A Europa dividida. O verdadeiro objetivo do terrorismo
Por: Christian Bangel. Jornal Die Zeit (Hamburgo)
Há dias que marcam um antes e um depois. No momento em que dois terroristas irrompiam nas instalações do Charlie Hebdo, em Paris, e matavam 12 pessoas, discutia-se nesta redação o novo romance de Houellebecq, que imagina a França de 2022 sob um regime islamita. Debatia-se o significado do movimento Pegida (Patriotas europeus contra a islamização do Ocidente) que se encontra em curva ascendente na Alemanha, as várias percepções existentes a respeito do Islão e do islamismo na Europa e a possibilidade de uma forte radicalização dos cidadãos de muitos países europeus, nos próximos dez anos.
Então, chegou a notícia. E começou o depois. Na redação do Charlie Hebdo o ambiente não devia ser muito diferente da atmosfera que se respirava na nossa. O ronronar das impressoras, o resmungar dos redatores, uma gargalhada aqui, um berro acolá. O quotidiano de homens e mulheres para quem relatar o que se passa no mundo é a sua profissão. No Charlie Hebdo faziam-no através da sátira. Sabemos que podemos ser insultados por causa do nosso trabalho, processados e até mesmo ameaçados de morte. Contudo, fazemo-lo porque é importante e porque amamos o nosso trabalho, em especial quando suscita reação.
A nossa mais bela conquista
O que aconteceu em Paris, porém, não foi uma manifestação de oposição. Foi a expressão de uma visão do mundo desprovida de qualquer argumentação e de qualquer ideia, de qualquer sentido de humor ou de qualquer debate. Essa visão do mundo só conhece a sua verdade e ameaça todos os que não a partilham. O que aconteceu em Paris foi a negação da nossa mais bela conquista: a liberdade de expressão.
Será preciso insistir neste ponto? Sim!
Os terroristas não tinham por alvo apenas aqueles cujo trabalho depende do direito a exprimir-se livremente, mas todos os que, na Europa, dispõem dessa liberdade e a amam, incluindo, como é óbvio, muitos muçulmanos. O policial Ahmed Merabet, que os terroristas mataram a sangue-frio, era muçulmano.
Será preciso insistir neste ponto? Sim!
Muitos europeus consideram o Islã uma religião violenta e incompatível com a democracia. Na França, há muito tempo que Marine Le Pen, militante da extrema direita, se projeta como candidata presidencial. Na Alemanha, há já algum tempo que se registra, na rua, uma hostilidade inédita contra o Islã. Tudo isso quando milhões de muçulmanos vivem na Europa, trabalham na Europa e votam na Europa, há várias gerações. Esses homens e mulheres são cidadãos como nós!
A acreditar nas sondagens, uma maioria de alemães já considerava o Islã uma ameaça antes dos atentados. Pouco depois da notícia dos ataques, o vice-presidente do partido AfD (Alternativa para a Alemanha), Alexander Gauland, felicitava o movimento Pegida pela justeza dos seus avisos acerca do terrorismo islamita.
Depois de um ataque desses contra a liberdade de expressão, é decerto coerente que surjam manifestações de grupos interessados em incitar o ódio contra os meios de comunicação considerados “mentirosos”. Embora isso possa não funcionar: ninguém sabe quantas pessoas poderá o Pegida congregar, no futuro.
Por outro lado, temem-se novos atentados na Europa. Há muito tempo as autoridades se preocupam com o regresso de cidadãos europeus arregimentados pelo Isis (Estado Islâmico). O pior seria que a partir de agora reinasse a desconfiança no seio de uma ampla maioria de pessoas, muçulmanas e não muçulmanas, que não são islamitas nem partidárias do Pegida.
Algo assim já aconteceu. Há dez anos, os atentados de Madri e de Londres e o assassinato do realizador holandês Theo van Gogh instilaram o medo na Europa. Em muitos países, os partidos de extrema-direita ganharam adeptos, o que levou não à pacificação mas sim à exacerbação das tensões.
Islã na Europa não vai desaparecer
A Comunidade Europeia está se desagregando por causa do efeito de um círculo vicioso feito de desconfiança recíproca. Essa desconfiança é fonte de mais violência e não apenas por parte dos islamitas. Na Alemanha, até agora, os terroristas ameaçavam sobretudo muçulmanos. Os assassinatos em série cometidos por militantes neonazistas do NSU (Clandestinidade Nacional Socialista, um pequeno grupo acusado de ter matado oito turcos, um grego e uma mulher policial, entre 2000 e 2007) datam de há apenas alguns anos.
O Islã está presente na Europa e não vai desaparecer, apesar do que alguns gostariam. Não deve despertar medo nem rejeição e tanto os muçulmanos como os não muçulmanos devem velar para que assim seja. Devem ser feitas todas as perguntas, devem ser manifestados todos os receios. É para isso que existe a liberdade de expressão.
Também devemos aprender a distinguir entre o Islã e o islamismo extremista, da mesma forma que entre os conservadores e os neonazistas.
O inimigo não é o Islã, é o terrorismo. Os assassinos de Paris queriam acima de tudo dividir a Comunidade Europeia entre muçulmanos e não muçulmanos: seremos fortes o bastante para evitar tal divisão?
A BLASFÊMIA É NECESSÁRIA! POR QUE?
O direito de criticar, e inclusive de ofender, é indissociável da democracia. Deve ser defendido, em especial quando é ameaçado pela violência
Por: Ross Douthat. Jornal: The New York Times
Transcorrido mais de um mês após o massacre nas instalações do jornal satírico francês Charlie Hebdo, quero propor três esboços de princípios sobre a blasfêmia, numa sociedade livre.
1. O direito de blasfemar (ou ofender de outras formas) é fundamental para a ordem democrática.
2. Blasfemar não sendo um dever, a liberdade de uma sociedade não é proporcional à quantidade de blasfêmias em circulação. Há situações em que é razoável criticar a escolha da ofensa (religiosa ou outra), denunciando-a como inutilmente provocatória, desnecessariamente cruel ou meramente estúpida.
3. Em geral, a legitimidade e a sensatez de criticar um discurso ofensivo é inversamente proporcional ao perigo mortal em que o blasfemo incorre.
O primeiro ponto subentende que as leis contra a blasfêmia (nos tempos que correm quase sempre designadas por “restrições ao incitamento ao ódio”) são intrinsecamente antidemocráticas. O segundo ponto significa que uma certa contenção, de ordem cultural, no que se refere a expressão da blasfêmia é compatível com as regras da democracia, e que não há nada de antidemocrático em pôr em causa a sensatez ou a decência de cartoons e artigos que, de forma intolerante ou grosseira, ataquem o que uma parte da população considere sagrado.
É certo que tal questionamento pode resvalar para a hostilidade contra a democracia, consoante o grau da pressão exercida e o ponto a partir do qual a definição de “ofensa” se torna elástica. Mas as nossas liberdades fundamentais não ficam obrigatoriamente em perigo quando, por exemplo, a Liga Anti-Difamação norte-americana critica Mel Gibson pelo retrato do sinédrio em A Paixão de Cristo, ou quando a Liga Católica condena manifestações artísticas como Piss Christ (de Andres Serrano, 1987).
Tal como também não são postas em risco pela ausência de caricaturas grotescas de Moisés ou da Virgem Maria nas páginas do Washington Post ou do New York Times. A liberdade implica, sem dúvida, o direito de ofender, mas permite igualmente que as pessoas, as instituições e as comunidades exijam e pratiquem a contenção.
Não lhes mostremos medo
Se um grupo bastante grande de indivíduos está pronto a matar quem tenha dito uma determinada coisa, então é quase certo que essa coisa devia ser dita. Não o dizer equivaleria a dar aos apóstolos da violência direito de veto sobre a civilização democrática, logo, essa civilização deixaria de o ser.
A liberdade não depende de todos estarem sistematicamente ofendendo os outros, sendo preferível uma sociedade na qual a ofensa pela ofensa seja limitada e não generalizada.
Contudo, estamos numa situação em que se aplica o meu terceiro princípio. Todos sabiam que o tipo de blasfêmia cometido pelo Charlie Hebdo envolvia o risco de ter consequências mortais... e esse tipo de blasfêmia é precisamente aquela que é preciso defender, por servir um bem maior. É preciso ser mais insolente, e não menos, porque não se pode permitir que os assassinos pensem que a sua estratégia dá bons resultados. Muitos dos que, no Ocidente, criticaram os editores do Charlie viram o problema ao contrário. Da Casa Branca de Obama à revista Time, no passado, ou do Financial Times à Liga Católica norte-americana, hoje, todos acusaram o semanário de ter sido desnecessariamente ofensivo e “inflamatório”, quando é precisamente a violência que justifica o conteúdo inflamatório.
Se os cartoons só dessem origem a indignados comunicados de imprensa e comentários furibundos em blogs, poderia-se perceber o sentido das palavras de Tony Barber (chefe de redação para a Europa do Financial Times). Ele escreveu que publicações como o Charlie Hebdo “fingem bater-se pela liberdade provocando os muçulmanos, mas, na verdade, estão apenas sendo estúpidas”.
Quando o fato de publicar envolve o risco de se ser massacrado, quem publica está, de fato, lutando pela liberdade. É preciso, portanto, que os nossos concidadãos ponham de lado a suscetibilidade e se mobilizem em nossa defesa.
Com demasiada frequência, é o contrário que se passa: as pessoas estão dispostas a invocar a liberdade de expressão para justificar quase todo o tipo de ofensas, mas fogem ao menor sinal de perigo: uma prova de que, afinal, ir até ao fim pode requerer coragem.
Deveremos, independentemente do contexto, aclamar todas as ofensas deliberadas? Não! Mas diante dos fuzis, a liberdade exige que as defendamos.
AMALDIÇOADOS SEJAM
Os canalhas que se dizem discípulos de Alá
Neste contundente artigo, o jornalista tunisino Slaheddine Schicha (que é muçulmano) deixa bem clara qual é a posição da imensa maioria dos muçulmanos a respeito do terrorismo praticado pelo Estado Islâmico.
Por: Slaheddine Schicha, Fonte: Jornal Kaphai, Túnis
Os fascistas que mataram os jornalistas do Charlie Hebdo são os mesmos que assassinam policiais e soldados na Tunísia e semeiam a devastação no Iraque, na Síria e na Líbia. Assim, só por que o acaso os fez nascer numa família muçulmana, dois ou três indivíduos sinistros autoproclamam-se porta-vozes dos muçulmanos e apresentam-se como representantes de Maomé, ou até mesmo de Alá, na Terra.
Quanta pretensão! Quanta vaidade! Quanta arrogância!
Esses miseráveis, esses pulhas, esses zésninguéns presumem vingar o Profeta e agir em nome de Deus e permitem-se matar pessoas que não lhes fizeram nada. Esses criminosos, esses bandidos, esses fascistas permitem-se destruir a inteligência, o humor, a cultura, o talento, gritando “Allahu Akbar”, esquecendo ou ignorando que Alá é sobretudo “o muito misericordioso”, como Ele mesmo recorda no início de cada surata do seu livro santo, o Corão.
Ao assassinarem os jornalistas Charb, Cabu, Wolinski, Tignous, Maris e os outros, esses criminosos fanáticos e imbecis fazem reféns os muçulmanos da França e do resto do mundo. Ignoram que, ao cometerem esse ato ignóbil, privaram a comunidade muçulmana da França dos seus defensores mais sinceros, mais constantes e mais antigos. Contudo, não ignoram de modo algum que atacaram o coração da democracia, o coração da República: a liberdade de expressão e a liberdade de consciência.
Esses fascistas são agentes e promotores autoproclamados de uma ordem totalitária, a mesma ordem que assassina polícias e soldados, na Tunísia, que emitiu uma fatwa contra Kamel Daoud, na Argélia, que semeia a morte e a devastação no Iraque e na Síria, e que está destruindo a vizinha Líbia...
A maldição do mundo árabe e muçulmano é a autoproclamação. A ausência de intermediário, a ausência de clero e a autonomia e liberdade dadas ao crente na sua relação com Deus são as qualidades específicas do lslã que, paradoxalmente, estão sendo pervertidas por uma semialfabetização que dá um acesso sumário e superficial aos escritos: o Corão e o Hadith. Essa “santa ignorância”, segundo a expressão genial encontrada por Olivier Reg (cientista político especialista em Islã), permite que qualquer um se autoproclame “xeique”, “imã”, “emir”, “califa”...
Uma sociedade, uma cultura, uma religião que permitem tais comportamentos e que produzem tais indivíduos deve interrogar-se e pôr-se em causa. O talentoso jornalista argelino Kamel Daoud tem mil vezes razão, ao afirmar: “Se não enfrentarmos a questão de Deus no chamado mundo árabe, não iremos reabilitar o homem, não iremos avançar... A questão religiosa tornou-se vital no mundo árabe. Para podermos avançar, é preciso que a analisemos, é preciso refletir sobre ela”
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