https://theintercept.com/2017/11/27/haitianos-fogem-dos-eua-e-canada-se-prepara-para-uma-nova-onda-de-refugiados/

A Haitian boy holds onto his father as they approach an illegally crossing point, staffed by Royal Canadian Mounted Police officers, from Champlain, N.Y., to Saint-Bernard-de-Lacolle, Quebec, Monday, Aug. 7, 2017. Seven days a week, 24-hours a day people from across the globe are arriving at the end of a New York backroad so they can walk across a ditch into Canada knowing they will be instantly arrested, but with the hope the Canadian government will be kinder to them than the United States. (AP Photo/Charles Krupa)

27 de Novembro de 2017, 8h05
PERTO DA CIDADE de Lacolle, no Quebec, logo depois da fronteira norte do estado de  Nova York, um amontoado de trailers beges e azuis acaba de chegar para abrigar temporariamente a incessante onda de refugiados, muitos do Haiti, que vêm a pé da terra de Trump. Dentro dos trailers novos com aquecimento, há camas e chuveiros a postos para aquecer pés e mãos congelados enquanto são feitos os registros e as verificações de segurança.
No inverno passado, logo depois da posse de Donald Trump, houve um grande aumento nas “travessias irregulares” da fronteira entre Canadá e Estados Unidos: pessoas evitando os postos de fronteira oficiais e tentando chegar a um lugar seguro por caminhos no meio da floresta, atravessando clareiras e fossos. Desde janeiro de 2017, as autoridades canadenses já interceptaram cerca de 17 mil migrantes vindos dos EUA (além dos que atravessaram sem ser detectados). Os processos de pedido de asilo só começam quando os migrantes chegam sãos e salvos ao Canadá, não nas  fronteiras, onde provavelmente seriam devolvidos com base em um controverso acordo entre os dois países.
Os riscos de uma travessia irregular são mais altos durante o inverno, e este que se aproxima promete ser especialmente frio. Ano passado, durante os meses mais frios, houve relatos de dedos congelados que precisaram ser amputados na chegada ao Canadá. Dois homens ganeses perderam todos os dedos das mãos depois de atravessar a pé para Manitoba — um deles contou aos repórteres que se achava sortudo por ter conseguido preservar um de seus polegares.
A despeito desses empecilhos, há fortes indícios de que o fluxo de migrantes que chega aos trailers perto de Lacolle vai continuar mesmo com a queda da temperatura, e é possível inclusive que as travessias a pé, carregadas de bagagem, se intensifique nos próximos dias e meses.
Tudo isso porque, na segunda-feira (20), o governo Trump cumpriu a ameaça de remover mais de 50 mil haitianos de um programa que atualmente permite a eles viver e trabalhar legalmente nos Estados Unidos. Em 20 meses, eles perderam qualquer tipo de proteção e estarão sujeitos à deportação. O governo já anunciou que irá expulsar os nicaraguenses do mesmo programa e deu a entender que poderá fazer o mesmo com os hondurenhos no ano que vem. Em setembro, os sudaneses foram avisados de que também serão expulsos. E os salvadorenhos devem ser os próximos.
O programa, chamado Estatuto de Proteção Temporária (Temporary Protected Status, TPS), garante um status jurídico especial às pessoas provenientes de determinados países atingidos por conflitos bélicos ou desastres naturais severos, até que eles se recuperem (as pessoas precisam estar nos Estados Unidos no momento da ocorrência do evento). Depois do devastador terremoto de 2010, o Haiti foi incluído na lista do TPS pelo governo Obama.
Desde então, milhares de haitianos conseguiram acesso ao programa, que assegurou a eles a liberdade de construir suas vidas nos EUA: frequentar a universidade, trabalhar nas áreas de saúde, construção civil e hotelaria, pagar tributos e ter filhos com a cidadania americana. Um total de mais de 300 mil pessoas — de países como Sudão, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Somália, entre outros — recebem cobertura semelhante pelo TPS. O programa foi inicialmente pensado como uma forma de “quebrar o galho de um país que sofreu um desastre até que se recupere”, como descreveu Sarah Pierce do Instituto de Políticas Migratórias. Ainda assim, em alguns casos, como o da Somália arrasada por sucessivas guerras, são tantas renovações subsequentes que a proteção já vigora há 26 anos, o que a torna, na prática, uma espécie de programa de refugiados (embora não seja útil para os somalianos que fogem atualmente de violência ou de perseguições, apenas para os que já residem há décadas nos EUA).
Durante a campanha eleitoral, Trump deu fortes indícios de que apoiava o programa, pelo menos no que diz respeito aos haitianos. Para cortejar o voto da região de Miami conhecida como Little Haiti (Pequeno Haiti), ele declarou a uma multidão: “votem em mim ou não, eu realmente quero ser seu maior defensor, e serei seu maior defensor”.
Isso mudou bem depressa. Como parte de sua cruzada anti-imigração, o governo Trump começou a tratar o TPS como um esquema, um subterfúgio para permitir a permanência de estrangeiros nos EUA por tempo indeterminado (sem levar em conta que muitos dos países cobertos pelo programa permanecem devastados por guerras e desastres e dependem em larga medida do dinheiro enviado pelos trabalhadores beneficiados pelo TPS para o  lento processo de reconstrução).
Tudo começou poucos meses depois que Trump assumiu a presidência. Num primeiro momento, James McCament, então diretor em exercício dos Serviços de Imigração e Cidadania dos EUA, insistiu que a inclusão do Haiti no programa fosse “encerrada”. Em seguida, um memorando do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security, DHS) deu a entender que os haitianos deveriam “se preparar e se organizar para deixar os Estados Unidos”. Por fim, em maio, John Kelly, então secretário do DHS, DECLAROU que os haitianos beneficiários do TPS “precisavam começar a pensar em voltar” para o Haiti.
Da noite para o dia, dezenas de milhares de pessoas foram obrigadas a escolher entre uma série de alternativas de alto risco: ficar e esperar que de tudo dê certo? Entrar para a economia informal? Voltar para o Haiti, onde a vida ainda não é segura e a epidemia de cólera continua a fazer centenas de vítimas todo ano? Ou atravessar a fronteira para o Canadá, onde o jovem primeiro-ministro tem feito arrojados pronunciamentos em defesa do acolhimento de refugiados?
Desde junho, são muitos os haitianos que vêm optando por essa última alternativa, em torno de 250 por dia durante os meses do verão. Eles juntam o que dão conta de carregar, embarcam em um avião ou ônibus com destino a Plattsburgh, Nova York, pegam um táxi para fazer um trajeto de meia hora até o final da Roxham Road, perto de Lacolle, depois descem e atravessam a pé o fosso que divide os EUA de Trump do Canadá de Justin Trudeau.
A bus of Haitian asylum seekers from the United States arrives at the Olympic Stadium in Montreal, Quebec on August 3, 2017. / AFP PHOTO / Catherine Legault        (Photo credit should read CATHERINE LEGAULT/AFP/Getty Images)Um ônibus de haitianos saindo dos EUA em busca de asilo chega ao Estádio Olímpico de Montreal, no Quebec (03/08/17).
 
Foto: Catherine Legault/AFP/Getty Images

Respirando novos ares

“No momento em que cheguei aqui, senti como se estivesse respirando novos ares. Eu vinha sentindo uma pontada de dor no ombro que de repente sumiu. Me perguntei ‘o que aconteceu?’ Percebi então que era resultado do estresse.”
Agathe St. Preux, uma mulher de meia-idade, que vestia uma saia recatada no meio da canela e um paletó preto, me contou qual era a sensação de finalmente chegar ao Canadá depois de doze anos de tentativas fracassadas para obter o status permanente de residente legal dos Estados Unidos.
Estávamos no meio de outubro, reunidos numa sala lotada na Maison d’Haiti em Montreal, um ponto de encontro para a tradicional comunidade haitiana local. Dezenas de pessoas que fizeram travessias de fronteira “irregulares” desde o começo das ameaças anti-TPS aceitaram se encontrar e compartilhar suas histórias de migração.
Eram experiências muito variadas, e muitas pessoas pediram para permanecer no anonimato. Havia, por exemplo, uma mãe com três filhos, que trabalhava legalmente no aeroporto JFK e decidiu que sua família só estaria segura se ela largasse tudo e atravessasse a fronteira em Lacolle.
Um homem que havia concorrido com sucesso em uma eleição para prefeito de uma pequena cidade do Haiti, mas foi “atacado por três bandidos” de uma facção política rival. “Foi um milagre ele ter sobrevivido”, comentou uma mulher que havia passado três anos trabalhando nos EUA, mas fugiu quando soube que amigos – também haitianos – já estavam sendo deportados na gestão de Trump.
Um homem de pouco menos de trinta anos contou que havia vivido nos EUA por quinze anos, fez faculdade e trabalhou por sete anos. “Eu era parte da economia. Eu pagava impostos.” Mas, com Trump, “a tensão ia acabar me matando. Então voei para Plattsburgh, peguei um táxi e fiz a travessia a pé.”
Outra mãe, com seis filhos, viveu oito anos em Miami, estudou enfermagem enquanto trabalhava em período noturno e dormiu em pontos de ônibus até o sol nascer, Tudo para conseguir um emprego para cuidar de norte-americanos doentes e pagar seus impostos ao governo dos EUA. “Trabalhamos como animais”, Maie Yanica Quetant me contou, com a ajuda de uma intérprete do idioma crioulo. “E aí, ele chega e diz ‘vão embora’.”
“Ele”, claro, é Trump – ou “Chomp”, como seu nome é frequentemente pronunciado por aqui.
Para a grande maioria dos haitianos reunidos na Maison, o trajeto até os Estados Unidos não foi a rota relativamente direta do Haiti à Flórida de barcouma travessia que há décadas é intensamente patrulhada pela Guarda Costeira norte-americana. Em busca de emprego e de políticas de imigração mais amigáveis, seguiram jornadas bem mais tortuosas: do Haiti a outras ilhas caribenhas, depois ao Brasil, atrás da promessa de empregos nos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. À medida que essas oportunidades se reduziram, continuaram viagem pela América do Sul e pela América Central até finalmente chegarem à Califórnia.
Várias pessoas do grupo haviam atravessado 10 ou 11 países antes de chegar ao destino final. Passaram anos fugindo e se escondendo, caçadas pelas autoridades, saqueadas por ladrões.
Rosemen François, uma mulher jovem com o cabelo em cachos espiralados entremeados de mechas roxas, disse que ainda está assombrada pelo que passou no Panamá. “Eu estava atravessando um rio e caí três vezes na água. A partir de determinado momento, eu já não conseguia sentir meus pés porque a pele estava se soltando. Essa sensação me marcou.”
Em resposta ao depoimento de François, um homem que tinha permanecido calado até então levantou a mão. “Quando estávamos no Panamá, tivemos que dormir nas florestas. […] Vimos pessoas morrerem. Vimos mulheres serem estupradas. Passamos seis dias na floresta do Panamá sem comer, dormindo ao relento, na chuva.” Com os ecos assustadores da rota clandestina, ele conta que ouviram ruídos, “pensamos que fossem animais selvagens e corremos, perdemos nossos pertences, nossa bagagem, tudo.”
“Mas ainda tínhamos fé, e os Estados Unidos ainda estavam em nossas mentes. Achávamos que, quando chegássemos, haveria um paraíso para nós.” Afinal, desde o terremoto, havia um programa especial em funcionamento – o TPS – que reconhecia o sofrimento de seu país e permitiria a eles viver e trabalhar fora das sombras.
Para muitos, no entanto, não foi bem assim. Como se recorda François: “Quando cheguei à Califórnia [três anos atrás], pensei que seria o fim da minha jornada. Em vez disso, fui presa e colocada num centro de detenção, onde não conseguia ver a luz do sol nem perceber a diferença entre o dia e a noite. Fique sete dias nesse lugar. Sem banho. As refeições não eram comestíveis.” Convicta de que havia sido esquecida num buraco negro, “comecei a gritar, […] e foi assim que consegui sair.”
Por alguns anos, as coisas foram se normalizando. Ela conseguiu uma autorização para trabalhar. Ela estudou. Mas, no último verão, “meus amigos foram deportados e mandados de volta para o Haiti, e foi quando decidi vir para o Canadá”.
Ao ser indagada sobre os motivos por trás da situação atual, sua resposta é simples: “Foi o Sr. Trump. Chomp […] Chomp tomou meu sonho e o virou de cabeça para baixo.”
Quetant, uma enfermeira de Miami, descreveu seu choque diante da notícia de que os haitianos, que tinham começado a se sentir seguros graças ao TPS, estavam novamente sendo procurados. “Você liga o rádio e as notícias são de que ‘Olha, estão caçando os haitianos’.” E então “você precisa começar a fugir, e você fica sem fôlego, e para onde você vai fugir?”
Ela conta que a tensão era insuportável. “Você não sabe por que estão vindo te pegar. Quando olha ao redor, não sabe como as pessoas estão vendo você, ou o que fazer. Você só quer parar de fugir.”

Refugiados de Trump

Para os que chegaram aos EUA depois da eleição de Trump, a experiência foi ainda mais radical. Dieuliphète Derphin, um rapaz que fez a jornada rumo norte por dentro do Brasil, chegou logo antes da posse. “Eu fiquei atônito ao ser preso e passar seis dias num centro de detenção. Eu me perguntava: ‘Como assim eles estão tratando pessoas negras de forma tão desumana? Como assim você não vai me dar uma escova de dentes? Como assim eu não tenho acesso a água? Por que estão fazendo isso com a gente? É porque somos negros?'”
“Depois disso, eu não queria mais ficar nos Estados Unidos. Nem por um segundo. Foi por isso que tive a ideia de vir para o Canadá.” Ele atravessou a fronteira em agosto, depois de apenas oito meses nos EUA.
Várias pessoas na sala se identificaram com a descrição de Agathe St. Preux de “respirar novos ares” na chegada ao Quebec. O grupo irrompeu em aplausos quando Quetant disse, sobre Trump: “Espero que ele nunca venha para cá, porque a terra canadense é abençoada.”
Mesmo assim, logo ficou claro que apesar de uma breve onda de alívio por terem escapado da repressão de Trump, a busca por segurança e estabilidade não estava nem perto de acabar. Muitos haitianos vieram para o Canadá porque ouviram dizer que o governo de Justin Trudeau iria recebê-los de braços abertos. Eles conheciam o famoso tuíte de Trudeau, publicado no mesmo dia em que eclodiram pelo país os protestos contra a primeira ordem executiva de Trump restringindo as viagens de muçulmanos aos EUA. “Para aqueles que fogem da perseguição, do terror e da guerra, os canadenses irão acolhê-los, independentemente de sua fé. A diversidade é a nossa força #BemVindosAoCanadá.”
Um homem considerou essa mensagem, assim como outras semelhantes vindas do norte, como “um sinal divino de que Deus estava mostrando o caminho, dizendo ‘Venha para o Canadá'”.
O que descobriram, no entanto, foi que a situação era bem mais complicada. Nos últimos meses, autoridades canadenses vêm desencorajando de todas as maneiras possíveis as tentativas de travessia dos imigrantes provenientes dos EUA, em especial os haitianos. A despeito dos tuítes fofinhos, as políticas de imigração do Canadá são restritivas, e centenas de haitianos já foram deportados desde janeiro. Marjorie Villefranche, diretora da Maison d’Haiti, conta que ainda há cerca de 60 haitianos por dia atravessando a fronteira; ela estima que 50% vão conseguir o estatuto de refugiado, e 25% vão conseguir algum outro tipo de estatuto jurídico. Os demais possivelmente serão deportados.
Além disso, o Canadá e os Estados Unidos são parte de um acordo denominado Safe Third Country Agremeent (Acordo sobre Países Terceiros Seguros), que determina que os solicitantes de asilo “devem pedir proteção na condição de refugiados no primeiro país seguro a que cheguem”. Como os EUA se qualificam como país “seguro” nos termos do acordo, se os haitianos que atualmente vivem lá chegarem a um posto de fronteira com o Canadá, provavelmente terão o estatuto de refugiado negado.
Se, no entanto, eles aparecerem como por mágica no Canadá, sua solicitação poderá ser processada. Essa é a principal razão pela qual os haitianos, como milhares de outros imigrantes que estão fugindo do sentimento e das políticas anti-imigração dos EUA, atravessam a fronteira a pé, incorrendo em riscos físicos e jurídicos. Como descreve Quetant, para ter a chance de se tornar legalizado no Canadá, “você precisa violar a lei. Você não quer fazer isso, não é sua primeira opção, mas você não tem como evitar.”
Apenas uma mulher presente se dispôs a contar que, antes de atravessar a pé, ela havia tentado entrar no Canadá por um posto de fronteira oficial. Ela recebeu uma negativa oficial, e esse fato agora consta da sua ficha, o que a deixa na situação jurídica mais frágil do grupo. “Não consigo uma autorização de trabalho porque fui deportada”, ela conta. Outra mulher balança a cabeça. “Isso é exatamente o que estamos todos tentando evitar.”
O Canadá tampouco tem se mostrado uma utopia antirracista para os migrantes negros. Supremacistas brancos fizeram manifestações nos postos de fronteira de Lacolle e estenderam uma faixa anti-imigração do lado de fora do Estádio Olímpico de Montreal, que foi convertido em abrigo temporário para os refugiados de Trump. E, até agora, os haitianos não foram tratados com a mesma famosa generosidade oferecida pelos canadenses aos refugiados sírios.
Mas muitos moradores de Montreal se mobilizaram para ajudar os haitianos recém-chegados com demonstrações de grande calor humano. “Queremos que eles tenham a sensação de estar em casa”, disse Vilefranche sobre o prédio onde estávamos reunidos, a Maison d’Haiti. O centro foi inaugurado em 1972, em meio a uma onda de imigração de haitianos durante os anos da brutal ditadura de Duvalier. No ano passado, depois de décadas no coração da comunidade haitiana, eles comemoraram a mudança para um novo prédio moderno e bem iluminado no bairro de Saint-Michel. Janelões do chão ao teto estão de frente para a rua, membros da comunidade podem conversar em um café, e a vibrante arte haitiana enfeita cada espaço disponível de parede.
O novo espaço veio bem a tempo para ajudar a superar o furacão Trump. Assim como aconteceu na sequência do terremoto de 2010, equipes de voluntários ajudam os recém-chegados a preencher formulários para solicitar autorizações temporárias de trabalho. Funcionários se mobilizam para garantir que as crianças estejam inscritas na escola e providenciam uniformes e cadernos coloridos. Há aulas de francês para adultos e transporte para coletar roupas, móveis e outros suprimentos.
E o que é mais importante, há outros haitianos, sendo que alguns deles já moram em Montreal há décadas e construíram vidas estáveis e prósperas. “Eles nos dizem: ‘Não tenha medo. Da mesma forma que hoje o sol brilha para nós, ele brilhará para vocês algum dia no futuro'”, explicou um recente refugiado dos EUA de Trump. Philogene Gerda, uma jovem mãe com três filhos que passou quinze dias no Estádio Olímpico, disse que a Maison “dava a sensação de estar em casa, principalmente o espaço das mulheres nas sextas à noite, aonde podemos levar as crianças”.
Há também um trabalho político em curso, no contexto de um movimento mais amplo pelos direitos dos imigrantes de cobrar do governo Trudeau que faça jus ao seu marketing pró-refugiados. Trailers aquecidos perto da fronteira ajudam, mas não são suficientes. Milhares de canadenses já escreveram ao governo pedindo o fim do Acordo sobre Países Terceiros com os EUA. Outras campanhas solicitam substancialmente mais recursos para acelerar o processamento dos pedidos de asilo, para que os migrantes não permaneçam por anos no limbo jurídico.
Na Maison d’Haiti, o sentimento predominante é de obstinação. Depois de atravessar as Américas até chegar a esse bolsão de tranquilidade, eles literalmente não têm mais para onde correr, não há mais nada ao norte. Como Derphin descreveu: “É isso, esse é o fim da estrada. […] Nossas vidas precisam ser aqui. E precisamos ser protegidos aqui. É isso. Não quero passar por esse turbilhão de novo.”
Para Vilefranche, isso é ainda mais crucial depois do anúncio feito pelo DHS de que os 50 mil haitianos que hoje vivem nos EUA estão com os dias contados. “Esperamos que muitas pessoas venham”, ela me disse na semana passada. Mas ela também espera que todos que planejem tentar uma travessia a pé aproveitem o prazo de 20 meses para evitar o inverno, quando o risco é consideravelmente maior: “Atravessar no inverno não é uma boa ideia. É muito duro, mas estamos aqui para recebê-los. Os trailers estão lá. E nós estamos aqui na Maison d’Haiti.”
Obviamente, nem todos os haitianos que agora se deparam com a perda de sua proteção irão optar pelo Canadá. Havia o receio de que o anúncio da semana passada fosse para expulsar as pessoas já a partir de janeiro, como Kelly tinha ameaçado em maio. Mas os 18 meses acrescidos a esse prazo aumentam as esperanças de que, antes que o tempo acabe, uma das tentativas de obter o direito à residência legal permanente ganhe força, incluindo um projeto de lei bipartidário que abriria caminho para a residência permanente aos beneficiários do TPS que residam no país há mais de cinco anos.
O resultado mais provável, no entanto, é que dezenas de milhares de haitianos que atualmente vivem e trabalham legalmente nos EUA permaneçam onde estão e tentem sobreviver à margem. Patricia Elizée, uma advogada de Miami com clientes haitianos, observa que os haitianos “não vão todos embarcar num navio e ir para casa. Eles vão para o mercado negro.” Muitos ainda conseguirão trabalhar — porém, se reclamarem das condições de trabalho, enfrentarão a deportação e o encarceramento, uma oportunidade de negócios para os presídios privados de imigrantes, cujos proprietários comemoraram a eleição de Trump.
Para muitos, retornar ao Haiti parece a pior alternativa. Embora seja verdade, como aponta o DHS, que o terremoto no Haiti aconteceu há sete anos, e o TPS é temporário por definição, o desastre natural está longe de ter sido o fim (ou o começo) das muitas crises concomitantes que o país enfrenta. A reconstrução corrupta e incompetente depois do terremoto, patrocinada por países estrangeiros, abriu caminho para a epidemia de cólera, e o Haiti foi duramente atingido pelo furacão Matthew no ano passado. Quando a chegada do furacão Irma à ilha era iminente e ameaçava trazer fortes chuvas (como de fato aconteceu), alguns moradores da ilha manifestaram uma espécie de fadiga de desastres. Um sentimento que pode se transformar em regra num futuro próximo; choques e crises tão frequentes que acabem adquirindo uma aura macabra de normalidade.
“Acho que estamos preocupados”, disse a um jornalista um habitante de Port-au-Prince, “mas já estamos vivendo em outro furacão, o furacão Miséria. […] Dizem que eu deveria reforçar minha casa? Com o quê? Madeira? Quem vai pagar por ela? Com que dinheiro vou comprar? Rá! Não tenho nem um telhado de metal. Se os ventos vierem, não tenho nada a fazer além de torcer para ficar vivo.”
An RCMP officer talks with a group of people who claimed to be from Haiti in Champlain, New York as they prepare to cross the border into Canada illegally on August 4, 2017.Migrants have been crossing the border in greater numbers in recent weeks. / AFP PHOTO / Geoff Robins (Photo credit should read GEOFF ROBINS/AFP/Getty Images)Um agente da Polícia Montada do Canadá conversa com um grupo de pessoas que alegaram ser do Haiti em Champlain, Nova York (EUA). Eles se preparavam para atravessar ilegalmente a fronteira com o Canadá (04/08/17)
 
Foto: Geoff Robins/AFP/Getty Images

O fator clima

Por um lado, os ataques de Trump ao TPS são politicamente estarrecedores. Não houve clamor popular relevante pedindo a deportação de haitianos e centro-americanos, e muitos empresários estão frustrados por perder trabalhadores confiáveis (de acordo com o sindicato Unite Here, só a Disney World emprega aproximadamente 500 trabalhadores haitianos beneficiários do TPS).
Além disso, para o Partido Republicano, esse movimento tem riscos políticos expressivos: os haitianos beneficiários do TPS não têm direito a voto, mas muitos de seus amigos e familiares têm. Considerando que muitos vivem na Flórida, um “swing state” [estado cujo eleitorado não é fortemente inclinado a votar em nenhum dos dois partidos principais] com grande fluxo de portorriquenhos nada satisfeitos com o tratamento que têm recebido dos Republicanos (e que, eles sim, podem votar após estabelecerem domicílio), esse mais recente movimento anti-imigração pode se revelar um tiro no pé nas urnas eleitorais.
Mas talvez haja um quadro ainda mais amplo a se analisar, menos relacionado ao Haiti ou a Honduras e mais ligado ao nosso planeta em processo de aquecimento. Afinal, o TPS — que inclui “desastres ambientais” como uma das principais razões pelas quais um país receberia essa proteção — é atualmente o mais importante instrumento político à disposição do governo dos EUA para prover um módico alívio às inúmeras pessoas ao redor do mundo que já estão sendo deslocadas em decorrência de crises relacionadas às mudanças climáticas, e muitas mais ainda virão. Não é de se espantar, portanto, que os agentes de Trump estejam correndo para fechar essa porta.
Entre os dez países atualmente cobertos pelo TPS, os desastres ambientais são mencionados como razão principal ou fator importante em pelo menos sete deles.
O programa não foi criado como resposta às mudanças climáticas — ele começou como uma forma de reagir aos deslocamentos causados por guerras civis. E no entanto, à medida que o planeta foi esquentando, o TPS se tornou um meio para que os Estados Unidos pudessem assegurar alguns direitos a milhares de pessoas cujos países foram atingidos por desastres naturais. Na prática, uma das poucas ações que restam atualmente aos governos quando sofrem uma violenta tempestade ou uma grave seca é fazer lobby para que seus cidadãos residentes nos EUA sejam cobertos pelo TPS (ou por algum programa equivalente em outros países ricos).
Jane McAdam, diretora do Centro Kaldor de Direito Internacional dos Refugiados da Universidade de Nova Gales do Sul, me informou que, mesmo tendo muitos problemas, “o TPS é o mecanismo mais forte, ou talvez o único” disponível aos migrantes das mudanças climáticas pela legislação dos EUA. “Ele dá pelo menos alguma proteção temporária.” Por isso, diversos estudiosos supõem que a importância do programa vá aumentar à medida que as mudanças climáticas se aceleram.
Obviamente, nem todos os desastres que desencadearam a inclusão na lista do TPS estavam ligados às mudanças climáticas (os terremotos no Haiti e no Nepal, por exemplo). Mas outros desastres que já foram mencionados nas atribuições — furacões, inundações, secas — são exatamente o tipo de evento climático extremo que está se tornando mais frequente e mais grave à medida que o planeta se aquece.
Honduras e Nicarágua, alvos do governo Trump, inicialmente receberam proteção do TPS depois do furacão Mitch. A Somália foi inicialmente incluída em razão dos conflitos armados, mas a extensão do seu estatuto durante o governo Obama se deu, entre outras razões, em decorrência de “extensas inundações e grave seca” que impactavam a segurança alimentar e hídrica. Da mesma forma, o Iêmen foi originalmente incluído pelo conflito armado, mas sua renovação mais recente incluiu ciclones e fortes chuvas que “causaram perda de vidas; ferimentos; inundações; deslizamentos de terra; danos à infraestrutura; e escassez de alimentos, água, suprimentos médicos e combustível”.
Conceder aos migrantes desses países o direito de viver e trabalhar nos Estados Unidos é um reconhecimento de que as pessoas que vivem em lugares abalados por crises ambientais inesperadas têm o direito fundamental de buscar segurança.
Como instrumento humanitário para lidar com a nossa era de desastres em série, o TPS é bastante limitado. Mesmo para o número relativamente pequeno de pessoas que atendem seus requisitos, ele é apenas uma receita para a insegurança permanente. Os beneficiários precisam renovar seu estatuto a cada período que varia entre 6 e 18 meses, pagando aproximadamente US$ 500,00 pela renovação, e o TPS é temporário por definição.
O programa também é arbitrário: a proteção já foi negada a vários países atingidos por megadesastres  E talvez o mais relevante seja que o programa foi planejado apenas para lidar com desastres imprevisíveis e de grande escala — impactos climáticos lentos, como desertificação, subida do nível dos oceanos e erosão são bem mais difíceis de encaixar. Há também uma outra desvantagem: como alerta Koko Warner, especialista em migração ambiental da Universidade das Nações Unidas, com o TPS, “sempre se presume que as pessoas vão ter condições de voltar para o lugar de origem” quando o desastre passar. É uma presunção bem pouco realista nesses tempos em que países insulares estão sendo submersos e litorais estão desaparecendo.
Apesar disso, os ataques de Trump ao TPS ainda são relevantes porque os migrantes das mudanças climáticas nos EUA não têm nenhuma alternativa além dessas medidas discricionárias. A Convenção das Nações Unidas de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados não inclui desastres naturais ou mudanças climáticas como motivos para concessão do estatuto de refugiado. É preciso que haja risco de perseguição.
Essa enorme brecha no direito internacional entra em discussão a cada vez que os governos se reúnem para lidar com os desafios interseccionais decorrentes das perturbações climáticas, como na recente cúpula climática da ONU em Bonn, na Alemanha, que terminou semana passada. Muitos defendem que a Convenção deva receber emendas, mas a solução pode não ser tão simples. Num momento em que tantos governos de países ricos estão enrijecendo suas políticas de fronteira, abrir para alterações a convenção sobre refugiados para tentar incluir os migrantes climáticos pode não apenas ser um fracasso, como resultar num acordo substancialmente mais fraco que o atual.
Então, o que resta é o TPS. Por isso, os ataques em série do governo Trump ao programa — visando centro-americanos, haitianos, sudaneses e talvez outros  — significam que mesmo esse instrumento frágil pode estar em risco. É uma medida que deve ser vista no contexto de um padrão de ações que aprofundam a crise climática (ao conceder à indústria de combustíveis fósseis todos os seus desejos mais ousados) ao mesmo tempo em que eliminam os programas destinados a lidar com os impactos do aquecimento.
Em resumo, não se trata apenas da antipatia de Trump em relação aos imigrantes não brancos (embora isso seja parte da questão); talvez também estejamos testemunhando uma forma especialmente brutal de adaptação às mudanças climáticas.
É uma lógica simples: autoridades do governo Trump sabem que nos próximos anos haverá cada vez mais pedidos de proteção via TPS — basta pensar nos desastres dos últimos meses que bateram recordes, das inundações no Sudeste Asiático e na Nigéria, à evacuação total de Barbuda e ao êxodo de Porto Rico. Independentemente de negarem publicamente o consenso científico, os generais ao redor de Trump sabem muito bem que, no futuro, haverá muito mais pessoas em deslocamento. E se a compaixão se aplica a um desastre natural (como o monstruoso terremoto no Haiti e os furacões que vieram depois), por que não a outro? Da perspectiva do governo Trump, com seu lema de “Os EUA primeiro”, o TPS é um precedente muito perigoso.
Sendo o único programa de imigração dos EUA que garante direitos a migrantes em resposta a desastres ambientais, o destino do TPS deve ser visto como um teste prático que revela como o país mais rico do mundo, e historicamente o maior emissor de gases do efeito estufa, pretende lidar com as ondas de refugiados climáticos a caminho.
Até agora, o recado é claro: voltem para o inferno que criamos.
copiado https://theintercept.com/2

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