Cuspiram no túmulo da denúncia: acabaremos todos numa jaula?
Ricardo Cappelli*
“Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós.” Platão, República, livro VII.
Gargalhadas. Entrei na sala onde é servido o café da manhã no hotel e fiquei em pé, vendo na televisão as animadas selfies dos com Rogério 157. Na mesa ao lado, a cada nova imagem, gargalhadas. Muitas. Fiquei calado, meio indignado meio chocado com o tamanho do buraco no qual nos metemos.
Não nutro qualquer tipo de “pena da classe média sociológica”, não dou mole para nenhum fascista crescer nas minhas costas. Errou tem que pagar, é a forma que as sociedades encontraram para manter algum nível de equilíbrio e respeito às regras sociais. O traficante é subproduto da pobreza, não há dúvida, uma peça de reposição descartável na grande indústria de entorpecentes. Nem por isso menos perigoso.
O que choca é o vazio do significado. O Brasil já possui a terceira população carcerária do planeta. Não é racional comemorar a prisão de mais ninguém, deveríamos estar nos perguntando o motivo de tantos encarcerados.
No episódio da prisão de Cabral ou de Marcelo Odebrecht houve o máximo respeito e toucas ninjas. Claro, se o príncipe empreiteiro me oferecer um emprego na segurança pessoal dele “largo tudo na hora”. Cabral pode voltar. “Vou me queimar? Jamais!”. Já Rogerinho é tratado como um animal, como se fosse um grande feito social prender alguém que neste momento já tem um substituto tão ou mais violento. Na ditadura do significante uma foto prova que eu sou “o cara” que prendeu “o ninguém”. Onde fomos parar?
Rogerinho participou das fotos como um ator famoso exercendo sua existência social. Em algumas “exclusivas”, sorriu junto com os policiais. Roupa de grife, capas de jornais, selfies, deve ser mesmo alguém de grande relevância social. Numa sociedade onde seres humanos topam virar ratos de laboratório confinados dentro de uma casa durante meses em busca de dinheiro e notoriedade, tudo é possível. “Ficou famoso por quê? Ah, beijei duas debaixo do cobertor com o país me vendo pela TV.”
O advogado do traficante afirmou que “a ficha dele ainda não caiu”. Sair do espetáculo para vida real não é fácil mesmo. Se pessoas com alto nível de instrução cedem à tentação, como poderia ele resistir? Poucas vezes uma foto falou tanto. Policiais desmiolados tietando um traficante de grife. É difícil escolher qual a maior miséria.
A alienação pós-moderna surfa na sociedade do espetáculo. Voltamos a era fordista, vamos fabricando peças e rindo, macacos autômatos reagindo à estímulos sem a menor noção ou compreensão do conjunto da obra.
O ataque à UFMG, inaceitável agressão fascista, seguiu o mesmo roteiro. Uma agressão inadmissível à liberdade, à democracia e à memória do reitor Cancellier. Resolveram cuspir no túmulo da denúncia. Escolheram uma música símbolo da resistência democrática para debochar de nossa história. Contrabandeiam significados à luz do dia. Neste sentido, diferem pouco dos Rogerinhos.
O poço parece não ter fim. Não bastará ganhar uma eleição, restabelecer a ordem democrática. É preciso ir na raiz das questões, fazer o debate ideológico não sectário ou partidário. Resgatar um mínimo de humanidade, valores mínimos que nos diferenciam dos animais. Se não formos capazes, é provável que acabemos todos numa jaula, seja ela qual for.
* Ricardo Cappelli é jornalista e secretário de estado do Maranhão, cujo governo representa em Brasília.
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COPIADO http://congressoemfoco.uol.com.br/
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