DIREITO CIVIL ATUAL
O idoso na sociedade da informação: da inclusão social à inclusão digital
A maior parte dos estudos sobre as políticas públicas de inclusão digital priorizam o viés econômico da questão como um dever do Estado, o que constitui um dado real de uma sociedade heterogênea na qual a oportunidade de ascensão social por meio da educação frequentemente esbarra em limitações relativas não apenas no acesso, mas na possibilidade de permanência nas instituições de ensino que deveriam efetivar as oportunidades a um mercado de trabalho cada vez mais excludente em face das rodadas tecnológicas – e as instituições financeiras constituem um exemplo adequado – que inviabilizam a inserção dos jovens que não apresentem a formação esperada e, com isso, os condenam ao desemprego ou ao subemprego.
Tal questão é de inequívoca relevância, mas sua importância não permite que descuidemos de um tema assaz importante que é a inclusão digital do idoso (considerado aqui como aquele que tem idade igual ou superior a sessenta anos, de acordo com o artigo 1º do Estatuto do Idoso – Lei 10.741/037), uma vez que se as políticas públicas concentradas na inclusão digital da criança, do adolescente e do jovem priorizam o futuro , é em tudo perversa a concepção de que o idoso não mais pertenceria à sociedade contemporânea e de que a sua contribuição para a construção de relações sociais mais humanas permaneçam como um conjunto de reminiscências integrantes de um passado cada vez mais longínquo.
Em tal contexto, tanto a subsistência do idoso como o acesso a informações básicas e sua própria qualidade de vida (e aí podemos incluir o aproveitamento de sua valiosa experiência) são limitadas pela exclusão digital sem que se olvide aqui da óbvia constatação de que a exclusão digital do idoso desprovido de uma renda mínima representa um duplo desafio ao acentuar dramaticamente sua vulnerabilidade quando este desconhece as noções mais rudimentares de informática e está na chamada brecha digital que vem a ser a distância entre os que detêm conhecimentos em tal área e os que não detêm.
A vulnerabilidade do idoso encontra seu fundamento no artigo 230 da Constituição Federal sendo inaceitável o argumento de que, com o passar dos anos, a questão da exclusão digital será inevitavelmente “solucionada” pela passagem das gerações, uma vez que há o dever moral e jurídico da Sociedade e do Estado brasileiro amparar os idosos e não negligenciar os compromissos expressos no texto constitucional.
No plano infraconstitucional o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) determina com clareza o dever de assegurar “com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária" e, especificamente quanto à inclusão digital, é imperativo destacar o artigo 21, parágrafo 1 que obriga o Poder Público a criar “oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais a ele destinados” por meio de “cursos especiais para idosos” que “incluirão conteúdo relativo às técnicas de comunicação, computação e demais avanços tecnológicos, para sua integração à vida moderna”.
A “integração à vida moderna”, cada vez mais acelerada pode ser constatada por meio da mudança ocorrida na aquisição de produtos e serviços, antes limitados às lojas e escritórios físicos e, cada vez mais, substituídos pela aquisição efetuada por meio da Internet, o que tornou até despicienda a divisão do estabelecimento empresarial em virtual e físico (ou real).
De qualquer sorte, se o debate acerca da questão terminológica relativa ao estabelecimento empresarial está superada, continua relevante a preocupação com a inclusão digital e com a manifestação da vontade em negócios jurídicos realizados em meio eletrônico.
Acertadamente, Pierre Lévy constatou ainda no início da difusão da Internet que “o problema do ‘acesso para todos’ não pode ser reduzido às dimensões tecnológicas e financeiras geralmente apresentadas”, pois seria insuficiente colocar alguém em frente a uma tela mesmo que a interface fosse das mais acessíveis, uma vez que as políticas públicas devem oferecer possibilidades a alguém “participar ativamente dos processos de inteligência coletiva que representam o principal interesse coletivo do ciberespaço” e, com isso, favorecer a “autonomia das pessoas ou grupos envolvidos”.
Cumpre destacar aqui que sequer começamos a discutir de forma mais ampla os impactos jurídicos que – em nosso país – serão ocasionados pela inteligência artificial e pela possibilidade de admissão da personalidade eletrônica, o que provavelmente causará mais desemprego e uma exclusão ainda mais significativa.
O vocábulo “autonomia” constitui verdadeiramente uma palavra-chave, uma vez que, sua ausência no âmbito informacional atinge dramaticamente os idosos e sintetiza um curioso amálgama em que coexistem benefícios e desafios do aumento da expectativa de vida, da superação de algumas das limitações físicas de outrora e do surgimento de novas limitações que colocam o idoso como alguém dependente de terceiros para declarar seu imposto de renda, para o acesso ao lazer, para o cadastro em programas governamentais e para toda sorte de atividades que dependam do acesso à internet.
De fato, a perda da autonomia do idoso não está mais limitada ao plano físico, uma vez que há – nos dias atuais – significativa impossibilidade de participação em questões que, entre outras, envolvem o lazer (informado em larga escala em meio virtual), comunicação (não apenas por e-mail ou nas redes sociais, mas também pelos telefones, pois a telefonia celular tende a substituir a telefonia fixa e a oferecer aos consumidores predominantemente aparelhos conhecidos como smartphones) até chegar às relações com o próprio Estado (desde as relações com a Previdência Social até com o Fisco).
Em tal contexto, é oportuna a observação de Pérola Melissa Vianna Braga em seu Curso de Direito do Idoso no sentido de que a velhice traz, para muitos idosos, a perda da autonomia e que “na maioria das vezes a família, seguida pela sociedade e pelo Estado, aparece como principal responsável pela expropriação da autonomia do idoso”, pois “a família, sob o pretexto de cuidar do bem-estar do seu idoso, de protegê-lo e poupá-lo, alija-o das decisões e tira sua liberdade de escolha, chegando a decidir o que ele deve comer e vestir e, pior, como deve gastar seu dinheiro” enfatizando que “envelhecer é um direito personalíssimo”, no qual não há qualquer “fórmula, padrão ou protocolos predefinidos”, pois “cada um envelhece de uma forma e ao seu próprio tempo”.
Constata-se assim que o idoso não é autônomo quanto ao uso da tecnologia porque – em regra – depende de terceiros (familiares, amigos ou cuidadores) e não é mais, em tal sentido, o protagonista de sua própria vida e existe um ritmo próprio a ser seguido para que o idoso compreenda adequadamente as tecnologias da informação.
E, assim sendo, já assinalamos que o idoso sem recursos sofre duplamente as agruras da exclusão digital e, quanto ao acesso ao lazer, à educação e à cultura, não podemos olvidar do fenômeno das redes sociais (ainda que estas também tragam riscos, como a própria internet de uma maneira geral) que, no Brasil, contou com inúmeros usuários desde seus primeiros anos com o Orkut (além de outras iniciativas populares nos Estados Unidos da América e que não tiveram tanto impacto no Brasil como o MySpace) até o Facebook, hoje segmentado em interesses como fotografia (Instagram), localização (Foursquare), vinho (Vivino), entre muitos exemplos que poderiam ser mencionados.
A tal ponto é relevante tal questão que foi apresentado um projeto de lei pela Câmara dos Deputados a fim de tratar da chamada “Herança Digital” (PLC 4099/2012) que altera o artigo 1.788 do Código Civil a fim de dispor sobre a sucessão dos bens e contas digitais do autor da herança, sendo a redação a seguinte:
Artigo 1.788 . .........................................................................Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.
Embora a questão possa ter um aspecto patrimonial, há que se observar que a justificativa para a proposta apresentada pelo legislador foi a de que “têm sido levadas aos Tribunais situações em que as famílias de pessoas falecidas desejam obter acesso a arquivos ou contas armazenadas em serviços de internet e as soluções tem sido muito díspares, gerando tratamento diferenciado e muitas vezes injustos em situações assemelhadas”.
Tal projeto teve sua redação final aprovada pela Câmara dos Deputados em 25 de setembro de 2013 e foi remetido ao Senado Federal por meio do Of. n. 291/13/PS-GSE24, no qual consta como Projeto de Lei da Câmara 75, de 2013 e se encontra desde 10 de março de 2015 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) na qual aguarda a designação do Relator.
Questões como essa denotam o quanto muitos debates passam ao largo do idoso (o que resta claro no Brasil, uma vez que nos países em desenvolvimento existe uma assimetria a colocar os idosos de tais países em situação ainda mais dramática do que a daqueles que vivem em países desenvolvidos) e quanto este muitas vezes está insulado socialmente no mundo contemporâneo, ainda que seja prematuro julgar se o esse “mundo virtual” traria ou não benefícios para os idosos romperem um isolamento social, pois algumas medidas são interessantes como – por exemplo – conversas pela Internet para o ensino do inglês, o que foi noticiado pela imprensa e vem favorecendo o contato de idosos norte-americanos e ingleses com jovens ao redor do mundo e aumento o convívio social daqueles.
Sem dúvida alguma vivemos em um tempo em que a velocidade das transformações cotidianas conduz à necessidade de construção e desconstrução de praticamente tudo o que aprendemos anteriormente acentuada por um período de incertezas permanentes.
Tal constatação vem daqueles que estão no epicentro das mudanças trazidas pela sociedade da informação e a exigência de adaptação a tal sociedade traz consigo a necessidade de educação continuada e expõe inequivocamente a fragilidade do idoso.
A exclusão digital do idoso assemelha-se ao analfabetismo em razão da dificuldade de sua inserção no cotidiano, que abrangem desde as atividades negociais até seus momentos de lazer e convívio social, que o limita inegavelmente se não for incluído por meio de programas que o coloquem – como observaram Izaíra Thalita da Silva Lima, Samara Sibelli de Queiroz Nogueira e Taciana de Lima Burgos – como um sujeito ativo em suas tarefas diárias e capaz de interpretar tudo aquilo que o cerca.
Estratégias diversas são apontadas como um meio para que o idoso possa ser integrado à sociedade da informação, tal como a realizada na União Europeia30 por meio do Projeto Silver (Supporting Independent Living for the Elderly through Robotics) que pode ter sua sigla traduzida como “apoio a uma vida independente para os idosos por meio da informática” que tem até um escopo mais amplo, uma vez que pretende garantir que o idoso possa viver em sua própria casa apesar de dificuldades físicas ou cognitiva levando muito além a ideia de autonomia que mencionamos no início.
O projeto Silver permitiu ainda, por meio de pesquisas abertas ao público, um importante debate sobre quais seriam as medidas adequadas para a inserção dos idosos (envolvendo em tal debate diversas faixas etárias) que vão desde as razões da exclusão passando por quem ensinaria (e como seriam ensinados) os idosos até os equipamentos necessários (computador pessoal, tablet).
Em nosso país, entre os estudos sobre a exclusão digital do idoso merece destaque o Mapa da Inclusão Digital desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro em que houve detalhada análise sobre tal exclusão por região do país no ano de 2012.
Igualmente, quanto às propostas concretas para enfrentar o problema da exclusão digital evidencia-se um projeto desenvolvido na cidade de Contagem, em Minas Gerais há muitos anos denominado de “Vida na Terceira Idade”, no qual foi adotada a proposta de quatro passos principais para a inclusão digital do idoso: 1) Oferta de computadores conectados em rede; 2) Conexão dos conhecimentos obtidos com aqueles que podem ser utilizados no trabalho e no cotidiano dos idosos; 3) Investimento financeiro; 4) Aproximação das mídias digitais de forma diversa da tradicional rompendo com o distanciamento do idoso, motivando a utilização do equipamento e estimulando sua curiosidade.
Concluímos nossa análise sobre a exclusão digital do idoso ressaltando que uma proposta não exclui outra e destacando que a solução desenvolvida em Contagem (MG) há muitos anos foi eficaz porque muito se escreve sobre a exclusão digital, mas poucas soluções são apresentadas porque descoladas de nossa realidade e se aqui mencionamos o Projeto Silver desenvolvido na União Europeia somente o fizemos para refletir sobre a dimensão de políticas públicas globais que podem ser adotadas no futuro, mas sempre ressalvando que as soluções mais simples continuarão a ser as mais efetivas.
A apresentação de propostas simples e efetivas respeita sempre o tempo do idoso, mas simultaneamente não ignora a urgência de sua inserção na sociedade da informação, até porque os primeiros representantes da geração que nasceu no ano 2000 já atingiram a maioridade civil no dia 1º de janeiro de 2018 e tal geração não visualiza qualquer barreira na tecnologia, sendo oportuno salientar que, agora chegou à maioridade, passou a compartilhar com as demais gerações o dever de, com base na solidariedade intergeracional, efetivar os meios adequados da inclusão digital.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).
copiado https://www.conjur.com.br/2
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