(Vídeo Antropologia da Riqueza pode ser conferido aqui.)
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Código de Rico
Antropólogo brasileiro estudou a classe de consumo de luxo brasileira e decodifica seus códigos de conduta e comportamento.
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Foram dois anos de negociação. O empresário do Rio finalmente vendeu parte de sua companhia a um grupo francês. A assinatura do contrato foi marcada para São Paulo, com um pelotão de jornalistas acompanhando. De avião fretado, ele pousou horas antes da cerimônia, para almoçar em um restaurante luxuoso com seus advogados e celebrar o acordo que o deixaria ainda mais rico. Na comemoração, uma reviravolta: entusiasmado, ele derrubou no colo o prato de macarrão. Com molho vermelho, para piorar.
Sem tempo para lavar o terno sob medida, a solução foi comprar outro traje. E rápido: faltavam três horas para o evento. Orientado pelos funcionários do restaurante, correu até uma loja de grife europeia. Foram diversas medições, ajustes e provas. “Um inferno, mas não tinha opção. Deixei lá R$ 40 mil. Só uma camisa social custou R$ 2.500. Com o tal terno e uma caneta Montblanc, assinei e me senti poderoso. Parecia que estava negociando o novo Tratado de Tordesilhas com os gringos: metade para cá é minha, para lá vocês se virem.”
A anedota poderia ter saído em um programa de TV sobre ricos e famosos, com o endinheirado lembrando, já aliviado, da situação (“Amaury, você não imagina o sufoco que foi!”).O relato, porém, faz parte da tese de doutorado em ciências sociais “Coisas de Rico: Tempo, Valores e Posição Social” (2016), em que o antropólogo Michel Alcoforado analisa e descreve o estilo de vida da alta sociedade carioca. Espera. Um antropólogo querendo saber sobre os rituais e os símbolos dos ricos? Sim. Foram 18 meses de imersão e 53 entrevistas com pessoas abastadas para entender, entre outras coisas, qual a necessidade de pagar tanto por um terno feito às pressas.
As respostas por ele coletadas decifram os códigos utilizados por quem frequenta o topo da pirâmide social. As pistas foram dadas pelos protagonistas e por coadjuvantes — caso de muitos serviçais dessa roda da fortuna. De tão habitué, Alcoforado também virou coisa, sendo apresentado em festas como uma espécie de “personal anthropologist” por quem já estava acostumado a ter a tiracolo “personal trainer”, “personal stylist”, “personal shopper” etc.
(Vídeo Antropologia da Riqueza pode ser conferido aqui.)
Os itens luxuosos não são pura ostentação, segundo a tese acadêmica. Eles têm função: são pontes que levam o usuário ao mundo do qual deseja participar (ou seja, o andar de cima). “As coisas de rico azeitam as relações e permitem fazer parte de universos antes interditados. Funcionam como chaves para abrir fechaduras de mundos exclusivos”, explica o antropólogo que é também sócio da empresa Consumoteca, especializada em comportamento de consumo.
O usuário em poder dessas “chaves” busca pertencer, não se diferenciar do grupo. Por isso, os ricos parecem uniformizados e de comportamento padronizado, quando teriam dinheiro para se vestir e agir como bem quisessem. É o que justifica um empresário gastar R$ 40 mil para trajar o que todos esperam dele. Também explica o protagonismo das bolsas caras numa curso de atualização para a alta sociedade: lá as afortunadas não precisam conhecer sobre o governo de Donald Trump, mas faz-se obrigatório saber usar o acessório de luxo.
“As coisas de rico” são bens móveis e transportáveis até os ambientes onde esses objetos ganham sentido. Mas podem nem ser “coisas”. “No segmento do luxo, as experiências vêm tomando o lugar da acumulação”, acredita Manu Berger, fundadora do site “Terapia do Luxo”. São territórios e cerimônias acessíveis apenas aos escolhidos, onde assistentes-babás-mordomos se desdobram 24 horas para que jantares, shows, refúgios, mimos e confortos sejam “experiências únicas".
Dos índios aos punks, todas as tribos têm seus códigos e símbolos. Pode ser um cocar, um alfinete no nariz ou sapatos com solado vermelho. Esses valores são assimilados no dia a dia e os adeptos conhecem bem os significados. Entre os ricos, condena-se qualquer tipo de imitação (ou “fake”). Um bem original, porém, não garante sozinho as boas-vindas. Num típico caso de “você está fazendo errado”, Alcoforado lembra da aluna que guardava a nota fiscal dentro da bolsa para atestar a autenticidade da própria peça, comprada em Paris. Um erro. Não adianta bancar o produto se não souber como “bancar” seu manejo apropriado dentro da casta superior.
Preenchida a lista de pré-requisitos, os usuários das coisas de rico estão aptos a frequentar os salões por onde também circulam o dinheiro, a influência e o poder. Trata-se de um sistema de pertencimento e exclusão existente em outros grupos. Porém com poder de fogo muito, muito maior: aqui, os caciques usam Rolex e definem os rumos políticos e econômicos da nossa sociedade.
“O Brasil ainda tem muitos traços de um país de corte, com valores pautados pela diferenciação. Uma marcação social para manter os outros à parte. Por isso, o brasileiro é tão ligado aos sinais de poder representados nos objetos”, diz a antropóloga Valéria Brandini, pesquisadora do consumo de luxo no país.
Amanda (nome fictício) deparou-se com esse ambiente quando trabalhou como recepcionista na empresa de uma herdeira de banco em São Paulo. A chefe não gostava de carregar sua própria bolsa. Já na porta do escritório, o precioso acessório era passado a Amanda. Ela também servia o café na sala da patroa. E tinha que levar a bandeja de uma mesa para a outra enquanto a herdeira falava ao telefone e andava pelo amplo escritório. No dia em que deixou em uma mesa qualquer, tomou bronca: assim o café (caro, de grãos nobres) esfriava.
Nem é preciso frequentar a escola de princesas: assim como Amanda, muitos aprendem os códigos por gravitar em torno dos milionários. A tese “Coisas de Rico” conta como maîtres e garçons são treinados a nunca tirar de vista as bolsas femininas: elas ganham cadeira própria ou até ficam sobre a mesa. Pela forma como o cliente se apresenta (roupa, relógio, sapatos, postura), também sabem se devem apresentar a carta cara ou barata de vinhos. Já os manobristas identificam de longe se o cliente é importante: como o peso da blindagem rebaixa a carroceria em relação ao pneu, eles já agilizam a recepção para os blindados.
No Brasil, não se fala abertamente sobre dinheiro. Você pode nunca revelar seu salário, mas indica que vai tudo bem, obrigado, quando mostra algo reconhecidamente caro. Uma pesquisa indica que 30% dos brasileiros não sabem nem quanto seus parceiros ganham. Durante a pesquisa de Alcoforado, magnatas de diferentes quilates negavam o rótulo de ricos, reconhecendo apenas ter uma vida “confortável” (invariavelmente, apontavam algum conhecido como “o rico de verdade”).
“Isso traz a imaginação para o sistema de diferenciação. Avaliando os bens, cria-se um complicado cálculo imaginativo para determinar quanto dinheiro aquela pessoa tem”, resume o antropólogo. Há uma negociação com a possibilidade de alguém ter ou aparentar ter. “Os indivíduos sabem desse jogo e se valem disso para tentar assumir uma posição na estrutura social que lhes convêm. Eles tentam controlar a agência das coisas de rico para que elas funcionem da maneira como imaginam.”
Pode dar errado, como indica um processo de divórcio ao qual o pesquisador teve acesso. O casal viveu junto por 25 anos. E teve dois filhos. A mulher desconhecia os rendimentos do ex. Mas queria aumentar a pensão de R$ 19 mil para R$ 30 mil mensais. Listou então as “coisas de rico” dele. Sede própria da empresa. Casa própria em bairro nobre. Sítio. Veículo de mais de R$ 100 mil. Jantares em restaurantes de luxo. Diante das evidências, a Justiça determinou o aumento da pensão. Em conversa com o antropólogo, o marido reconheceu ter dinheiro, mas menos que aparentava. “Preciso mostrar que tenho, preciso parecer ser bem-sucedido. Só assim os clientes me recebem.” Aparentou tão bem a ponto de convencer até a Justiça, que aumentou a pensão, para infelicidade dele. Depois, ele conseguiu reverter a decisão, provando que a mulher também tinha muitas “coisas de rico”.
A mobilidade social viabilizada pelas coisas de rico marca as regras relativamente flexíveis do jogo no Brasil — é possível parecer sem necessariamente ser, o que em parte explica por que marcas de luxo aderem ao parcelamento por por aqui. Já na França, compara Alcoforado, a estrutura é mais rígida. Os nobres, por exemplo, dão valor à linhagem, aos imóveis de seus ancestrais (como um château). Nos Estados Unidos, a riqueza não basta para frequentar as altas rodas. É preciso estar acompanhada de poder e também prestígio — fórmula seguida, por exemplo, pelo bilionário e cofundador do Facebook Mark Zuckerberg, que prefere blusas de moletom a ternos bem cortados. Para o jornalista Alex Cuadros, autor de “Brazillionaires: The Godfathers of Modern Brazil” (Brasilionários, os Padrinhos do Brasil Moderno, em tradução livre), essa relação próxima entre riqueza e poder também fica evidente nas elites brasileiras. “O luxo é uma manifestação superficial sobre o que é ser bilionário. Muito mais importante para a identidade deles é ter poder: seja político ou econômico”, avalia o norte-americano, que morou seis anos em São Paulo.
A Operação Lava Jato é didática nesse ponto. Após as dezenas de prisões por corrupção entre empreiteiros e políticos, muitos ricos ficaram receosos em ostentar os mesmos objetos de luxo apreendidos (joias, carros, quadros). “Lava-se o dinheiro comprando coisas. Não à toa muitos dos acusados adquiriram arte. Para ostentar, pois os quadros não estavam guardados, mas sim nas paredes de suas casas. Somos o país que compra livro por metro de lombada. Para ostentar conhecimento? Não, para ostentar coisas”, afirma o antropólogo.
Durante o tempo em que trabalhou no país para a agência de notícias “Bloomberg”, Cuadros foi incumbido de encontrar “bilionários escondidos” — pessoas discretas e associadas a empresas de capital fechado. Quanto mais bilionários encontrava, mais repetitivos os códigos de luxo lhe pareciam — a peça mais excêntrica foi uma parede coberta por asas de borboleta em um apartamento de Ipanema, no Rio. Segundo ele, as variações são pequenas entre aqueles que podem transformar seus caprichos em realidade, algo que faz os bilionários de todo o mundo compartilharem uma espécie de “cultura global da riqueza”.
Para serem compreendidos, os desvarios devem portar algum logo de grife. Daniela (nome fictício) comprou uma bolsa por R$ 45 mil durante uma viagem a Nova York. Foi o marido quem insistiu que ela comprasse. E ela concordou para agradá-lo. A bolsa nem havia ido para a vitrine. Se quisesse qualquer outra peça, teria de entrar na “fila”. Uma lista cheia de outras clientes abonadas. Era pagar ou largar. Na volta, a fatura do cartão revelou o gosto do casal por compras. R$ 500 mil. Já excluindo gastos com hotel e passagens na executiva.
Não existe contrato vitalício para as coisas de rico. Seus usuários estão sempre em alerta para saber até onde funcionam, quando aposentá-las e em qual momento comprar a nova grande aposta. As bolsas têm também sua bolsa de valores.
Hoje, um importante termômetro das oscilações é o Instagram. Os posts de uma blogueira em alguma semana de moda pelo mundo aponta o que será usado nas próximas semanas pelo seleto grupo. Para Claudio Diniz, autor do livro “O Mercado do Luxo no Brasil” e diretor-executivo da consultoria Maison du Luxe, essa força virtual também funciona como uma nova forma de riqueza. “Até então, havia quatro pilares para uma pessoa ser considerada afortunada: financeiro, educacional, cultural e rede de contatos. Entra agora o quinto pilar, que é o virtual”, explica ele, substituindo sempre o termo “rico” por “afortunado” (diz que o primeiro traz conotação negativa).
O tempo é o maior rival dos donos do presente. O futuro traz incerteza. O passado é algo que deve ser apagado tanto por “quatrocentões” como pelos novos-ricos. O trabalho acadêmico explica como a velha guarda tenta borrar suas origens, dando a entender que dinheiro e conforto existem “desde sempre” em suas famílias — quando precisam só de duas gerações para ganhar o status de “tradicional”. O livro “Brazillionaires” associa muito esta falta de clareza na origem à maneira desonesta como muitos enriquecem no país. Já os novos-ricos tentam deixar para trás a época das vacas magras e só reforçam as datas das novas e custosas aquisições. Uma frase de uma emergente entrevistada na tese sintetiza essa memória bem seletiva: “Se fui pobre, não me lembro”.copiado https://snack.agenciabistro.com/
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