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A ideia central é explícita: os fortes tem a obrigação de esmagar os fracos. Tudo isso estava aí, escrito e, no entanto, foram muitos os que não viram a tirania, a guerra e o Holocausto, que estavam por vir. Por exemplo, o The New York Times publicou, em 1933, uma crítica nada desfavorável do livro desse “homem extraordinário”, que “faz muito pela Alemanha”, patriota, unificador e defensor do direito à propriedade, segundo James W. Gerard, ex-embaixador dos Estados Unidos na Alemanha, que só tomava distância do Führer por seu feroz antissemitismo.
Alguns anos depois, em 1940, George Orwell foi mais astuto ao publicar uma resenha sobre uma nova edição em inglês do livro na New English Weekly. Para Orwell, Hitler estava anunciando “um horrível império descerebrado” que se estenderia de forma violenta até o Afeganistão. O escritor e jornalista inglês, que posteriormente publicaria 1984, questionava, perplexo, como o líder nazista tinha sido capaz de impor a seus compatriotas “essa visão monstruosa”.
Tirando seu evidente valor como documento histórico, Minha Luta, hoje em dia, é apenas um plúmbeo e reiterativo ensaio repleto de argumentos pseudocientíficos e pseudohistóricos que não resistem a uma análise séria. É capaz de convencer apenas àqueles que estiverem predispostos. Após o cumprimento do prazo de 70 anos para a expiração dos direitos autorais, que até o dia 31 de dezembro de 2015 estava nas mãos do estado da Baviera, um grupo de historiadores publicou, em janeiro de 2016, uma edição crítica com mais de 3.500 notas que esmiúçam e contextualizam as teses do livro de Hitler, que até 1945, teve mais de 12 milhões de exemplares impressos. Hitler, Mein Kampf - Eine kritische Edition (ainda sem prazo para uma tradução ao português) oferece “informações objetivas, explica os conceitos ideológicos, revela as fontes materiais e contrasta as valorações e meias verdades de Hitler com os fatos históricos”, explica Magnus Brechtken, subdiretor do Instituto de História Contemporânea de Munique-Berlim, incentivador da obra.
Coincidindo com essa ambiciosa publicação, muitos se perguntam se o livro-fetiche da ideologia que destruiu grande parte da Europa ainda dá medo. Disponível a poucos cliques para qualquer internauta, a mensagem de ódio de Hitler é reanimada em páginas web, incluindo algumas jihadistas, e goza de uma chocante popularidade em países como a Índia. Mas, na Alemanha, o perigo representado por Minha Luta parece ter desaparecido. Um recente relatório dos serviços secretos indicou que, nos últimos 20 anos, o interesse dos ultras pelas teses hitlerianas diminuiu. Os neonazistas, de acordo com as autoridades alemãs, encontram nessas páginas poucos elementos com os quais se identificam, exceto algumas ideias-chave como o antissemitismo. E os populismos de direita que crescem com força em meia Europa se empenham em manter a distância do nacional-socialismo e apontam a imigração muçulmana como o inimigo, em vez dos judeus.
“A obra de Hitler triunfou porque oferecia respostas fáceis aos problemas dos princípios do século XX. Mas elas não funcionam para o mundo atual”, explica o historiador da Universidade Humboldt especializado em nacional-socialismo Marc Buggeln. Ao contrário do que se acreditava, a circulação de Minha Luta não estava proibida, até agora, na Alemanha, como é o caso de outros símbolos nazistas. Na verdade, o que acontecia era que o estado da Baviera, detentor dos direitos autorais da obra, se negava a editá-la de novo. No entanto, o livro podia ser encontrado, sem muitas dificuldades, em edições antigas ou na Internet. Por isso, os historiadores consultados concordam que a estratégia de silenciá-lo não faz sentido.
Antony Beevor, autor de livros de referência sobre a Segunda Guerra Mundial, é um deles. “A tentativa de ocultá-lo, seja através do tabu social ou da legislação, só serve para aumentar o atrativo do proibido. Os neonazistas e os jihadistas poderão citá-lo, mas essa é uma razão a mais para dispor de exemplares que demonstrem a desonestidade intelectual e as falácias que impregnam cada página”, afirma.
Christian Hartmann, chefe da equipe responsável pela nova edição crítica, define Hitler como o perfeito demagogo que mistura mentiras, meias verdades e fatos reais. E é, precisamente, contra essa confusão que dirige seu projeto. As notas que acompanham o texto original não só matizam ou desmentem as teses de Minha Luta, mas também servem para ridicularizar o autor em seus momentos de exaltação patriótica. Um exemplo é a narração dos dias iniciais da Primeira Guerra Mundial. “Então começou o que, para mim, como suponho que para qualquer alemão, foi o maior e inesquecível momento da minha vida terrena. (…) Com orgulhosa melancolia penso, agora, nesses dias que atualmente são lembrados como o décimo aniversário; nessas semanas nas quais começou a batalha heroica do nosso povo, que me permitiu participar do nobre destino da nossa pátria”, escreveu Hitler em 1924 com exagerada intensidade.
As notas que acompanham essa passagem diminuem o heroísmo e acrescentam um involuntário toque cômico. Os pesquisadores de Munique reúnem as lembranças de Rudolf Hess sobre a gestação dessas páginas. “Escuto sua voz no quarto ao lado. Parece que está em pleno processo de reviver suas experiências de guerra, imitando os ruídos das granadas e das metralhadoras, pula de forma selvagem no meio do quarto, arrastado por sua fantasia”, escreveu o homem que, mais tarde, seria o número dois da hierarquia nazista. Poucos dias depois, Hess retomaria o episódio ao contar que Hitler leu para ele, em voz alta, o relato de seu batismo de fogo na Grande Guerra, preso em suas emoções sem conter as lágrimas.
A nova edição serve, também, para saber até que ponto Hitler idealizou suas andanças. Assim, o homem que, duas décadas mais tarde, destruiria grande parte da Europa explicava sua saída da Áustria, em maio de 1913, exclusivamente, por motivos políticos. “Não queria lutar pelo Estado dos Habsburgo, mas estava preparado para morrer a qualquer momento pelo meu povo e pelo império que o encarnava”, escreveu de maneira enfática. Os historiadores explicam que sua mudança a Munique se deveu, principalmente, a motivos econômicos; e que, um ano mais tarde, um exame em Salzburgo o qualificou como não apto para pegar em armas. A chegada às livrarias do ideário nazista não é o único sintoma de que, 70 anos depois do suicídio do tirano, a Alemanha normalizou sua relação com Hitler, que agora, inclusive, é tema de piadas.
Há dois meses, meia cidade de Berlim amanheceu cheia de cartazes nos quais se podia reconhecer seu inconfundível corte de cabelo e bigodinho. “Voltou”, alertavam os anúncios. Na realidade, se tratava da campanha de divulgação de uma comédia sobre o que aconteceria se Hitler aparecesse na Alemanha atual. Em cinco semanas, mais de dois milhões de espectadores viram o filme baseado no romance homônimo, que também bateu recordes de vendas. “Acho bom que brincadeiras sobre ele possam ser feitas, porque, além de um assassino em massa, também era uma figura ridícula. As gerações anteriores não podiam rir dele, mas agora sim, em parte, porque perdeu seu halo de perigo”, explica Buggeln.
O livro do Instituto de História Contemporânea não é o único trabalho que trata de contextualizar Minha Luta. O historiador e jornalista Sven Felix Kellerhoff publicou Mein Kampf – Die Karriere eines deutschen Buches (Minha luta - A história do livro que marcou o século XX), um ensaio no qual aborda como Hitler falsificou sua própria biografia e se aprofunda na procedência de seu ideário. Uma das conclusões desse livro, lançado em setembro de 2015 na Alemanha, é que Hitler enriqueceu graças à difusão em massa do livro quando os nazistas se instalaram no poder. Kellerhoff critica que o estado da Baviera tenha obstaculizado, até agora, o conhecimento e o debate entre os especialistas sobre essa obra que qualifica como "espantosa". Outra aproximação interessante a Minha Luta é o lançamento recente de Su Lucha, um romance escrito pelo argentino Patricio Lenard. A obra consiste em um diário fictício que Rudolf Hess teria escrito enquanto Hitler compartilhava com ele o primeiro volume de Minha Luta na prisão militar de Landsberg, onde ambos cumpriam pena por uma tentativa de golpe de Estado (Putsch).
É uma desculpa para criar um making of e narrar como o livro teria sido concebido em uma prisão onde as cabeçinhas nazistas recebiam um tratamento privilegiado. E também para contextualizar os capítulos principais do livro original de Hitler, que são reproduzidos, em parte. “É um período sobre o qual não há muita informação. A forma de diário me obrigou a investigar o que aconteceu naqueles meses de 1924. Foi útil para mim agir como historiador em meu papel de romancista”, explica Lenard, que tem Su Lucha como sua primeira incursão no terreno da ficção.
A obra do argentino tem como grande atrativo uma profusão de detalhes sobre a personalidade, costumes e manias do ditador alemão. Um puritano que se nega a fumar, beber álcool e comer carne, o que Lenard relaciona com a morte de seu pai após sofrer um derrame cerebral sobre sua taça de vinho matinal. “O complicado cenário familiar de Hitler, com um pai alcoólatra e abusivo, não entrou em Minha Luta, como tantas outras coisas que contradiziam a imagem que ele pretendia passar”.
No entanto, esses elementos se encontram no suposto diário de Hess, que “anota, escrupulosamente, as confidências de seu líder”. O outro pilar do romance é esse foco posto em Hess, um personagem desconcertante que sentia devoção por Hitler e que foi seu escrevente. Em 1941, Hess protagoniza uma rocambolesca viagem à Escócia para negociar um acordo sem consegui-lo; em 1987, foi o último líder do Reich a morrer na prisão. “Dos hierarcas nazistas, Hess foi o mais enigmático. Desde um ponto de vista literário, funciona como o comparsa que fornece a distância mínima necessária para abordar um personagem tão inabarcável como Hitler”, explica o autor.
Mas, então, Minha Luta continua sendo uma obra perigosa? “É uma fonte histórica”, responde Magnus Brechtken. “Contém visões ideológicas dos anos vinte que refletem um discurso desse tempo, especialmente em questões de racismo, antissemitismo e militarismo na política externa. Está escrito em um estilo que parece estranho para os leitores de hoje. O racismo e o antissemitismo não desapareceram desde então, mas têm que ser combatidos independentemente de que os racistas e antissemitas leiam ou não esse texto histórico”.
Para Lenard, “com a passagem do tempo, o panfleto de Hitler passou a ser um documento histórico mais do que um veículo de propaganda e, apesar de um fardo, um dos livros mais importantes do século XX. Que os neonazistas e os negacionistas da Shoah não se dediquem à glorificação dos crimes dos nazistas, mas à sua minimização e banalização, deixa claro que ninguém poderia, hoje, planejar o advento de um Quarto Reich inspirando em suas páginas. A necessidade de relê-lo não só deveria servir para começar a levantar um tabu que não fez mais do que aumentar o peso da lenda negra sobre o livro, mas para gerar anticorpos diante do perigo da extrema direita e do fascismo, cada vez mais presente”.
No epílogo de A zona de interesse, romance do britânico Martin Amis sobre o Holocausto, ele questiona se é possível se colocar na mente de Hitler. E encontra a resposta na trégua, do sobrevivente dos campos Primo Levi, para quem foi um “alívio” se sentir incapaz de entender o líder nazista. “Talvez seja desejável que suas palavras (e também seus atos) não sejam suscetíveis à compreensão por nossa parte”. Custa entender o personagem, mas se podia entender o que ia trazer.
A escritora Alice Hamilton viu isso, claramente, em 1933, quando escreveu em sua resenha para a Atlantic Monthly que o líder nazista “não é um enigma: não há nenhum mistério sobre ele”, já que não dissimula sua “brutalidade naif” porque “não está pensando em persuadir, está proclamando princípios que devem ser aceitos porque há força, força física, por trás deles”.
copiado http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/cultura/1449658524_828052.html
Desconstruindo ‘Minha Luta’ (sem silenciá-lo)
Uma edição crítica de historiadores alemães e um romance recuperam o livro de Adolf Hitler, ao expirarem seus direitos autoraisDesconstruindo ‘Minha Luta’ (sem silenciá-lo)
Uma edição crítica feita por historiadores alemães e um romance recuperam o livro de Hitler, ao expirarem seus direitos autorais, para rebater cada uma de suas mentiras e mensagens de ódio
Ninguém que tivesse lido, minuciosamente, Minha Luta (Mein Kampf), de Adolf Hitler, após sua publicação (o primeiro volume em 1925, o segundo em 1928) poderia ter se surpreendido com tudo que veio depois: aí estava, preto no branco, seu propósito genocida, sua aposta por um expansionismo militar, sua obsessão pela pureza racial, seu desejo de separar primeiro e exterminar depois os judeus e os incapacitados, seu desprezo pela democracia, pelo humanismo e pelo pacifismo.
Alguns anos depois, em 1940, George Orwell foi mais astuto ao publicar uma resenha sobre uma nova edição em inglês do livro na New English Weekly. Para Orwell, Hitler estava anunciando “um horrível império descerebrado” que se estenderia de forma violenta até o Afeganistão. O escritor e jornalista inglês, que posteriormente publicaria 1984, questionava, perplexo, como o líder nazista tinha sido capaz de impor a seus compatriotas “essa visão monstruosa”.
Tirando seu evidente valor como documento histórico, Minha Luta, hoje em dia, é apenas um plúmbeo e reiterativo ensaio repleto de argumentos pseudocientíficos e pseudohistóricos que não resistem a uma análise séria. É capaz de convencer apenas àqueles que estiverem predispostos. Após o cumprimento do prazo de 70 anos para a expiração dos direitos autorais, que até o dia 31 de dezembro de 2015 estava nas mãos do estado da Baviera, um grupo de historiadores publicou, em janeiro de 2016, uma edição crítica com mais de 3.500 notas que esmiúçam e contextualizam as teses do livro de Hitler, que até 1945, teve mais de 12 milhões de exemplares impressos. Hitler, Mein Kampf - Eine kritische Edition (ainda sem prazo para uma tradução ao português) oferece “informações objetivas, explica os conceitos ideológicos, revela as fontes materiais e contrasta as valorações e meias verdades de Hitler com os fatos históricos”, explica Magnus Brechtken, subdiretor do Instituto de História Contemporânea de Munique-Berlim, incentivador da obra.
Coincidindo com essa ambiciosa publicação, muitos se perguntam se o livro-fetiche da ideologia que destruiu grande parte da Europa ainda dá medo. Disponível a poucos cliques para qualquer internauta, a mensagem de ódio de Hitler é reanimada em páginas web, incluindo algumas jihadistas, e goza de uma chocante popularidade em países como a Índia. Mas, na Alemanha, o perigo representado por Minha Luta parece ter desaparecido. Um recente relatório dos serviços secretos indicou que, nos últimos 20 anos, o interesse dos ultras pelas teses hitlerianas diminuiu. Os neonazistas, de acordo com as autoridades alemãs, encontram nessas páginas poucos elementos com os quais se identificam, exceto algumas ideias-chave como o antissemitismo. E os populismos de direita que crescem com força em meia Europa se empenham em manter a distância do nacional-socialismo e apontam a imigração muçulmana como o inimigo, em vez dos judeus.
“A obra de Hitler triunfou porque oferecia respostas fáceis aos problemas dos princípios do século XX. Mas elas não funcionam para o mundo atual”, explica o historiador da Universidade Humboldt especializado em nacional-socialismo Marc Buggeln. Ao contrário do que se acreditava, a circulação de Minha Luta não estava proibida, até agora, na Alemanha, como é o caso de outros símbolos nazistas. Na verdade, o que acontecia era que o estado da Baviera, detentor dos direitos autorais da obra, se negava a editá-la de novo. No entanto, o livro podia ser encontrado, sem muitas dificuldades, em edições antigas ou na Internet. Por isso, os historiadores consultados concordam que a estratégia de silenciá-lo não faz sentido.
Christian Hartmann, chefe da equipe responsável pela nova edição crítica, define Hitler como o perfeito demagogo que mistura mentiras, meias verdades e fatos reais. E é, precisamente, contra essa confusão que dirige seu projeto. As notas que acompanham o texto original não só matizam ou desmentem as teses de Minha Luta, mas também servem para ridicularizar o autor em seus momentos de exaltação patriótica. Um exemplo é a narração dos dias iniciais da Primeira Guerra Mundial. “Então começou o que, para mim, como suponho que para qualquer alemão, foi o maior e inesquecível momento da minha vida terrena. (…) Com orgulhosa melancolia penso, agora, nesses dias que atualmente são lembrados como o décimo aniversário; nessas semanas nas quais começou a batalha heroica do nosso povo, que me permitiu participar do nobre destino da nossa pátria”, escreveu Hitler em 1924 com exagerada intensidade.
Os ultras de hoje em dia encontram se identificam pouco com o livro de Hitler. E os novos populismos de direita menos ainda.
A nova edição serve, também, para saber até que ponto Hitler idealizou suas andanças. Assim, o homem que, duas décadas mais tarde, destruiria grande parte da Europa explicava sua saída da Áustria, em maio de 1913, exclusivamente, por motivos políticos. “Não queria lutar pelo Estado dos Habsburgo, mas estava preparado para morrer a qualquer momento pelo meu povo e pelo império que o encarnava”, escreveu de maneira enfática. Os historiadores explicam que sua mudança a Munique se deveu, principalmente, a motivos econômicos; e que, um ano mais tarde, um exame em Salzburgo o qualificou como não apto para pegar em armas. A chegada às livrarias do ideário nazista não é o único sintoma de que, 70 anos depois do suicídio do tirano, a Alemanha normalizou sua relação com Hitler, que agora, inclusive, é tema de piadas.
O livro do Instituto de História Contemporânea não é o único trabalho que trata de contextualizar Minha Luta. O historiador e jornalista Sven Felix Kellerhoff publicou Mein Kampf – Die Karriere eines deutschen Buches (Minha luta - A história do livro que marcou o século XX), um ensaio no qual aborda como Hitler falsificou sua própria biografia e se aprofunda na procedência de seu ideário. Uma das conclusões desse livro, lançado em setembro de 2015 na Alemanha, é que Hitler enriqueceu graças à difusão em massa do livro quando os nazistas se instalaram no poder. Kellerhoff critica que o estado da Baviera tenha obstaculizado, até agora, o conhecimento e o debate entre os especialistas sobre essa obra que qualifica como "espantosa". Outra aproximação interessante a Minha Luta é o lançamento recente de Su Lucha, um romance escrito pelo argentino Patricio Lenard. A obra consiste em um diário fictício que Rudolf Hess teria escrito enquanto Hitler compartilhava com ele o primeiro volume de Minha Luta na prisão militar de Landsberg, onde ambos cumpriam pena por uma tentativa de golpe de Estado (Putsch).
A obra do argentino tem como grande atrativo uma profusão de detalhes sobre a personalidade, costumes e manias do ditador alemão. Um puritano que se nega a fumar, beber álcool e comer carne, o que Lenard relaciona com a morte de seu pai após sofrer um derrame cerebral sobre sua taça de vinho matinal. “O complicado cenário familiar de Hitler, com um pai alcoólatra e abusivo, não entrou em Minha Luta, como tantas outras coisas que contradiziam a imagem que ele pretendia passar”.
“O racismo deve ser combatido independentemente de que os racistas leiam ou não esse texto histórico”, afirma o historiador Brechtken
Mas, então, Minha Luta continua sendo uma obra perigosa? “É uma fonte histórica”, responde Magnus Brechtken. “Contém visões ideológicas dos anos vinte que refletem um discurso desse tempo, especialmente em questões de racismo, antissemitismo e militarismo na política externa. Está escrito em um estilo que parece estranho para os leitores de hoje. O racismo e o antissemitismo não desapareceram desde então, mas têm que ser combatidos independentemente de que os racistas e antissemitas leiam ou não esse texto histórico”.
Para Lenard, “com a passagem do tempo, o panfleto de Hitler passou a ser um documento histórico mais do que um veículo de propaganda e, apesar de um fardo, um dos livros mais importantes do século XX. Que os neonazistas e os negacionistas da Shoah não se dediquem à glorificação dos crimes dos nazistas, mas à sua minimização e banalização, deixa claro que ninguém poderia, hoje, planejar o advento de um Quarto Reich inspirando em suas páginas. A necessidade de relê-lo não só deveria servir para começar a levantar um tabu que não fez mais do que aumentar o peso da lenda negra sobre o livro, mas para gerar anticorpos diante do perigo da extrema direita e do fascismo, cada vez mais presente”.
No epílogo de A zona de interesse, romance do britânico Martin Amis sobre o Holocausto, ele questiona se é possível se colocar na mente de Hitler. E encontra a resposta na trégua, do sobrevivente dos campos Primo Levi, para quem foi um “alívio” se sentir incapaz de entender o líder nazista. “Talvez seja desejável que suas palavras (e também seus atos) não sejam suscetíveis à compreensão por nossa parte”. Custa entender o personagem, mas se podia entender o que ia trazer.
A escritora Alice Hamilton viu isso, claramente, em 1933, quando escreveu em sua resenha para a Atlantic Monthly que o líder nazista “não é um enigma: não há nenhum mistério sobre ele”, já que não dissimula sua “brutalidade naif” porque “não está pensando em persuadir, está proclamando princípios que devem ser aceitos porque há força, força física, por trás deles”.
Hitler, Mein Kampf. Eine kritische Edition. Christian Hartmann, Thomas Vordermayer, Othmar Plöckinger e Roman Töppel. Instituts für Zeitgeschichte München-Berlim. Munique, janeiro de 2016. Cerca de 2.000 páginas.
Mein Kampf – Die Karriere eines deutschen Buches. Sven Felix Kellerhoff. Klett-Cotta. Stuttgart (Alemanha), 2015. 367 páginas.
Su lucha. Patrício Lenard. Adriana Hidalgo. Buenos Aires, 2015. 384 páginas.
A história em quadrinhos de um Führer patético
Nos anos trinta, o fascismo também foi combatido por meio de quadrinhos. Uma joia entre eles foi resgatada do esquecimento na Argentina: as tirinhas de Clément Moreau, que usavam entrevistas textuais de Minha Luta para ridicularizar Hitler. Moreau – pseudônimo de Carl Meffert, Coblença (Alemanha), 1903 –, exilado no país sul-americano, publicou a série em 1937, em alemão, no jornal Argentinisches Tageblatt, e, entre 1939 e 1940, em espanhol, no Argentina Libre. Em 1997, o diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da Cultura de Esquerda (CeDInCI), Horario Tarcus, mergulhou nessas resistentes publicações, seguindo o rastro do autor e, em 2007, organizou uma exposição sobre ele. Em setembro de 2015, a revista Fierro, dirigida por Juan Sasturain, editou um suplemento especial, distribuído como "Página/12", com todas as tirinhas reconstruídas pelo desenhista Diego Parés e o prólogo feito por Tarcus. “Moreau considerava contraproducente a proibição de Minha Luta: achava que o projeto totalitário do nazismo estava insuperavelmente definido nesse livro”, conta o historiador. “Penso como ele: é preciso evitar que se transforme, ainda mais, em um livro maldito”.
Leia a história completa aqui (em espanhol).
Leia a história completa aqui (em espanhol).
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copiado http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/cultura/1449658524_828052.html
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