"Praticamente em nenhum instante da história do país (colônia,
império e república) os brasileiros puderam ter acesso ao pau-brasil
para uso prático, estudos botânicos ou desfrute estético. Trata-se de
uma espécie que, de certo modo, foi 'sequestrada' do convívio com o
povo. Ela é a imagem de uma riqueza que sempre foi nossa e nunca pôde
ser nossa"
Com nome científico de Caesalpinia echinata, o Pau-Brasil
foi declarado árvore símbolo da nação brasileira, e tem seu dia oficial
comemorado no dia 3 de maio. Árvore belíssima, nobre e preciosa, ela é a
melhor metáfora da história do nosso país: também ele imenso, rico,
generoso... e desde sempre espoliado até à beira da extinção.
Pau-Brasil. Metáfora vegetal de um país
Com nome científico de Caesalpinia echinata, o
Pau-Brasil foi declarado árvore símbolo da nação brasileira, e tem seu
dia oficial comemorado no dia 3 de maio. Árvore
belíssima, nobre e preciosa, ela é a melhor metáfora da história do
nosso país: também ele imenso, rico, generoso... e desde sempre
espoliado até à beira da extinção.
29 de Abril de 2015 às 18:20
Como crianças inocentes, nossos índios desde os anos da
Descoberta trocaram imensas quantidades de pau-brasil por bugigangas
trazidas por europeus, sobretudo franceses e portugueses
Por: Luis Pellegrini
Hoje, quem quer conhecer a árvore que deu nome ao país precisa
visitar algum jardim botânico, sobretudo os de São Paulo e do Rio de
Janeiro, onde cientistas apaixonados cuidam com carinho de uma ou duas
dezenas de espécimes frondosos que formam dois pequenos bosques nas
encostas de colinas suaves. Fora dos jardins botânicos, só mesmo
embrenhando-se em algum raro trecho de Mata Atlântica remanescente no
leste e no nordeste. Nesses pedaços de floresta, com muita sorte e a
ajuda de um mateiro experiente, pode-se encontrar ainda um ou outro
exemplar selvagem de pau-brasil. A maior parte deles exemplares velhos,
condenados ao desaparecimento. Sua reprodução tornou-se extremamente
difícil por causa da exiguidade do seu número – o que impede uma boa
genética de polinização – bem como, segundo foi descoberto, pelo quase
total desaparecimento de uma pequena abelha especializada que, indo de
flor em flor, e de árvore em árvore, é ferramenta indispensável para que
essa mesma polinização ocorra.
No centro da foto, um belo exemplar de pau-brasil. Jardim Botânico de São Paulo
Em 1500, no entanto, quando os europeus aqui chegaram, o pau-brasil
era uma das árvores mais abundantes da Mata Atlântica. Seu número podia
ser contado em dezenas de milhões. Mas ele logo começou a diminuir: uma
derrubada predatória teve início, e nunca mais parou até o século 20
avançado, quando a extrema escassez desse vegetal inviabilizou sua
exploração econômica.
Capa do livro 'Pau-Brasil', vários autores, com organização de Eduardo Bueno, Axis Mundi Editora
O livro definitivo
O livro “Pau-Brasil”, da Axis Mundi Editora relata a epopeia
histórica, econômica e cultural desse primeiro ciclo da economia
brasileira. Seus autores, capitaneados pelo jornalista-historiador
Eduardo Bueno, apresentam a árvore que deu nome ao país como uma
metáfora da nossa difícil realidade passada e presente, bem como das
incertezas do nosso futuro.
Começam por explicar que o nome Brasil não deriva da palavra
portuguesa "brasa" ou "braseiro", como outrora os professores ensinavam
às crianças. Sua verdadeira origem é o termo celta brésil, que significa
"vermelho". Os franceses da Normandia - que logo após o Descobrimento
se tornaram os primeiros traficantes de pau-brasil para a Europa -
batizaram com esse nome a preciosa madeira rubra que aqui vinham buscar.
A palavra brésil difundiu-se a tal ponto que, segundo o historiador
João Ribeiro (1860-1944), "Brasil" na verdade é um galicismo: o primeiro
galicismo da língua ‘brasileira".
O desembarque de Cabral, óleo de Oscar Pereira da Silva
Escrito por oito autores nacionais e estrangeiros - Ana
Roquero, Fernando Lourenço Fernandes, Gwilym P. Lewis, Haroldo
Cavalcante de Lima, Jean-Marc Montaige, Max Justo Guedes, Nivaldo
Manzano, além de Eduardo Bueno, “Pau-Brasil” apresenta rica iconografia,
obtida na famosa biblioteca de José Mindlin.
Detalhe
do mapa 'Terra Brasilis' (Atlas Miller, 1519), já mostra o corte da
madeira pau-brasil. Atualmente na Biblioteca Nacional da França
No capítulo “Pau-Brasil: uma biografia”, os botânicos Haroldo Cavalcante
de Lima, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e Gwilym P. Lewis, do
Royal Botanic Gardens, de Londres, escrevem uma espécie de
"árvore-genealógica" do pau-brasil. Ela nos remete às origens do
processo que recobriu de florestas um planeta antes desnudo. Traçam, a
seguir, uma história da floresta brasileira, onde explicam que o
pau-brasil praticamente não tem parentes: trata-se de uma "espécie
relictual", ou seja, uma espécie "deixada para trás".
Os melhores arcos para instrumentos de corda são feitos de pau-brasil
Faltam informações precisas
Haroldo também assina o capítulo “Raízes do futuro”, epílogo do
livro, onde traça as estratégias para a preservação da espécie e lança
um apelo vigoroso às autoridades e a todos os brasileiros interessados
não apenas no pau-brasil, mas em preservação ambiental, equilíbrio
ecológico e desenvolvimento sustentável. Ele explica que os dados sobre a
distribuição geográfica do pau-brasil, por exemplo, continuam
espantosamente incompletos: "Em pleno século 21, simplesmente não
existem informações precisas sobre a distribuição da espécie nem
estimativas do tamanho das populações ou da área total de florestas com
pau-brasil." Haroldo enumera e localiza as reservas restantes dessa
madeira e dos esforços que estão sendo desenvolvidos, principalmente em
reservas localizadas no Nordeste, para aumentar as populações dessa
árvore através de técnicas de reflorestamento. Por último, aborda uma
curiosidade: com a madeira do pau-brasil são confeccionados os melhores
arcos de violino do mundo, o que, devido à raridade dos exemplares
remanescentes, por si só constitui grave ameaça de extinção da espécie.
Velho exemplar de pau-brasil no Jardim Botânico do Rio de Janeiro
O botânico carioca Fernando Lourenço Fernandes escreveu
dois capítulos do livro. No primeiro deles, “O enigma do pau-brasil”,
ele desenvolve uma abordagem surpreendente. Afirma que os portugueses
certamente não poderiam ter descoberto o "pau-de-tinta" no emaranhado da
Mata Atlântica com aquela rapidez que lhes permitiu, menos de cinco
anos após o descobrimento oficial do Brasil, já estarem enviando para a
Europa 1.200 toneladas da madeira por ano, como revelam documentos da
época. As pesquisas de Fernando apontam para uma tese que a cada dia
ganha mais adeptos: o pré-descobrimento do Brasil. Ou seja, o estudo do
chamado "ciclo do pau-brasil" fortalece a tese de que os portugueses
estiveram no Brasil antes de Cabral.
Flores de pau-brasil
No capítulo seguinte, “A feitoria da Ilha do Gato”,
Fernando Fernandes procura a localização exata da primeira feitoria de
pau-brasil instalada no litoral brasileiro. Mesclando argumentos
geológicos, etnológicos, arqueológicos, iconográficos, hidrográficos e
históricos, ele revela que a primeira feitoria portuguesa no Brasil
ficava na Ilha do Gato (hoje Ilha do Governador), em meio à Baía de
Guanabara. Este seria, segundo o autor, o verdadeiro lugar de nascimento
da nação brasileira.
Em várias reservas florestais brasileiras replantam-se mudas de pau-brasil
Uma viagem colorida
O almirante Max Justo Guedes é uma das maiores
autoridades nacionais em cartografia, história e viagens exploratórias
ao Brasil no século 16. É dele o capítulo “La terre du Brésil:
contrabando e conquista”. Guedes examina as questões semânticas
relativas ao nome Brasil e a miríade de implicações que o tráfico dessa
madeira acarretou.
Várias tonalidades de vermelho obtidas com pigmentos do pau-brasil
A espanhola Ana Roquero, especialista em tinturaria e moda dos
séculos 16 e 17, nos convida em seu capítulo “Moda e tecnologia” a
embarcar numa viagem realmente colorida. Trata-se, na verdade, de uma
jornada em direção ao poder e ao significado da cor vermelha. O trajeto
se inicia na mística púrpura dos fenícios e passa pelo "brasil asiático"
de Marco Polo, antes de podermos vislumbrar o papel desempenhado pelo
pau-brasil no mundo da moda, das finanças e da indústria têxtil
européias. Suas explicações permitem entender por que o pau-de-tinta
moveu tantas fortunas e tantos interesses.
Pintura do século 16, mostra tintureiros franceses tingindo tecidos com pigmento extraído do pau-brasil
O capítulo “A madeira e as moedas”, do jornalista Nivaldo Manzano,
aborda sobretudo as questões econômicas relativas ao ciclo do
pau-brasil. Sua análise demonstra que temas como monopólio,
privatização, tributação excessiva, contrabando, pirataria, espionagem
industrial, globalização, ineficiência, corrupção, reserva de mercado,
concorrência desleal e dívida externa - tão presentes na realidade de
hoje de nossa nação - têm sua origem num passado muito mais remoto.
Surgiram e se desenvolveram a partir da própria descoberta do Brasil e
da primeira espoliação nele cometida - a do pau-brasil.
O
painel 'L'Ile du Brésil' foi esculpido no século 16 em madeira de
pau-brasil e mostra a derrubada das árvores. Está no Museu de Rouen,
França
Num livro sobre o pau-brasil não poderia faltar a
participação de um francês. Além do mais, de um francês da Normandia, de
todas as regiões francesas a que mais teve trato com o Brasil e com o
tráfico de pau-brasil no primeiro século após a descoberta. Esse francês
é Jean-Marc Montaigne, talvez o mais atilado e dedicado pesquisador das
relações entre o Brasil e a Normandia naqueles tempos. As descobertas
que ele fez e as conclusões a que chegou são surpreendentes e certamente
darão origem a muita reflexão. No capítulo que assina, “O índio ganha
relevo”, Jean-Marc confirma aquilo que os historiadores brasileiros já
sabiam: as relações que os franceses estabeleceram com as civilizações
indígenas do litoral brasileiro foram, em geral, bastante cordiais e
amistosas. Ao contrário dos portugueses, que vinham para conquistar
terras e nelas se estabelecer, os franceses da Normandia queriam apenas
fazer bom comércio. Davam aos índios produtos como facas, anzóis, roupas
- e principalmente contas de vidro e bonés enfeitados com penas de galo
- e recebiam deles toneladas de pau-brasil com as quais enchiam os
porões de seus navios e as levavam para a Europa. O trato era tão
cordial que foram produzidos inclusive "dicionários"
normando-tupi-guaranis, contendo principalmente fórmulas de cortesia.
Jean-Marc descobriu vários originais desses glossários, algumas páginas
dos quais são reproduzidas no livro Pau-Brasil.
Capítulo 'O índio ganha relevo', de Jean-Marc Montaigne, no livro 'Pau-Brasil'
Influência da cultura indígena
O tráfico dessa madeira, como conta Jean-Marc, deu
origem a imensas fortunas na Normandia. Até aquela época, a cor vermelha
era privilégio dos reis franceses. Os pigmentos que permitiam tingir de
vermelho os tecidos eram caríssimos, inacessíveis à população. Com a
chegada do pau-brasil tudo mudou. Qualquer dona-de-casa podia produzir
em seu fogão doméstico as tintas para tingir seus tecidos com infinitas
graduações de cores rubras. O pau-brasil permitiu que alguns armadores
normandos, como foi o caso de Jean Ango, por exemplo, acumulassem poder e
fortuna superiores às do próprio rei.
Ao mesmo tempo - e nisso está a originalidade do trabalho de
Jean-Marc Montaigne -, o contato com as culturas indígenas produziu
insuspeitadas e fortes influências na mentalidade francesa e depois na
da Europa como um todo. Influências não apenas restritas à moda, como
foi o caso do uso de penas e plumas nos chapéus - obviamente inspirado
pelos cocares e adornos indígenas -, que se tornou moda avassaladora
tanto para as mulheres quanto para os homens.
Índios trocam toras de pau-brasil por bugigangas trazidas pelos franceses
Essas influências tiveram reflexos importantes na própria mentalidade
e maneira de ser dos europeus. Jean-Marc observa que, naqueles tempos, o
único modelo de organização social e de poder conhecido era o regime
absolutista. O rei tinha direito quase de vida e morte sobre seus
súditos, e pouquíssimos eram os que ousavam sequer imaginar uma situação
diferente. Pois bem: muitos milhares de franceses vieram ao Brasil por
causa do tráfico, marinheiros, oficiais, militares, comerciantes, gente
da nobreza. No contato com nossos índios, eles se deparavam com uma
organização social e com uma postura de vida completamente diferente,
infinitamente mais livre e feliz. Os índios andavam nus, o governo não
era exercido de forma absolutista por um único indivíduo, mas sim
repartido entre o cacique, o pajé e um conselho de velhos sábios da
tribo; e a relação entre homens e mulheres era muito mais igualitária do
que na Europa. Ao voltar para casa, nas ruas e praças, nas tavernas,
nas casernas, na própria corte, eles contavam o que tinham visto. Para
resumir: segundo Jean-Marc, tudo isso exerceu enorme influência,
inclusive na formação dos vários movimentos humanistas que começaram a
pipocar na Europa desde então.
Infográfico 'A exploração ao longo dos séculos', arquivo do jornal 'O Estado de São Paulo'
Reflexos materiais dessas influências podem ser vistos até
hoje em vários monumentos arquitetônicos normandos, casas, palácios,
igrejas, decorados com relevos em pedra ou madeira onde podem ser
vistos, esculpidos, índios brasileiros nas mais diversas situações.
Fotos tiradas nas cidades de Rouen, Honfleur, Saint Valery e Dieppe,
entre outras, são reproduzidas no livro Pau-Brasil e dão uma idéia da
dimensão que o contato entre normandos e índios brasileiros assumiu
naquela época. Várias famílias indígenas foram inclusive levadas nos
navios para a Normandia. A maioria nunca mais voltou. Alguns índios e
índias acabaram se casando com brancos normandos, produzindo
descendentes que até hoje moram lá. Em Rouen e Dieppe, no verão,
costumava-se organizar festas "brasileiras", uma espécie de carnaval
alegre em que boa parte da população se vestia de "índio" e saía pelas
ruas a dançar. O pau-brasil foi motor de tudo isso.
Magnífico exemplar de pau-brasil no interior da Mata Atlântica (Bahia)
Uma espécie sequestrada
No epílogo de Pau-Brasil, no capítulo intitulado
“Raízes do futuro”, Eduardo Bueno e Haroldo Cavalcante Lima desenvolvem
de modo ainda mais brilhante o significado do pau-brasil como metáfora
de nossa nação. Não apenas uma metáfora econômica, mas também como um
símbolo da própria identidade política, cultural e social do Brasil.
"Praticamente em nenhum instante da história do país (colônia,
império e república) os brasileiros puderam ter acesso ao pau-brasil
para uso prático, estudos botânicos ou desfrute estético. Trata-se de
uma espécie que, de certo modo, foi 'sequestrada' do convívio com o
povo. Ela é a imagem de uma riqueza que sempre foi nossa e nunca pôde
ser nossa", comentam os autores. Eles concluem: "Eis aqui a atualidade
da metáfora: já quase desde o primeiro dia da aventura colonial até a
derrubada do último pé 'protegido' pelo monopólio, foi-nos negada a
experiência cultural do pau-brasil. Negada como espécie botânica
incorporada ao nosso mobiliário e às nossas construções; como tintura
ligada às nossas cores, às nossas roupas e à nossa indústria têxtil;
como espécie relacionada à agronomia, à silvicultura ou à própria
paisagem. O pau-brasil é, assim, a metáfora mais bem acabada, mais
perfeita e mais pertinente dos recursos naturais do Brasil: o símbolo
botânico da usurpação da nossa cidadania e da nossa própria omissão ao
longo do processo. O pau-brasil é a metáfora vegetal do Brasil que
poderia ter sido, que deveria ter sido, e que ainda não é. Até quando
não o será?"
Interessados em mais informações ou para adquirir o livro
“Pau-Brasil” podem se dirigir a:
http://www.axismundieditora.com.br/produto/pau-brasil--eduardo-bueno-13
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