RESUMO DA NOTÍCIA
- Procuradores da Lava Jato tiveram acesso clandestino ao sistema Drousys, de propina da Odebrecht, quase um ano antes de receberem pelo canal oficial
- Em maio de 2016, a procuradora Laura Tessler diz ter tido acesso ao Drousys com a equipe do procurador suíço Stefan Lenz, sendo elogiada por Dallagnol
- A Lava Jato só teve acesso formal ao sistema em abril de 2017, após recebê-lo como parte dos acordos de delação de executivos da Odebrecht
- Além de membros do MP suíço, um adido policial da Embaixada da Suíça em Brasília também repassou informações informalmente à Lava Jato
- Em reunião com ele em 2015, a Lava Jato combinou de passar aos suíços os nomes de pessoas que gostariam de investigar, entre eles familiares de Lula
- A Lava Jato e autoridades suíças procuradas não comentaram o acesso clandestino ao Drousys, mas negaram irregularidades
Os procuradores da Operação Lava Jato em Curitiba obtiveram acesso clandestino ao sistema Drousys, usado pelo setor de Operações Estruturadas da Odebrecht para controlar os pagamentos de propina a autoridades e políticos. Por meio de autoridades suíças, eles obtiveram informações sigilosas da contabilidade paralela da empreiteira quase um ano antes de terem acesso formal aos dados por meio de acordos de delação premiada dos executivos da construtora.
Especialistas ouvidos pelo UOL dizem que informações obtidas por fora do canal oficial estabelecido em acordos de cooperação internacional de investigação constituem provas ilegais, podendo levar a anulação de processos. Procurada, a Lava Jato não comentou o acesso clandestino ao Drousys através de autoridades suíças, mas negou ter violado as regras e sustenta que a troca de informações de inteligência é comum e salutar durante as investigações.
Entre a ampla gama de informações sigilosas obtidas pela Lava Jato ilegalmente, a joia da coroa foi o acesso ao sistema Drousys. O acesso integral ao sistema foi uma das exigências da Lava Jato para fechar acordos de delação com os 78 executivos da empreiteira -incluindo Emílio e Marcelo Odebrecht.
No entanto, diálogos entre os procuradores —entregues por fonte anônima ao site The Intercept Brasil e analisados em conjunto com o UOL— mostram que eles já tinham acesso à contabilidade paralela da empreiteira quase um ano antes de o MPF (Ministério Público Federal) estar apto a usar formalmente os dados entregues pela Odebrecht, o que só ocorreu em abril de 2017. Mais precisamente no dia 17, quando a SPEA (Secretaria de Pesquisa e Análise) da PGR (Procuradoria-Geral da República), responsável por estruturar o grande volume de dados para a consulta dos membros da Lava Jato, terminou o serviço.
O comunicado foi feito no grupo Acordo Ode, no Telegram, onde eram discutidas as negociações de colaboração com os executivos da empreiteira. Quem repassa a notícia é o procurador da República Daniel Salgado, então chefe da SPEA.
"Prezados, Conseguimos terminar a indexação dos arquivos do Drousyus. Farei uns testes hj para liberar o acesso a vcs", avisou. O procurador Athayde Ribeiro Costa, um dos membros da Lava Jato em Curitiba, agradece sem muito entusiasmo. "Otimo, Daniel.", disse.
O UOL manteve as grafias das mensagens tal qual constam nos arquivos enviados ao Intercept, mesmo que contenham erros ortográficos.
Reação bem diferente foi vista no dia 14 de maio de 2016, quando Laura Tessler, também da Lava Jato, cita descobertas feitas através do Drousys. A conversa envolveu diversos procuradores no chat João Santana - Ode, destinado a discutir informações delatadas pelo ex-marqueteiro de campanhas petistas.
Laura demonstra estar em contato direto com a equipe do então procurador suíço Stefan Lenz, sugerindo caminhos de apuração na Suíça e recebendo informações sobre investigados no Brasil. Segundo ela, as informações seriam utilizadas "como inteligência", termo frequentemente usado pelos procuradores para se referir a provas ilegais obtidas no exterior.
"Outra coisa: o nome do Adriano Juca (diretor Jdco da ODE) apareceu no Drousys nas rápidas pesquisas que fizemos...pelo pouco que vimos, me pareceu que tava bem por dentro do esquema das operações estruturadas...pedi pra assistente do Stefan fazer uma pesquisa pelo nome e pelas iniciais dele para analisarmos como inteligência...ela prometeu nos mandar o que aparecer", afirmou.
Logo depois, Deltan Dallagnol demonstra empolgação com a notícia. Envia uma sequência de emojis e diz: "Importantíssimo Laura".
O coordenador da Lava Jato afirma que esse tipo de colaboração era esperada. "Quando "adiamos" a reunião da Ode nesta semana, o objetivo era em especial ver o que Vcs obteriam na Suíça e incluir todos os interessados (Vcs estavam fora) na decisão de estratégia!! Perfeito.", completou Deltan.
Embora tenha sido divulgada apenas no fim de 2016, a apreensão dos servidores em que a Odebrecht hospedava o Drousys, na Suíça, ocorreu entre maio e abril do mesmo ano.
"Pessoal, com relação ao sistema drousys, hoje, em audiência, o CAMILO informou que, apos a apreensão do servidor pela Suiça, houve o desligamento do Drousys, mas os usuários foram migrados para outro sistema, que operou até o mês passado, quando este novo sistema foi apreenddo pelo MP Suiço", explicou Laura Tessler no dia 22 de junho, no grupo Acordo Ode.
À prova de interceptação
O sistema Drousys começou a ser elaborado em 2007, pouco depois que a área de Operações Estruturadas foi montada na Odebrecht. "Eu queria uma forma segura para nossas comunicações com os operadores", explicou o ex-executivo Hilberto Mascarenhas Alves da Silva Neto, em um dos anexos de sua delação.
A solução que lhe foi apresentada era a de e-mails internos e sistema de bate- papo, "abrigadas em um servidor também em Genebra, na Suíça, que podiam ser acessados de qualquer lugar do mundo, sem deixar registro no computador de quem as acessava". O sistema também ficaria em Genebra, "sem risco de interceptação".
Os investigadores suíços e brasileiros se beneficiaram do fato de que muitos informes internos entre 2008 e 2012 estavam desprotegidos no servidor. Mas, a partir de 2012, praticamente todos os dados estavam criptografados.
Em Genebra, o servidor estava num espaço de 5.000 metros quadrados da Safe Host, empresa especializada em proteger dados informáticos de 140 multinacionais, bancos e mesmo organismos internacionais. O local, que guardou alguns dos maiores segredos de governos da América Latina, era equipado com monitoramento permanente de câmeras e acesso com controle biométrico.
Para evitar qualquer perda de dados, o local conta com uma subestação de energia que alimenta os servidores de forma constante. São seis geradores, além de uma temperatura constante de 22°C, ar filtrado, sob uma pressão constante e uma rede de fibras óticas fora do sistema de telecomunicações da cidade.
Segundo o FBI, seus técnicos levariam 102 anos para furar a proteção sofisticada então utilizada pela Odebrecht para resguardar o Drousys.
"Procurador da Suíça armou uma para mim", acusou ex-executivo
O acesso ao servidor começou a se tornar uma realidade quando Fernando Miggliaccio, ex-executivo da Odebrecht e responsável por fazer pagamentos de propinas, foi preso em Genebra. Em seu depoimento diante do então juiz federal Sergio Moro, ele contou que foi vítima de uma "armadilha" por parte do Ministério Público da Suíça. Miggliaccio foi preso em Genebra em fevereiro de 2016 e sua detenção foi considerada fundamental para os investigadores.
O ex-executivo contou que, já no início da Operação Lava Jato, foi transferido para fora do Brasil e passou a viver entre a República Dominicana e os EUA. Miggliaccio revelou que recebeu, em 2016, uma ligação de um dos bancos onde tinha conta em Genebra, solicitando sua presença física para fechar a conta.
"Eu tinha uma conta. É um direito que todos temos", disse. "Mas o procurador da Suíça armou uma armadilha para mim", disse. "Ele [o procurador] sabia que eu ia lá fechar a conta. Eles na Suíça já tinham conhecimento das denúncias da Odebrecht e sabiam que eu era quem controlava tudo isso. Por isso, armou isso", disse.
"Eu não queria ir para lá [Genebra]. Foram eles que ligaram para que eu fosse para lá. Depois, ele [o procurador] me disse que montou a armadilha", insistiu.
A versão dos investigadores é outra: Miggliaccio tentava apagar os dados comprometedores e esvaziar algumas das contas. A reportagem apurou que ele de fato acabou conseguindo realizar parte de sua missão e, se não tivesse sido preso, provavelmente teria destruído todas as provas.
Funcionário da embaixada suíça repassou dados sigilosos à Lava Jato
A troca de informações fora dos canais oficiais envolveu, além de membros do Ministério Público suíço, ao menos um funcionário da Embaixada da Suíça no Brasil, lotado em Brasília. Chamado apenas de Marco pelos procuradores, o UOL apurou que o interlocutor seria Marco Marinzoli, adido policial na representação diplomática.
O policial federal suíço chegou ao Brasil em 2014 e logo se aproximou de membros da força-tarefa. Além dos contatos via aplicativos de mensagens, que eram constantes, a proximidade pode ser vista em cortesias mútuas: Marinzoli foi convidado a palestrar em 2017 na Jornada Internacional de Investigação Criminal, realizada nos dias 1º e 2 de setembro em Gramado, na Serra Gaúcha.
O evento já teve entre os palestrantes Moro, o juiz federal Marcelo Bretas (responsável pela Lava Jato no Rio) e Dallagnol.
Por outro lado, Marco convidou pessoalmente os membros da força-tarefa para uma festa realizada na embaixada suíça em Brasília, em agosto de 2015.
A relação entre Marinzoli e a Lava Jato ia além da cortesia. Os procuradores fazem constantes menções a ele como origem de informações de "inteligência" recebidas da Suíça.
Em 2015, Dallagnol falou com os colegas sobre uma reunião que tinha realizado com o adido policial para tratar da Lava Jato e chegou a enviar uma espécie de ata, onde listava as informações recebidas e as providências que sua equipe deveria tomar. O texto deixa claro que —mais do que colaboração— os investigadores dos dois países mantinham uma estratégia conjunta, com os suíços guiando suas apurações de acordo com os desígnios da Lava Jato no Brasil. Entre essas prioridades estavam familiares do ex-presidente Lula.
"Prioridades: A equipe dos suíços é muito menor do que a brasileira. Estão recebendo várias comunicações do "COAF" suíço que não estão sendo tratadas por falta de pessoal para análise. ", diz trecho da ata.
Logo em seguida, tarjado em amarelo, aparece como urgência "Tarefa: fazer relação dos nomes mais importantes da investigação no momento atual, para coordenar ação com os Suíços (Ex.: familiares de Lula, etc) - falar sobre isso com os doutores Júlio, Januário e Roberson".
Além da troca constante de informações, os procuradores da Lava Jato organizaram até mesmo um encontro secreto com os investigadores suíços em Curitiba, entre 1º e 4 de dezembro de 2015. Para não chamar a atenção de jornalistas e, sobretudo, advogados de acusados —que poderiam questionar o contato com os investigadores estrangeiros —foi montada uma operação abafa.
Os cuidados foram desde fazer as reuniões em um prédio diferente daquele que era usado pela força-tarefa até o fato de o procurador da República Orlando Martello —designado por Deltan como principal interlocutor dos suíços desde o início da Lava Jato— atuar como uma espécie de cicerone dos visitantes.
O plano de recebê-los é avisado aos demais membros da equipe somente pouco tempo antes da recepção. No dia 23 de novembro, Deltan dá a notícia no grupo FT MPF Curitiba 2, que reunia os membros da força-tarefa.
"Caros, sigilo total, mesmo internamente. Não comentem nem aqui dentro: Suíços vêm para cá semana que vem. Estarão entre 1 e 4 de dezembro, reunindo-se conosco, no prédio da frente. Nem imprensa nem ninguém externo deve saber. Orlando estará com eles todo tempo, assim como eu (que estarei fora na quarta). Vejam o que precisam da Suíça e fiquem à vontade para irem a qq tempo, ficarem nas reuniões todo o tempo que quiserem", instruiu.
A agenda com os colegas europeus foi intensa. Além de reuniões de trabalho, envolveu almoços, jantares e até mesmo uma ida a um museu paranaense como "atividade turística".
O que dizem os citados na reportagem
A Lava Jato não comentou o acesso clandestino ao Drousys, mas afirma que a troca de informações de inteligência está respaldada por acordos internacionais e por órgãos brasileiros, envolvendo, inclusive os adidos estrangeiros em embaixadas de outros países no Brasil.
"A troca de informações de inteligência e a cooperação direta entre autoridades estrangeiras é absolutamente legal e constitui boa prática internacional, incentivada pelos manuais da AGU (Advocacia-Geral da União), GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional), UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), UNCAC (Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção), Banco Mundial, dentre outros organismos internacionais, bem como constitui orientação da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF) e é aceita pelo Judiciário brasileiro. Para essa troca de informações, o auxílio de representantes estrangeiros no Brasil, como os adidos, é essencial para a celeridade e melhor compreensão dos dados trocados"
Por meio de nota, o Ministério Público da Suíça também não comentou o acesso clandestino da Lava Jato ao sistema de propina da Odebrecht. O órgão afirmou apenas que pauta seu trabalho conforme as leis suíças. "O Escritório do Procurador Geral da Suíça está conduzindo seus processos criminais com base na legislação suíça pertinente", diz.
O Departamento de Assuntos Estrangeiros do governo suíço não comentou as suspeitas sobre a atuação do funcionário Marco Marinzoli em sua embaixada em Brasília e repassou o assunto ao Departamento Federal de Justiça e Polícia. Por sua vez, o órgão também não comentou as irregularidades reveladas nas mensagens vazadas. Comunicado do departamento enviado ao UOL confirma que Marco Marinzoli atuou no Brasil como adido policial entre 2014 e 2018.
"Em geral, o principal mandato de um agente de ligação [adido] é facilitar a cooperação policial e judiciária e, nomeadamente, assegurar o intercâmbio de informações policiais e judiciárias entre a Suíça e o país anfitrião", afirma a nota. "Como tal, o agente de ligação responde exclusivamente perante as autoridades responsáveis pela aplicação da lei", completa.
O ex-procurador suíço Stefan Lenz negou que as práticas descritas pelo UOL eram ilegais.
"Não houve prática ilegal no contexto que descreveu. Além disso, não comento estas alegações", disse ele, que deixou o Ministério Público da Suíça em 2016 e hoje atua em um escritório de advocacia em seu país.
copiado https://www.uol.com.br/
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