Ao chamar Moro de Judas, Bolsonaro posa de Cristo
Ao chamar Moro de Judas, Bolsonaro posa de Cristo... -
Messias de batismo, Bolsonaro declarou há quatro dias que, embora carregue sobrenome que evoca o Todo-Poderoso, não pode operar um milagre capaz de deter a mortandade do coronavírus. Entretanto, ao perceber que uma septicemia ronda-lhe o mandato, o mesmo Bolsonaro pede ao país que o enxergue como um neo-Cristo. Este sábado não é de Aleluia, mas o capitão pendurou Sergio Moro num poste virtual, para ser malhado nas redes sociais como um judas
Bolsonaro associa à sua imagem a ideia do destemor. Na crise do vírus, sua coragem revela-se uma estranha qualidade, que foge sempre que as circunstâncias o intimam a assumir as responsabilidades de um presidente. Uma coisa, porém, é preciso reconhecer: o autoproclamado Nazareno do Planalto não tem medo do ridículo. Não podendo refutar a suspeita de que trama colocar a Polícia Federal a seu serviço, Bolsonaro recorre à velha tática de desqualificar o acusador.
No dia em que Moro presta depoimento e entrega aos investigadores as provas que diz possuir contra o ex-chefe, Bolsonaro esgrime dúvidas esfarrapadas sobre a investigação da facada que sofreu durante a campanha. Insinua que Moro interferiu no processo para evitar que a PF chegasse a um hipotético mandante escondido atrás de Adélio Bispo, o esfaqueador. E pergunta: "Os mandantes estão em Brasília? O Judas, que hoje deporá, interferiu para que não se investigasse?"
Judas, o Iscariotes original, traiu seu mestre por 30 dinheiros, beijou-o na face, entregou-o aos romanos e o levou à crucificação. Depois, arrependeu-se e enforcou-se numa figueira. Moro, o judas que Bolsonaro içou para ser xingado, cuspido, surrado e queimado nas redes sociais tem um perfil bem diferente. Não traiu, alega ter sido traído. Não entrega Bolsonaro aos romanos, mas à própria sorte. O falso Messias crucifica-se sozinho.
Não há em Brasília romanos preparando uma cruz, mas maganos do centrão exigindo de Bolsonaro 30 dinheiros para retirar de cartaz o espetáculo da crucificação. De resto, Moro não parece afeito à ideia do suicídio. Em vez de um nó no pescoço e uma figueira, o que há no caminho do ex-juiz e ex-ministro são partidos políticos dispostos a lhe dar corda para que ele chegue às urnas de 2022 como candidato ao trono.
A velha prática da malhação daquele que passou à história como o símbolo maior da traição sofreu muitas modificações. Já não se malha o Judas como antigamente. Hoje, o boneco recheado de trapos é malhado não necessariamente por ser traidor. Qualquer personagem odiado pode ser um judas —o técnico da seleção, o comerciante explorador do bairro, o governador impopular, o ex-presidente preso, o presidente que se finge de morto em meio à pandemia, o diabo.
Não há santos na desavença que opõe Moro e Bolsonaro. Há dois personagens que coabitavam o mesmo governo até a semana passada. Ambos têm contas a ajustar. Quem não quiser fazer papel de bobo deve fugir das mistificações, cobrando explicações. De Bolsonaro, exige-se que responda às acusações. De Moro, espera-se que, além de provas, leve à vitrine uma justificativa para ter engolido sapos durante um ano e quatro meses.
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