Lei de Diretrizes e Bases - A nova LDB e as necessidades educativas especiais

Lei de Diretrizes e Bases - A nova LDB e as necessidades educativas especiais



domingo, 31 de agosto de 2008
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Júlio Romero Ferreira*

São analisados os dispositivos referentes à educação especial na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que apontam uma ação mais ligada aos sistemas e programas do ensino regular. Indicam-se algumas implicações e perspectivas para a área, no contexto das reformas educacionais em curso.

O fato de a nova LDB reservar um capítulo exclusivo para a educação especial parece relevante para uma área tão pouco contemplada, historicamente, no conjunto das políticas públicas brasileiras. O relativo destaque recebido reafirma o direito à educação, pública e gratuita, das pessoas com deficiência, condutas típicas e altas habilidades. Nas leis 4.024/61 e 5.692/71 não se dava muita importância para essa modalidade educacional: em 1961, destacava-se o descompromisso do ensino público; em 1971, o texto apenas indicava um tratamento especial a ser regulamentado pelos Conselhos de Educação - processo que se estendeu ao longo daquela década.
 
É certo que o registro legal, por si, não assegura direitos, especialmente numa realidade em que a educação especial tem reduzida expressão política no contexto da educação geral, reproduzindo talvez a pequena importância que se concede às pessoas com necessidades especiais - ao menos aquelas denominadas deficientes - em nossas políticas sociais. Daí se entendem manifestações, comuns na área, de que postulam que a legislação fundamental já está dada e se trata de fazer cumpri-la.
São também comuns as preocupações com o caráter potencialmente discriminatório e segregador de leis e normas específicas para a área, mesmo quando se anunciam numa perspectiva discriminadora "positiva". Entendemos que a referência específica em uma lei geral da educação, mesmo que não fosse na forma de capítulo, ainda é importante em nosso país, onde o acesso à educação das pessoas com deficiência é escasso e revestido do caráter da concessão e do assistencialismo.
A presença da educação especial na Lei certamente reflete um certo crescimento da área em relação à educação geral, nos sistemas de ensino, principalmente nos últimos 20 anos. Na Constituição de 1988, que contém vários dispositivos relacionados às pessoas com deficiência (ver análise de Jannuzzi 1992), destaca-se, na educação, o inciso III do Artigo 208, definindo como dever do Estado o "atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino".
As Constituições estaduais, em grande medida, apenas repetem aquela formulação da Constituição Federal. Algumas acrescentam, nos capítulos relativos à educação, tópicos específicos de determinadas categorias (ex.: implantação de braile em classes da rede oficial) e de níveis ou modalidades de ensino (ex.: implantação de ensino profissionalizante). Algumas ainda incluem os superdotados no alunado da educação especial; a categoria de problemas de conduta ou condutas típicas não consta de forma distinta; e tampouco aparece a referência a "necessidades educativas especiais" (Oliveira e Catani l993, pp. 110-116). Nas leis orgânicas dos municípios, certamente terá aumentado a diversidade dos tratamentos dados à matéria e isso tem um significado particular nas discussões atuais.
É naquele momento de reforma constitucional, no final da década de 1980, que começam e chegam ao Congresso os debates sobre a nova LDB. Na Câmara, o projeto vai aos poucos incorporando as questões da educação especial. Em 1988, apenas o registro do que estava na Lei 5.692/71; na 2ª emenda, já em 1989, acrescenta-se o dispositivo constitucional; na 3ª emenda, também de 1989, passa a constar um capítulo específico destinado à educação especial (o mesmo acontecendo com educação indígena e de jovens e adultos). No relatório Amin e no projeto finalmente aprovado pela Câmara em 1993, é mantido o capítulo, cuja redação é alterada mais no sentido de reforçar a idéia constitucional da integração escolar.
A primeira proposta de Darcy Ribeiro no Senado, em 1992, ao desconsiderar em larga medida as discussões e o projeto da Câmara, recolocava os termos da Lei 5.692/71 e não trabalhava as diretrizes para a integração (Ferreira e Nunes 1997). É já na fase final das discussões do Senado que o projeto de Darcy Ribeiro incorpora algumas propostas pontuais advindas da Câmara, inclusive o capítulo sobre educação especial, praticamente com a mesma redação.
Dermeval Saviani (1997) interpreta os limites da nova LDB principalmente como omissões, pelo fato de ela não incorporar dispositivos que apontem para a necessária transformação da estrutura educacional. Para esse autor, ela é mais indicativa do que prescritiva e não contém o conjunto de reformas que se está fazendo para além dela, antes e depois de sua aprovação pelo MEC. A ausência do que se concebera no Projeto da Câmara como um sistema nacional de educação elimina possíveis instâncias de articulação com a sociedade (Pino 1995) e, a nosso ver, pode dificultar a inserção da educação especial nos debates da educação geral - até por ser uma área de presença relativamente recente no âmbito da educação escolar básica e por não se constituir em prioridade nas políticas educacionais, até aqui. Assim, as perspectivas político-institucionais da educação especial, pelo menos a curto prazo, dependem da sua inserção no âmbito das várias reformas que estão ocorrendo e vão ocorrer num prazo relativamente curto, contexto no qual a LDB é mais um momento importante dos embates políticos, do que a expressão da síntese possível dos mesmos.
De todo modo, o texto contém aspectos importantes para a educação especial, além da parte específica, que também constituem desdobramentos de itens da Constituição, como as disposições sobre educação infantil. A flexibilidade dos critérios para admissão e promoção escolar, aspecto identificado como positivo por Demo (1997), pode ser também benéfica para a escolarização de alunos com necessidades especiais.
Nas disposições específicas sobre a educação especial, o Artigo 4º define como dever do Estado o "atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino" (inciso III). A referência às necessidades especiais amplia o alcance do dispositivo constitucional de 1988, que se referia apenas aos portadores de deficiência. A categoria de necessidades especiais aparece pela primeira vez no texto da Câmara (relatório Amin e no projeto aprovado em 1993), de modo a englobar os portadores de deficiência e os superdotados - estes apareciam no projeto original e foram retirados em 1989, com a adoção da redação do Artigo 208 da Constituição. O parecer Cid Sabóia, aprovado no Senado em 1994, incluiu os alunos com problemas de conduta nos portadores de necessidades especiais. A versão final mantém a categoria ampla mas não mais especifica quem são os educandos com necessidades especiais ou quais são essas necessidades - apenas mantém uma referência pontual, em um inciso, à deficiência e à superdotação. O Ministério da Educação vinha trabalhando, em seus documentos, com a indicação de que o alunado considerado especial inclui os educandos com deficiência, condutas típicas e altas habilidades. Essa postura incorpora a preocupação de que não se tenha na educação especial um recurso paliativo para o fracasso escolar, em certa medida legitimando os equívocos do ensino regular (posição registrada na Assembléia da Reunião da Anped, em 1991), o que tenderia a ocorrer com a utilização de categorias muito abrangentes. A referência às necessidades educativas especiais, acompanhando tendência internacional que se fortalece principalmente com a Declaração de Salamanca, de 1994, merece maior atenção a fim de confrontar as leituras e discutir as implicações de uma eventual revisão das próprias noções de aluno e educação especiais. É o desafio de conhecimento e práticas desenvolvidos nos espaços identificados com a educação especial, integrar contribuindo para a educação geral, sem criar novos espaços para acomodar mais uma vez procedimentos de segregação em nome da necessidade de um ensino especializado; e, de outra parte, sem reduzir a problemática da deficiência à dimensão do ensino.
O capítulo V ("Da Educação Especial") caracteriza, em três artigos, a natureza do atendimento especializado. De modo geral, configura-se a perspectiva positiva de uma educação especial mais ligada à educação escolar e ao ensino público. Nesse sentido, o texto preserva os avanços contidos no projeto da Câmara (Ferreira 1994 e Mazzotta 1996). No Artigo 58, caracteriza-se a educação especial como modalidade de educação escolar, destinada aos educandos portadores de necessidades especiais (definição que, para Saviani, apresenta um "caráter circular, vago e genérico" (1997, p. 218). Prevê-se, nos parágrafos 1º e 2º, a existência de apoio especializado no ensino regular e de serviços especiais separados quando não for possível a integração ("em virtude das condições específicas dos alunos"). A redação preserva a idéia de um continuum de opções mais ou menos restritivas, cuja disponibilidade se definiria tendo por base as características pessoais dos alunos. Se é fato que a presença de determinadas características individuais exige apoios ou programas especializados na educação, também sabemos que não chegamos a desenvolver no Brasil, em termos gerais, modalidades combinadas ou intermediárias de atendimento que atenuassem a segregação. Se a legislação se fixar de modo dominante nas características pessoais e deixar em segundo plano as condições do sistema de ensino, pode ser dificultado o surgimento de programas menos restritivos.
Destaca-se no mesmo artigo a oferta da educação especial já na educação infantil, área em que o atendimento educacional ao aluno com necessidades especiais é ao mesmo tempo tão escasso quanto importante. Certamente a expansão recente do atendimento em educação infantil no Brasil, já incorporando parte das crianças com necessidades especiais - pelo menos em alguns municípios -, é um marco muito significativo. O capítulo sobre educação infantil, contudo, é bastante sucinto e limita-se praticamente a afirmar que ela se dá de zero a seis anos, em creches e pré-escolas. A presença da educação especial no espaço da educação infantil poderá ser mais bem avaliada no triênio 1997-1999, prazo concedido pela lei para que as creches e pré-escolas se integrem aos respectivos sistemas de ensino.
O Artigo 59 aponta as providências ou apoios, de ordem escolar ou de assistência, que os sistemas de ensino deverão assegurar aos alunos considerados especiais. Aqui, combinam-se as idéias de flexibilidade e de articulação, seja na questão da terminalidade específica no ensino fundamental (para os considerados deficientes) e na aceleração (para os considerados superdotados), seja na educação para o trabalho (a ser propiciada mediante articulação com os órgãos oficiais afins). Especificamente em relação aos alunos portadores de deficiência, reconhece-se a necessidade de assegurar validade e continuidade para os estudos realizados em condições ou instituições especiais, inclusive de formação profissional. Note-se que a forma como a educação profissional é tratada na Lei (capítulo III) pode favorecer, em tese, o desenvolvimento ocupacional de alunos egressos do ensino especial, ao desatrelar os diferentes níveis de formação profissional da escolaridade regular. Associando-se a isso o início do supletivo de 1º grau aos 15 anos, parecem aumentar as possibilidades de articular educação e formação para o trabalho, pelo menos de parte da população dos alunos considerados especiais - aqueles cuja escolarização não é reconhecida e cuja formação/atuação profissional se reduz hoje às chamadas oficinas.
Um ponto central no artigo é a previsão de "professores com especialização adequada em nível médio ou superior(...) bem como professores do ensino regular capacitados para a integração(...)". Esse tema mereceu atenção desde as primeiras audiências públicas na Câmara, no desafio de entender o papel do professor especializado em uma proposta integradora, que teoricamente pediria um profissional mais "polivalente" (Ferreira e Nunes 1997). Ainda agora, permanece a indefinição, por aspectos específicos e por outros mais gerais da própria lei e da conjuntura. No geral, a questão dos profissionais da educação depende de regulamentações, com destaque para os institutos superiores de educação (que participarão da formação de professores para a educação infantil e fundamental). De modo mais específico, as expressões contidas no artigo parecem "vagas para delinear o perfil profissional adequado para atuação na educação especial", na visão preliminar da CEB/CNE (1997, p. 32). Seria essa formação propiciada "através de cursos de especialização", como prevêem Souza e Silva (1997, p. 95), na forma em que já acontece em alguns estados brasileiros? A discussão das habilitações da pedagogia, também em educação especial e inclusive por categoria de deficiência, estará agora refletindo as pressões advindas das discussões acumuladas sobre a revisão da formação do pedagogo/do docente, de um lado, e das indicações da LDB, de outro: ambas, de diferentes perspectivas, enfraquecendo a idéia da formação de um especialista em educação especial como habilitações da pedagogia. E ainda que prevaleça a figura do especialista, em um tipo de formação ou em outro, é provável que ela não se limite à idéia de um regente de classes especiais de determinada categoria de alunos especiais, dentro das instituições ou nas escolas comuns.
Quanto aos professores do ensino regular, a questão pode ser parcialmente contemplada na incumbência que a Lei reserva aos municípios de realizar programas de capacitação para todos os professores em exercício, embora a questão não se restrinja ao aspecto de competência técnica. Sabe-se que o tema das necessidades especiais, ou mesmo da diversidade, é ainda pouco presente nos cursos de formação de professores e outros profissionais, mesmo com recomendações e indicações legais para que se supere essa lacuna. De outra parte, parece difícil capacitar os professores das classes comuns para integrar alunos que ainda não estão presentes na escola em que trabalham.
O Artigo 60 prevê o estabelecimento de critérios de caracterização das instituições privadas de educação especial, através dos órgãos normativos dos sistemas de ensino, para o recebimento de apoio técnico e financeiro público; ao mesmo tempo em que reafirma em seu parágrafo único a preferência pela ampliação do atendimento no ensino regular público. Uma questão está em definir o caráter educacional das instituições particulares e dos serviços que prestam. Parte do problema deverá ser esclarecida com a aplicação do que dispõem os artigos 70 e 71, que definem em caráter geral o que são despesas com ensino; dispositivos que, para Saviani (1997), tendem a reduzir a dispersão dos recursos reservados para a educação. Para o CNE, em seus estudos preliminares (1997), o próprio capítulo V já indica alguns dos critérios que deverão ser considerados, de modo específico, na avaliação dos tipos de instalação, da habilitação do pessoal e das formas de acompanhamento do processo educacional, com base nos mecanismos que os sistemas já possuem para acompanhar as instituições de ensino privado regular (p.32).
As instituições e organizações privadas de caráter mais assistencial e filantrópico têm detido, na história brasileira, a maior parte das instalações, dos alunos e dos recursos financeiros ligados à educação especial, além de possuir grande influência na definição das políticas educacionais públicas na área. Não são escolas, no sentido estrito, nem como tal têm sido avaliadas: são, por assim dizer, instituições totais, de atendimento múltiplo, nas quais a instrução escolar é um dos vários componentes. Para a população que combina as condições da pobreza e da deficiência, a instituição tende a assumir, de modo precário, um conjunto de demandas de assistência, saúde e, inclusive, formação. Políticas mais efetivas de integração escolar, como responsabilidade do Estado, necessariamente reclamam maior compromisso da escola pública e revisão das formas de relação dos sistemas de ensino com as instituições especializadas, até porque estas têm dependido de modo crescente de verbas educacionais.
O alinhamento das propostas brasileiras com a tendência da chamada escola inclusiva e das necessidades especiais favorece mais a linha da "educação + escola comum" do que a da "assistência social + instituição especializada", para a ampla maioria dos alunos potenciais. Um dos desafios para os sistemas estaduais e municipais de ensino parece estar na necessidade - muitas vezes não explicitada - de assumir uma parte significativa dos alunos hoje dependentes das instituições e também aqueles que ainda não têm acesso a qualquer serviço educacional. Tal necessidade se coloca para esses sistemas no momento em que muitos deles têm reavaliado e mesmo desativado os serviços de ensino especial, até para reduzir processos de estigmatização e segregação.
Em síntese, o momento que a nova Lei e seu contexto colocam para a educação geral — e, em particular, para a educação especial — sinaliza alterações importantes nas políticas de atendimento educacional especializado. Os documentos citados de análise preliminar do CNE já apontam para a necessária articulação dos órgãos federais, estaduais e municipais para definição de normas e medidas complementares para a área.
Já se estão definindo, na perspectiva da desconcentração e da municipalização, as propostas e os conselhos para proposição e acompanhamento da aplicação dos recursos do Fundo da Lei 9.424, de 24.12.1996. Embora a Lei já inclua os estabelecimentos de ensino especial públicos nos componentes do ensino fundamental, ainda são pouco claros, e possivelmente negativos, os impactos que a concentração de recursos nesse nível de ensino trará para a educação infantil e parte da educação especial.
Está também na pauta, em meio ao pacote de reformas, a discussão do Plano Nacional de Educação, com diretrizes para a próxima década.
A presença ampliada da educação especial na nova Lei pode também sinalizar presença mais perceptível da área nas novas discussões, assumindo que sua contribuição específica visa mais do que à simples afirmação do "especialismo" educativo ou burocrático - até porque nem sempre estarão disponíveis profissionais ou serviços especializados, distintos daqueles disponíveis nas escolas. Ao caráter afirmativo da expressão legal com relação às necessidades especiais e, mais pontualmente, à educação das pessoas com deficiência contrapõe-se, de modo contraditório, a afirmação do Estado mínimo e da redução de recursos para as políticas sociais. Os discursos da educação para todos e da escola inclusiva ocorrem num contexto de exclusão social ampliada, o que aumenta os desafios para assegurar os direitos das pessoas denominadas portadoras de necessidades especiais.

 
Bibliografia
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Cadernos Cedes, ano XIX, nº 46, setembro/98

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