Impeachment de Bolsonaro depende de acordo entre direita e esquerda Para Marcos Nobre, frente ampla é condição essencial para que o presidente seja responsabilizado e afastado

Impeachment de Bolsonaro depende de acordo entre direita e esquerda

Para Marcos Nobre, frente ampla é condição essencial para que o presidente seja responsabilizado e afastado


16.abr.2020 às 12h00Marcos Nobre
[RESUMO] Para pesquisador, conversas para transformar o panelaço diário do "Fora Bolsonaro" em "Impeachment Já" devem começar, mas uma eventual cassação só terá efeitos benéficos para a democracia se for acompanhada de um amplo acordo, sem caráter eleitoral, entre direita e esquerda.
Não faltam razões nem indignação para um acerto de contas com a irresponsabilidade de Jair Bolsonaro. Antes disso, porém, há vidas a salvar, uma pandemia a vencer, uma crise econômica por enfrentar, eleições municipais para disputar, ondas seguintes de contágio com que lidar, uma vida cotidiana radicalmente diferente para levar.
É muita coisa ao mesmo tempo, e não há como acrescentar um impeachment a essa lista sem causar ainda mais confusão e desorganização em um momento crítico como o que vivemos. Por enquanto, pelo menos. Nas circunstâncias atuais, o máximo que se pode fazer é isolar Bolsonaro.
Chegará, contudo, o momento de transformar o panelaço diário do “Fora Bolsonaro” em “Impeachment Já”. A questão é: estamos nos preparando devidamente para quando esse momento chegar? Sabemos o que envolve o impeachment de Bolsonaro? Sabemos o que pretendemos alcançar com isso, para além da simples remoção do atual ocupante da cadeira?
Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em Brasília - Adriano Machado - 10.abr.2020/Reuters
Essa conversa precisa começar desde já. Também porque as desgraças que virão tendem a consumir todas as nossas energias, deixando pouco ou nenhum espaço para pensar o futuro.
Levar a sério a possibilidade de instaurar um processo de impeachment exige responder primeiro à questão se Bolsonaro perderá apoio nos próximos meses —e se essa perda de apoio inviabilizará seu projeto autoritário e, mais ainda, seu próprio mandato.
A única indicação segura que temos a esse respeito até agora vem da própria resposta que ele deu à crise. Em termos objetivos, o que Bolsonaro fez desde que ficou evidente que a pandemia iria atingi-lo em cheio foi se recolher ao núcleo mais fiel de sua base de sustentação. Aquele mesmo que ele insistiu em ir cumprimentar pessoalmente na manifestação autoritária contra o Congresso e contra o STF no dia 15 de março.
Entender por que o atual presidente tomou a decisão aparentemente suicida de permanecer no grupo dos dois ou três líderes mundiais que negam a ameaça representada pela pandemia tem que ver com tentar assegurar a fidelidade desse grupo.
Parece a única maneira de enxergar alguma estratégia em sua atitude, porque é inevitável uma conjunção de falência do sistema de saúde e de crise econômica aguda, especialmente quando se sabe que a magnitude e a duração dessas crises podem ser imprevisíveis. É inegável, no entanto, que já estão em curso e só vão se intensificar.
Somente as pesquisas dos próximos meses poderão mostrar se sua base de apoio se reduzirá ou não a esse núcleo duro. O fato, contudo, de Bolsonaro ter privilegiado essa parte da base de apoio mais ampla que tinha até ali diz muito sobre o que ele próprio acha.
O presidente calcula que vai perder muito do apoio de cerca de um terço do eleitorado com que tinha podido contar até agora. Assim, decidiu investir na parte da base que considera que o defenderá com unhas e dentes contra um eventual processo de impeachment.
Esse recolhimento ao núcleo de apoio mais fiel se explica por não ser possível combater o vírus e enfrentar a recessão econômica que acompanha a crise sanitária sem fazer uma gigantesca reorganização do “sistema”.
Nem mesmo fazer funcionar o “sistema” é mais suficiente. O desafio é de outra ordem de grandeza e exige um esforço adequado a uma emergência nacional. O presidente “antissistema” não vai fazer nenhuma das duas coisas.
A resposta de Bolsonaro à crise foi permitir que o “sistema” —em medida claramente insuficiente para proteger vidas, como se sabe— pudesse tentar se reorganizar sozinho para enfrentar a pandemia. Ao mesmo tempo, continuou a atacar esse mesmo “sistema” reorganizado como aquele que impõe sacrifícios desnecessários e insuportáveis às pessoas.
Fez esse movimento para não perder o apoio de seu núcleo mais fiel, apoio que perderia se agisse como alguém que governa “para todo o mundo”, se passasse a gerir o “sistema”.
Segundo a melhor estimativa de que dispomos, o núcleo duro do bolsonarismo tem a dimensão aproximada de 12% do eleitorado. Se o apoio a Bolsonaro vier a se limitar mesmo ao desse grupo, a questão seguinte será saber se esse apoio reduzido será suficiente para salvar seu mandato. E como.
Se experiências anteriores podem servir de guia, o afastamento da Presidência tem, pelo menos, dois requisitos básicos simultâneos: baixa aprovação e altíssimo apoio à remoção do presidente. Estando corretas a estimativa da dimensão do núcleo duro fiel a Bolsonaro e a suposição de que terá seu apoio reduzido a esse grupo, uma das condições estará teoricamente dada.
O que não significa que essa base de apoio limitada ao seu núcleo mais fiel deixará de brigar até a morte pela manutenção de Bolsonaro na Presidência. Pelo contrário, o bolsonarismo “heavy” já mostrou, repetidamente, sua capacidade de mobilização e de enfrentamento e sua disposição para praticar violência de todo tipo. Já deu repetidas mostras da firmeza de suas convicções autoritárias.
Esse núcleo duro lutará contra o afastamento do atual presidente ao preço do caos social permanente, se necessário for. Não se trata de um apoio diminuto e desorganizado como o que tinha Fernando Collor em 1992, quando renunciou para escapar ao processo de impeachment. Também por isso, essa primeira condição só poderá ser efetiva se combinada a todas as demais.
A outra condição é que se forme uma maioria esmagadora, algo como dois terços ou mais do eleitorado, favorável ao afastamento. Essa segunda condição será alcançada ainda menos espontaneamente do que a primeira. Não virá como mero efeito colateral das crises. Não é porque Bolsonaro poderá ver seu apoio reduzido a algo como 12% do eleitorado que uma maioria esmagadora se formará, automaticamente, a favor de seu afastamento.
Essa segunda condição depende de uma ampla frente de rejeição. Algum entendimento mínimo entre diferentes posições políticas dentro do campo democrático tem de se formar com base na concordância de que Bolsonaro representa um risco grande demais ao país e à democracia para continuar na Presidência.
Formar uma frente dessa amplitude vai exigir, por exemplo, uma mudança na atitude de continuar a tentar colocar a culpa em alguém —no PT, no governo Dilma, no golpe de 2016, no governo Temer, nas elites, em grupos religiosos—, como se isso pudesse nos tirar do buraco em que nos metemos. Haverá disposição para isso?
A formação dessa ampla frente de rejeição a Bolsonaro depende também de que o sistema político como um todo se entenda sobre os termos da deposição. Aqui é decisivo lembrar que esse tipo de entendimento tem dois modelos bastante diferentes na história recente do país.
O impeachment de Collor contou com o apoio praticamente unânime do sistema político. Houve um grande acordo para que Itamar Franco, o então vice-presidente, assumisse e completasse o mandato. E a celebração do acordo não incluiu necessariamente a participação no governo de Itamar, do qual não fez parte, por exemplo, o PT, partido decisivo na luta pela queda de Collor.
O outro modelo de entendimento do sistema político para deposição por impeachment foi a parlamentada de 2016, que derrubou Dilma Rousseff. Diferentemente do amplo entendimento que prevaleceu no caso de Collor, a deposição de Dilma representou uma profunda divisão na política oficial e na sociedade. Foi um movimento de autofagia, uma parte do sistema pretendendo entregar a outra aos leões do lavajatismo para tentar salvar sua própria pele.
O impeachment bem-sucedido de Bolsonaro exigirá um acordo de amplitude semelhante àquele que derrubou Collor. Somente assim o pior ficará para trás. Derrubar Bolsonaro só será possível se esse grande acordo não tiver caráter diretamente eleitoral ou de negociação miúda sobre a composição do futuro governo. Um afastamento virtuoso de Bolsonaro só será possível se for firmado um pacto para estabelecer as novas condições da convivência e da competição política, se significar o estabelecimento de bases comuns para um país sem Bolsonaro na Presidência.
Ainda assim, sempre pode haver quem insista em se apegar interessadamente às miragens que Bolsonaro produz. Pode haver quem continue a achar, à direita, que é bom ter Bolsonaro fraco, pronto para ser usado na implementação da agenda do interessado. Apesar de todos os desmentidos cotidianos, sempre vai aparecer quem venha com a conversa fiada de que é capaz de colocar uma focinheira permanente no atual presidente.
Da mesma maneira, sempre pode haver quem, à esquerda, entenda que lutar pelo impeachment serve somente à tática eleitoral. Nessa lógica, o impeachment em si mesmo não é para valer, de modo que não é necessário buscar um amplo entendimento na sociedade, a direita democrática incluída. O resultado dessa atitude será fortalecer Bolsonaro para 2022; servirá como tática para tentar escolhê-lo como adversário em um segundo turno em que a esquerda espera alcançar a outra vaga.
Se forem esses os caminhos decididos pela sociedade e por forças políticas relevantes, se a direita e a esquerda democráticas não procurarem se entender, o resultado será a continuidade do colapso institucional que vivemos desde Junho de 2013. Será a continuidade do ambiente propício ao surgimento de bolsonaros. Será a continuidade do risco para a sobrevivência da própria democracia.
O necessário isolamento social que vivemos atualmente dificulta que aconteçam as conversas em torno do afastamento de Bolsonaro. Essas conversas, contudo, precisam começar de alguma maneira, da maneira como for possível. Não serão conversas fáceis, não serão acordos simples de alcançar.
Politicamente, o que mudou nesta crise foi que Bolsonaro perdeu a autoridade para continuar a ser presidente. São muitas as condições para que o seu impeachment seja um movimento de regeneração da democracia e não uma iniciativa que apenas agrave o colapso institucional que já vivemos.
A condição mais fundamental de todas é a decisão política de buscar a convergência mais ampla possível. Só essa convergência pode produzir as condições para que Bolsonaro seja devidamente responsabilizado e afastado. E buscar essa convergência é um movimento que pode e deve começar desde já.

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