Entrevista revista e atualizada pelo entrevistado em março/2013
Em medicina, o termo demência tem significado bem diferente daquele entendido pelos leigos, que confundem demência com loucura. Sob o ponto de vista médico, as demências compreendem um número grande de enfermidades incuráveis que apresentam certas características comuns entre si, mas com peculiaridades distintas umas das outras. Provas disso são a doença de Alzheimer, a demência vascular e dos corpúsculos de Lewy, as doenças de Pick, de Huntigton e de Creutzfeldt-Jakob e a demência frontotemporal (DFT), quase todas com etiologia e tratamento específicos.
A demência frontotemporal, em particular, é uma doença de início insidioso e progressão lenta que, em geral, acomete pessoas acima de 50 anos, mais as mulheres do que os homens, e cujos sintomas, muitas vezes, não são valorizados pela família. O primeiro sinal, geralmente, é uma crise de depressão tardia, seguida de distúrbios comportamentais, tais como desinibição, negligência com os cuidados pessoais e de higiene, desatenção, agressividade, além de distúrbios cognitivos (comprometimento da memória), rigidez mental, hiperoralidade, labilidade emocional e alterações da fala.
Como o número de idosos aumenta na maioria dos países, inclusive no Brasil, a demência frontotemporal está se tornando mais frequente. O diagnóstico é predominantemente clínico e leva em conta as alterações de comportamento e personalidade do idoso.
CARACTERÍSTICAS
Drauzio – Quais são as principais características da demência frontotemporal?
Sérgio Hototian – A demência frontotemporal é uma doença que abrange de 5% a 10% dos casos de síndromes demenciais. A prevalência é maior no sexo feminino, na minha opinião, porque as mulheres vivem mais do que os homens.
Assim como a doença de Alzheimer e as demências vasculares, a DFT é uma enfermidade frequente e importante, mas seus sintomas podem passar despercebidos.
O primeiro sinal da doença é a mudança de comportamento no que se refere à resolução de problemas do dia a dia com tendência à impulsividade. Começa a chamar a atenção da família a grande dificuldade que a pessoa mais velha demonstra diante de problemas já conhecidos e as formas incoerentes de solução que encontra, muitas vezes, na base da força.
Drauzio – Em geral, a DFT atinge pessoas em que faixa de idade?
Sergio Hototian – Geralmente, a partir dos 50 anos, e a evolução pode oscilar de dois a vinte anos. No início, a principal característica é a mudança da personalidade.
Drauzio – Você disse que a demência frontotemporal é caracterizada por mudanças de comportamento e por alterações na forma de resolver os problemas do cotidiano. Disse também que as pessoas com a doença tendem a tomar atitudes impulsivas. Você poderia dar um exemplo prático do que acontece com elas?
Sergio Hototian – Por exemplo: pacientes com alta escolaridade e que dirigem há muitos anos, de repente, começam a bater o carro com frequência, não conseguem estacionar o veículo numa vaga e se atrapalham até para sair da garagem de casa. Ficam desatentos e se descuidam de observar os sinais de trânsito e os semáforos.
Geralmente, as síndromes frontotemporais passam despercebidas. Prefiro chamar de síndromes, porque grande parte dos sinais e sintomas se instala antes de surgir o distúrbio da memória, que só fica evidente na fase final da doença.
ALTERAÇÕES DO COMPORTAMENTO
Drauzio – Quais são as mudanças comportamentais que caracterizam o comprometimento frontal?
Sergio Hototian – Alterações da atenção, irritabilidade, perda da inibição, do controle social e da crítica sobre determinadas regras, além de oscilações de humor. As reações de alegria ou tristeza são desproporcionais ao estímulo. Por exemplo, a pessoa fica extremamente triste ao assistir a um filme ou ao tomar conhecimento de uma notícia ruim, mas ninguém ao redor atribui importância ao fato.
Nos casos mais graves, a síndrome frontotemporal promove um distúrbio que afeta a convivência ética do paciente, que pode desenvolver uma espécie de sadismo. Nos casos moderados, merece destaque a desatenção, o desleixo, a negligência com os cuidados pessoais e a perda de contato com os limites estabelecidos.
Veja também: Demência em idosos
RECONHECIMENTO DOS SINTOMAS
Drauzio – Imagine uma pessoa de 60, 65 anos que entra num quadro depressivo – depressão é uma doença grave – faz tratamento e evolui com um comportamento um pouco estranho, age de forma inusitada, está mais irritada, distraída e desatenta. Esses são sintomas muito vagos. Como a família pode perceber as alterações que indicam a necessidade de encaminhar essa pessoa para assistência psiquiátrica?
Sergio Hototian – Por serem sintomas muito difíceis de observar e considerados normais, inadequadamente normais para a idade, não é raro as pessoas próximas deixarem de lhes atribuir a devida importância. Acham que, com a idade, o idoso ficou mais irritadiço por querer viver com mais privacidade. Isso explica ter assumido uma atitude de isolamento, mas todos o consideram absolutamente normal até que começa a acumular lixo em casa com o pretexto de que pode precisar daquelas coisas um dia.
Esse sintoma é conhecido como síndrome de Diógenes, que se manifesta em pessoas acima dos 50 anos. Elas deixam também de preocupar-se com o pagamento das contas e abandonam hábitos elementares de higiene e os cuidados pessoais.
O problema é que essas alterações graves de personalidade e comportamento só aparecem quando estão definitivamente instaladas. Por isso, deixo aqui um alerta: pessoa que tem a primeira crise de depressão depois dos 50 anos, fica mais irritada e passa a viver em isolamento, deve ser avaliada por um profissional habilitado.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Como é feito o diagnóstico das demências frontotemporais?
Sergio Hototian – Certas características da doença foram descritas por Arnold Pick, em 1892 , tendo como referencia indivíduos que desenvolveram uma série de alterações cognitivas e comportamentais associadas à degeneração do lobo frontal.
Atualmente, o diagnóstico clínico é realizado de acordo com os critérios de Lund e Manchester, em 1994, para reconhecer os sintomas da doença, tais como desinibição, impulsividade, negligência com a higiene, dificuldade para resolver problemas, agressividade, depressão, sentimentalismo exagerado.
Segundo esses critérios, com a evolução da doença, outros sinais importantes para o diagnóstico se manifestam. Entre eles, podemos citar perda do controle dos esfíncteres, mudança de hábitos alimentares, consumo exagerado de tabaco e de álcool. Mesmo as pessoas que nunca beberam ou fumaram passam a fazê-lo de maneira compulsiva. Em geral, o último sintoma que aparece é alteração da memória.
Outra característica importante dessas síndromes é o comprometimento da fala. Aliás, as demências frontotemporais podem ter um perfil rapidamente progressivo, quando surgem os distúrbios da fala.
DIFICULDADE DE FALA
Drauzio – Como se manifesta essa dificuldade para falar? A voz fica empastada, o vocabulário empobrece?
Sergio Hototian – Geralmente, aparecem distúrbios como a disartria, ou seja, a dificuldade na produção dos fonemas, principalmente na articulação das vogais, e a afasia. Os pacientes acabam perdendo a capacidade de usar as palavras para expressar-se, não porque a memória tenha falhado, mas por causa da disfunção do lobo frontal. Com a evolução da doença, eles podem deixar de falar definitivamente.
Vou dar um exemplo. No decorrer de um ano, uma paciente deu mostras de ter adotado um comportamento estranho e apresentou um distúrbio da fala, sintomas que passaram despercebidos. Quando os familiares notaram que ela começou a coletar e a guardar objetos inadequados, atribuíram o fato a uma mania própria da idade. No entanto, no final desse período, ela caiu em mutismo absoluto. Cinco anos após o início dos primeiros sintomas, passou a ficar acamada e desenvolveu um quadro tardio de distúrbio da memória. Ao contrário do que acontece com a doença de Alzheimer, porém, os testes neuropsicológicos apenas indicaram um déficit de atenção.
OUTROS SINTOMAS
Drauzio – Isso quer dizer que, na doença de Alzheimer, os testes neuropsicológicos mostram as alterações cognitivas antes de aparecerem as manifestações clínicas, o que não acontece com as demências frontotemporais.
Sergio Hototian – Exatamente. Na demência frontotemporal, o diagnóstico é basicamente clínico, porque os testes neuropsicológicos, em geral, não apresentam alterações além da perda de atenção, comum nos quadros de depressão.
Outra característica da doença é a irritabilidade, que é tolerada ou confundida pela família – “Ah, ela é assim mesmo” – no início. Quando associada, porém, ao uso de álcool ou de outras substâncias de efeito desinibidor, essa irritabilidade pode levar à perda dos parâmetros sociais e gerar atitudes agressivas, aumentando o risco de o paciente envolver-se em questões de ordem médico-legal.
Isso acontece porque é no lobo frontal que se processa a inibição responsável por estabelecer os limites sociais para os atos do dia a dia. Uma pessoa desinibida, com tendência à oralidade (come mais, fuma mais, bebe mais), está mais sujeita a envolver-se em brigas de trânsito, brigas com vizinhos e a desentender-se por assuntos que normalmente não a afetariam.
Portadores da síndrome frontotemporal tendem a ficar agitados durante as internações hospitalares, e muito agressivos quando alguém lhes impõe limites. Ficam bravos, muito mais do que seria justificável, quando lhes falam o que não querem ouvir e costumam jogar a culpa dos próprios erros nas costas dos outros. Podem chegar ao extremo de agredir o cuidador e as pessoas próximas, até fisicamente. Além disso, alguns portadores de síndrome frontotemporal grave podem desenvolver sociopatias importantes e demonstram certo sadismo diante do sofrimento alheio.
COMPROMETIMENTO CEREBRAL
Drauzio – O que acontece no cérebro dessas pessoas que as leva a apresentar quadros de irritabilidade, de déficit de atenção, etc.?
Sergio Hototian – Ocorre uma degeneração desproporcional ao envelhecimento. Nós perdemos neurôniosdesde que nascemos. Isso não quer dizer que o indivíduo idoso esteja condenado a uma vida intelectualmente pobre e comprometida. No entanto, está provado que a atrofia do lobo frontal (a alteração começa sempre por esse lobo e só depois atinge o lobo temporal) provoca uma reação exagerada aos estímulos, em especial diante dos problemas.
Arnold Pick notou as alterações neuronais. Entretanto, não há nada do ponto de vista anatomopatológico que permita confirmar o diagnóstico de demência frontotemporal, por ser a demência um evento clínico sindrômico de múltiplas causas.
Drauzio – Não há nenhuma alteração no cérebro que seja característica dessas doenças…
Sergio Hototian – Existe para a doença de Pick, mas as síndromes frontotemporais ultrapassam os pré-requisitos descritos por Arnold Pick. Por isso, é importante levar em consideração o quadro clínico, o comportamento do paciente, a presença de depressão tardia, depois dos 50 anos. Embora os exames de imagem funcionais, principalmente o SPECT e o PETSCAN possam revelar um hipofluxo, ou seja, uma queda na concentração de oxigênio na região frontal do cérebro, o diagnóstico é sempre essencialmente clínico.
FORÇA DE DECISÃO
Drauzio – Você mencionou pessoas que começam a coletar e a guardar objetos inadequados. Recentemente, em São Paulo, houve o caso de uma senhora que acumulou não sei quantas toneladas de lixo em casa. Ela se enquadrava nos quadros de demência frontotemporal?
Sergio Hototian – Não dá para afirmar, mas é possível que sim. O impressionante é que ela fez isso ao longo de anos. No início, ninguém desconfiava do que estava acontecendo e foi difícil demovê-la, pois achava que agir daquela forma era perfeitamente correto e normal.
Na verdade, essas pessoas podem ter tamanha força de decisão que chegam a confundir quem com elas interage. Aliás, as síndromes frontais podem deixar as pessoas cada vez mais firmes em suas atitudes e crenças, tornando-as progressivamente mais isoladas, avessas ao diálogo e mais irritáveis.
Drauzio – Durante muito tempo, acreditou-se que alguns idosos tinham esse perfil, ficavam rabugentos…
Sergio Hototian – Não é de todo verdade, pois alguns ficam apáticos. Essa alteração é conhecida em países com grande número de idosos, como França, Suécia e Inglaterra, cuja população vem envelhecendo há 100 ou 200 anos. Ou seja, são países com muitas pessoas idosas e poucos jovens e crianças (no Brasil, o número de idosos vem aumentando há apenas 20 anos).
A experiência desses países foi confirmada pela pesquisa de um grupo inglês, que chegou à conclusão de que pacientes idosos, que vivem sozinhos, precisam ser visitados de vez em quando, uma vez que cinco pessoas acima de 65 anos em cada 10 mil correm o risco de desenvolver a síndrome.
Portanto, outra característica da doença no lobo frontal é o paciente adquirir uma força maior de decisão, mas perder a crítica, o “insight”. Esse sintoma não aparece na doença de Alzheimer. Ao contrário, pessoas com Alzheimer ficam mais frágeis. Se você lhes pergunta alguma coisa, elas se voltam para o acompanhante em busca de confirmação, porque não têm certeza de suas respostas.
Já os portadores de demência frontotemporal são cheios de certeza. Vi casos de pessoas não deixarem ninguém entrar no quarto, que era limpo só uma vez por ano, na época do Natal. Uma vez, presenciei a retirada de um paciente de um quarto de hotel, onde não permitia que ninguém entrasse. Quando finalmente conseguiram abrir ao aposento, encontraram uma mala com aproximadamente 200 baratas. Ele guardava de tudo ali: restos de comida, objetos inúteis, lixo.
A intensidade da negligência com a higiene e com os cuidados pessoais pode variar de leve a grave. Leve, quando fica limitada à rotina diária da própria pessoa e não perturba quem está por perto; moderada, quando a mudança de comportamento passa a restringir as atividades do dia a dia, e grave, quando as alterações caracterizam um quadro de demência, termo usado no Império Romano há mais de 2 mil anos e que nos remete à ideia de loucura irreversível.
TRATAMENTO E EVOLUÇÃO DA DOENÇA
Drauzio – Em que consiste o tratamento das demências frontotemporais?
Sergio Hototian – O tratamento é sintomático. Se o paciente apresentar um quadro depressivo, são indicados medicamentos antidepressivos por tempo limitado e observa-se a reação. Remédios inibidores da acetilcolinesterase prescritos para doença de Alzheimer mostraram não ser eficazes para melhorar o comportamento dos portadores da síndrome e, embora o uso da memantina tenha sido testado para melhorar a apatia, não foram encontrados resultados convincentes para sua indicação.
Os neurolépticos ajudam a inibir a agressividade e a impulsividade, mas tudo deve ser feito de maneira cuidadosa, muito delicada, com bom-senso e paciência, porque esses pacientes respondem mal a doses altas de medicação e tendem a abandonar o tratamento.
Drauzio – A doença evolui progressivamente, ou pode estabilizar?
Sergio Hototian – Trata-se de doença progressiva e grave. No início, pode haver estabilização com técnicas ambientais e comportamentais associadas ao tratamento farmacológico. Porém, além de progressiva, a doença é também incapacitante.
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