"O PL 4330 é um ataque direto à CLT, a
legislação que permitiu ao trabalhador brasileiro emancipar-se das principais
heranças do mundo liberal-policial da República Velha, que vigorou após a
abolição da escravatura", critica Paulo Moreira Leite, diretor do 247 em Brasília;
ele resgata o papel de Getúlio Vargas, que "usou a força da ditadura do
Estado Novo para assegurar garantias aos assalariados e definir obrigações às
empresas"; de João Goulart, o primeiro ministro do Trabalho comprometido
com a CLT; e de Lula, cuja ascensão à presidência "seria impensável se os
trabalhadores brasileiros não tivessem a garantia elementar de cidadania
propiciada pela carteira de trabalho"; jornalista destaca os problemas da
terceirização - que passam pela menor segurança do trabalhador e o
enfraquecimento dos sindicados - e faz novo apelo para que a presidente Dilma
vete o projeto
·
16 de Abril
de 2015 às 12:00
A
presença de Luiz Inácio Lula da Silva na mobilização contra o PL 4330 só vem
demonstrar a necessidade de um debate essencial para o futuro do Brasil. Lula
disse que a derrota do projeto é um "ponto de honra" dos
trabalhadores.
O caráter
impopular do projeto se confirma pelo crescimento dos protestos nos últimos
dias. O movimento na base da sociedade se ampliou e levou a UGT, terceira maior
central do país, construída no setor de serviços – onde o inferno da
terceirização se faz sentir com toda intensidade — a abandonar o bloco
favorável ao PL 4330 e exibir suas faixas nos protestos de rua, ontem.
O rolo
compressor comandado por Eduardo Cunha na Câmara de Deputados, que pretendia
garantir a votação de qualquer maneira, inclusive atropelando o regimento —
como demonstrou uma questão de ordem colocada pelo deputado Alessandro Molon
(PT-RJ) há uma semana — foi desativado ao menos provisoriamente. Numa votação
significativa, o plenário definiu, de saída, que o projeto 4330 não se aplicará
aos trabalhadores de empresas estatais. A votação dos destaques, marcada para
ontem, foi adiada por uma semana, pelo receio de derrotas importantes. Até lá a
iniciativa se encontra com os adversários da terceirização.
A
mobilização dos próximos dias irá definir o destino do projeto, que ainda
precisa ser votado pelo Senado e depois chegará à mesa de Dilma Rousseff para
sanção ou veto.
(No dia 9
de abril, horas depois da primeira votação na Câmara, você podia ler, aqui
neste espaço, um artigo com o título "Veta, Dilma.")
Lula
defendeu ontem engajamento de Dilma Rousseff na luta contra a terceirização e
está correto. Vagner Freitas, presidente da CUT, lembrou que "Eduardo
Cunha não manda no Brasil." Também está correto.
O PL 4330
é um ataque direto à CLT, a legislação que permitiu ao trabalhador brasileiro
emancipar-se das principais heranças do mundo liberal-policial da República
Velha, que vigorou após a abolição da escravatura — quando os trabalhadores
saíram do cativeiro para o mercado de trabalho, sendo obrigados a sujeitar-se a
todo tipo de exploração, fazendo direito apenas ao porrete, à prisão e à
expulsão do país — muitas lideranças eram estrangeiras — quando ousavam
revoltar-se.
A CLT é
uma conquista tão essencial, um divisor de águas tão profundo, que pensadores
como Wanderley Guilherme dos Santos já disseram que a luta por sua revogação é
o único ponto programático que uniu a elite brasileira de forma permanente nos
últimos 70 anos.
Getúlio
Vargas usou a força da ditadura do Estado Novo para assegurar garantias aos
assalariados e definir obrigações às empresas que eram reclamadas há muito
tempo — e nunca foi perdoado por causa disso, num ódio que em 1954 lhe custou a
vida. João Goulart, o primeiro ministro do Trabalho comprometido com a CLT,
inclusive para reajustar o salário mínimo de acordo com a inflação, o que seus
antecessores se recusaram a fazer, foi um presidente que enfrentou uma
tentativa de golpe antes de ser empossado, em 1961; acabou derrubado pelos
militares em 1964; e foi perseguido até o fim de sua vida: a ditadura só
permitiu que retornasse ao país quando estava morto. A ascensão de um líder
operário à presidência da Republica, em 2003, seria impensável se os
trabalhadores brasileiros não tivessem a garantia elementar de cidadania
propiciada pela carteira de trabalho, documento capaz de retirar a pessoa comum
de várias situações de aperto, inclusive quando é incomodada na rua numa batida
policial. Treze anos depois da chegada de Lula ao Planalto, o país inteiro
assiste ao programa cruel e seletivo de ataque e perseguição ao PT e seu
governo, sem paralelo na história de nossa democracia.
A
hipocrisia ideológica de nossa época colocou em circulação a visão de que toda
garantia oferecida pelo Estado — inclusive a legislação trabalhista — não passa
de uma forma de tutela contra as liberdades e direitos de cada cidadão. Nos
Estados Unidos, esse conservadorismo mais extremo, na escola Tea Party, a ala
mais à direita do partido republicano, condena todo subsídio a saúde publica
como uma etapa capaz de levar a construção de um regime socialista. No Brasil,
diz-se que a CLT uma ameaça a iniciativa individual, ao empreendedorismo e ao
espírito competitivo — valores tão em moda entre consultores, executivos e
jovens empresários.
São
fantasias, na verdade. Estamos falando de distribuição de renda e bem-estar
social, reivindicações mais do que necessárias num país como o nosso. O debate
sobre a terceirização chegou ao país há mais de duas décadas, junto com a
privatização de grandes empresas estatais. Em nome do combate ao chamado
"Custo Brasil," o argumento era que o Brasil precisava enfrentar o
"custo do trabalho", eufemismo que confirma que nenhum advogado da
terceirização está preocupado em melhorar o destino dos 12 milhões de
brasileiros que sobrevivem nesta situação — apenas pretende oferecer
trabalhadores mais baratos. Estamos falando, como ensina um estudo do DIEESE de
1993 (" Os trabalhadores frente a terceirização") de problemas como:
–diminuição
de salários;
–redução
de benefícios sociais;
—
diminuição da força de trabalho;
—
jornadas mais extensas;
–piora
das condições de saúde e segurança;
—
desorganização da representação sindical.
É uma
realidade tão crua que foi preciso aguardar por um Congresso eleito a peso de
ouro pelos empresários para que o 4330 pudesse dar sinal de vida depois de
hibernar por dez anos, em função do receio de confrontar a reação da maioria da
população. Quando subiu à tribuna da Câmara para declarar seu voto contra o
4330, a deputada Erika Kokay (PT-DF) fez um discurso que equivalia a um chamado
à dignidade e à honestidade dos presentes: "Vamos tirar as máscaras,"
disse. "Alguém acha que estamos defendendo o terceirizado?,"
perguntou.
Em 2010,
um estudo do DIEESE ("Terceirização e morte no trabalho: um olhar sobre o
setor elétrico brasileiro") mostrou a diferença entre terceirizados —
mesmo com carteira de trabalho — e funcionários do quadro próprio nas empresas
do setor elétrico. Um dado importante mostra que, uma vez instalada, a
terceirização tende, por motivos óbvios, devorar vagas tradicionais. Em apenas
um ano, a porcentagem de terceirizados saltou de 34,8% para 52,6%, fazendo com
que se tornassem a maioria dos assalaridos do setor. Isso aconteceu por uma
elevação nas vagas de terceiros e uma redução em 7,9% das vagas dos demais. A
mudança ocorreu após as privatizações. Sintomático, não?
Um ponto
essencial diz respeito à segurança dos trabalhadores, numa área conhecida pelos
riscos e acidentes fatais. É escandaloso. Conforme a Fundação Coge, entidade
que estuda métodos de gestão no setor elétrico, os números que envolvem
acidentes com trabalhadores terceirizados são piores do "os da época em
que a prevenção de acidentes no Brasil ainda era incipiente," isto é,
trinta anos atrás. Os números da Fundação permitem associar — matematicamente —
a terceirização com mais mortes e acidentes. Entre 1994, quando os
trabalhadores contratados diretamente pelas empresas eram maioria, em 2006,
quando terceiros já eram um número maior, os acidentes fatais, envolvendo todo
tipo de funcionário, cresceram 70%. Mas apenas 2 em 10 eram contratados pela
empresa. Os outros, terceiros. Como regra, conclui-se que em média os riscos
sofridos pelos terceiros superaram em três vezes aqueles sofridos pelos
contratados. Num caso, a taxa era de 47,5 por 100 000. No outro, 14,8 por 100
000. Comparando as diversas regiões do país, apurou-se em uma delas uma taxa de
mortalidade, desfavorável aos terceiros, até 11,23 vezes superior à dos
trabalhadores do quadro próprio.
Outro
aspecto do 4330 é enfraquecer os sindicatos, entidades que poderiam servir de
instrumento para enfrentar as perdas que a nova legislação pretende criar.
Estamos falando do serviço completo, vamos combinar: equivale a espalhar uma
epidemia e em seguida esconder o remédio que poderia ajudar na cura.
Quem
pensa que o enfraquecimento dos sindicatos não foi uma medida essencial para a
elevação da desigualdade e a concentração de renda ocorrida no mundo inteiro,
nas últimas décadas, precisa ler um documento insuspeito do Fundo Monetário
Internacional — isso mesmo, o velho FMI, publicado o mês passado. Ali se
reconhece que o crescimento da desigualdade observado nos países centrais entre
1980 e 2010 tem como uma de suas causas principais a redução da
"influência dos assalariados sobre as decisões das empresas," num
período marcado pela "baixa taxa de sindicalização e o aumento "dos
rendimentos mais elevados" (Le Monde Diplomatique, abril de 2015).
Nós
sabemos, desde a emergência dos regimes totalitários da década de 1930, qual o
efeito político do enfraquecimento dos sindicatos, que ajudam a definir
interesses de classes, promovendo o debate e os conflitos que dão vigor às
democracias.
Alguma
dúvida sobre o 4330?
Veta,
Dilma.
copiado
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil
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