eleva críticas a Bolsonaro e adverte sobre troca na Saúde: “O vírus se impõe, não negocia com ninguém”
Novela da demissão se alonga porque presidente não escolheu substituto. Após coletiva desafiante, ministro fala à ‘Veja’ e diz que saída é irreversível
Brasília E São Paulo - 15 ABR 2020 - 22:05 BRT
A quarta-feira 15 de abril ficará marcada como o décimo dia de fritura pública do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. No mais recente capítulo da arrastada novela sobre a permanência ou não de Mandetta na pasta, o ministro estrelou uma longa entrevista coletiva em tom de despedida, na qual assegurou a permanência da sua equipe, ao menos enquanto ele ficar, e dobrou a aposta contra o presidente Jair Bolsonaro. O ministro manteve o tom de enfrentamento que resultou na perda do apoio da ala militar do Governo e reforçou que não mudará sua conduta à frente da pasta no combate ao coronavírus, já que ele se apoia “na ciência”. “Claramente há um descompasso entre o Ministério da Saúde [e a presidência]. A gente vai trabalhar até 100% do limite de nossas capacidades, enquanto eu estiver no Ministério da Saúde”. A expectativa no Palácio do Planalto é que a demissão de Mandetta ocorra ainda nesta semana, o problema é que ainda não há consenso para substitui-lo. Em mais uma demonstração de que cairá fazendo estragos na imagem do presidente, o ministro falou à revista Veja sobre a saída que parece iminente e sobre os problemas com Bolsonaro: “Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né?”
A entrevista à revista foi o último lance de mais um dia turbulento. O país se prepara para entrar numa fase mais aguda da pandemia, com hospitais de referência em São Paulo com mais de 80% das UTIs ocupadas, mas a energia em Brasília e na própria pasta segue drenada pelo impasse. No momento em que Mandetta fazia ao vivo nas TVs e para os principais meios do país a atualização diária dos registros de óbitos de coronavírus no Brasil —os falecimentos registrados já são 1.736—, o presidente Jair Bolsonaro mandava beijos e fazia sinal de corações para jornalistas que o questionavam no Palácio do Alvorada se ele demitiria seu escolhido para a Saúde.
Desde o início da crise, Bolsonaro e Mandetta divergem. O presidente defende um afrouxamento nas regras de distanciamento social e o uso amplificado da cloroquina como tratamento para todos infectados, na contramão dos principais países do mundo afetados pela pandemia. Já o ministro diz que as regras rígidas de isolamento social impostas por prefeitos e governadores devem, em sua maioria, ser mantidas para evitar um colapso no sistema de saúde. É obrigado a repetir diariamente que não há comprovação científica de que a cloroquina seja eficaz no tratamento de pacientes de Covid-19 em geral. “O vírus se impõe. A população se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o [Donald] Trump, não vai negociar com nenhum Governo”, disse, à Veja nesta quarta, quando questionado sobre mudanças de rumo no ministério com sua provável saída.
Mandetta só não caiu ainda porque não há consenso sobre o nome de um substituto. Os candidatos são: o deputado Osmar Terra, um declarado opositor da atual gestão do ministério, e os médicos Roberto Kalil (cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, conhecido por acompanhar pacientes ilustres, como ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), Claudio Lottenberg (presidente do conselho de administração do Hospital Albert Einstein que foi secretário municipal de Saúde de São Paulo em 2005) e Nise Yamaguchi (imunologista e oncologista, entusiasta do uso da cloroquina contra a doença). Quem quer que aceite o desafio terá limitações para atender os desígnios do chefe contra as medidas de isolamento e em prol da reabertura da economia, já que nesta quarta o pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu que Estados e municípios têm, sim, autonomia para decidir que serviços podem funcionar durante a emergência.
Em uma das evidências da situação surreal na pasta, Mandetta chegou a dizer durante a coletiva coletiva que recebeu telefonemas dos sondados para substitui-lo. À Veja, repetiu: “Fico até encontrarem uma pessoa para assumir meu lugar”, disse o ministro, que goza de apoio popular —além do endosso majoritário medido pelo Datafolha, de acordo com pesquisa do Atlas Político, desta quarta-feira, nada menos que 76% da população se opõem à sua demissão. O ministro ainda conta com o suporte da frente parlamentar da saúde e de entidades médicas, mas perdeu o prestígio junto aos ministros militares depois que disse para a TV Globo, em entrevista ao Fantástico no domingo, que, durante a crise do coronavírus a população “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.
O descontentamento dos militares ficou estampado em uma manifestação do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, ao jornal O Estado de S. Paulo, que ele mesmo repisou na sua conta no Twitter. “A respeito da entrevista do Ministro Mandetta, eu vou utilizar uma linguagem do polo: o ministro cruzou a linha da bola, ele não precisava ter dito determinadas coisas”.
Políticos que acompanham os bastidores desse cabo de guerra dizem que Mandetta não pedirá demissão. “Ele está na trincheira. Vai trabalhar até o último minuto. A decisão da saída ou não compete só ao presidente”, disse um deputado do Democratas. O próprio ministro repetiu nesta quarta, de novo, que só sairia em três ocasiões: quando o presidente Jair Bolsonaro não quiser o seu trabalho, se é infectado e obrigado a se afastar e quando sentir que o trabalho que vem fazendo já não é mais necessário. Aproveitando os holofotes, o ministro ressaltou que, enquanto for ministro, fará uma defesa intransigente “da vida, da ciência e do SUS (Sistema Único de Saúde)”.
Turbulência na ponta
Secretários de Saúde ouvidos pelo EL PAÍS relataram que nos últimos dias já havia um “cenário ruim” por conta da clara divergência entre o Ministério da Saúde e o Planalto na condução do combate ao coronavírus, especialmente após a entrevista de Mandetta ao Fantástico. E que esse clima se agravou nesta quarta-feira, com a divulgação do pedido de demissão do secretário Wanderson de Oliveira, visto por grande parte dos gestores como um profissional capacitado na condução da estratégica Secretaria de Vigilância em Saúde. Tanto secretários estaduais quanto municipais de Saúde participam frequentemente de reuniões com os gestores do ministério. No início da crise, eles haviam pleiteado essa participação mais ativa e foram atendidos por Mandetta.
Pelo menos três secretários de Saúde que conversaram com o EL PAÍS, e que preferiram não ter seus nomes divulgados, afirmaram que todos são cargos de confiança e que o presidente tem liberdade para mudar seus gestores. Ainda assim, a avaliação é que qualquer mudança no comando da crise neste momento seria ruim para o Brasil. Um secretário municipal de saúde pediu equilíbrio e disse temer que alterar o comando em áreas tão sensíveis agora podem impactar no trabalho construído e planejado até o momento. “As ações vêm sendo conduzidas com muita técnica. Não vejo mudança como algo interessante. Tem que ter equilíbrio e bom senso para uma troca”, afirmou.
Empoderados pelas semanas de exposição e reconhecimento públicos, Wanderson de Oliveira e o secretário-executivo do ministério, João Gabbardo, fizeram coro Mandetta na entrevista coletiva desta quarta —eles participam quase diariamente das falas à imprensa desde o começo da crise. Oliveira, que havia se queixado em carta do temor de ser demitido num tuíte, reclamou do “cansaço” pelos embates com o Planalto. Gabbardo recordou sua trajetória: “Quando sair, saio com ele. Ano que vem, completo 40 anos de Ministério da Saúde. Eu não vou jogar no lixo esse patrimônio. Vou ficar o tempo que for necessário para fazer a transição. A sociedade espera continuidade do nosso trabalho”. A eles, Mandetta fez uma promessa: “Entramos no ministério juntos, estamos no ministério juntos e sairemos do ministério juntos”. Ficou evidente que nenhum dos três quer sair de cena sem que suas mensagens fiquem bastante claras ao público. O Brasil espera a sequência da novela.
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