as consequências políticas a longo prazo desta pandemia. Precisamos ir além de especulações sobre quem vai ganhar esta ou aquela eleição. Nosso principal desafio é preservar a democracia.
O que aprendeu com a pandemia: as promessas da civilização e da economia modernas são frágeis. Enquanto a esquerda faz propostas sem fundamentação na realidade e na economia, a direita avança. A longo prazo, o desafio é preservar a democracia
vejam https://epoca.globo.com/sociedade/os-aprendizados-com-pandemia-na-visao-de-nove-pensadores-24474426
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