O vale-tudo judicial é incompatível com o Estado democrático de direito
Nos
últimos dias, o noticiário oriundo do Supremo Tribunal Federal (STF)
revela uma “guerra” de decisões proferidas pelos ministros Ricardo Lewandowski
e Luiz Fux. As manifestações referidas autorizaram e proibiram a
realização de entrevista do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, na
condição de presidiário, ao jornal Folha de S.Paulo.
O
embate chamou a atenção da comunidade jurídica pela ácida altercação
entre membros da Suprema Corte. Ademais, as questões procedimentais (ou
processuais) envolvidas e a discussão de fundo (versando sobre direitos
fundamentais, liberdade de manifestação e liberdade de imprensa) são
particularmente sensíveis.
Foi nesse contexto, aqui dramaticamente resumido, que o ministro Luiz Fux realizou pronunciamento perante o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
(CFOAB). Segundo registram inúmeros veículos de comunicação, as
seguintes afirmações foram feitas pelo aludido integrante do STF: “À
luz de princípios constitucionais nós conseguimos plasmar decisões que
são aquelas decisões que o povo espera do Judiciário, porque a
Constituição afirma que todo poder emana do povo e para o povo deve ser
exercido. Isso significa dizer não que tenhamos que fazer pesquisa de
opinião pública para decidimos, mas quando estão em jogo razões morais,
razões públicas devemos proferir decisão que represente anseio da
sociedade em relação à Justiça”.
Essa
declaração, pela sua importância e gravidade, reclama a devida atenção e
a mais veemente censura. Desde já registro que os ministros do STF
podem e devem ser admoestados publicamente, com o devido respeito, como
exercício republicano dos mais relevantes. Afinal, os membros da Corte
Maior praticamente não estão sujeitos a controle nos marcos
institucionais atualmente postos. A competência do Senado Federal
prevista no art. 52, inciso II, da Constituição tem sido meramente
figurativa (“para inglês ver”).
É
certo que vivenciamos uma profunda mudança de paradigma no campo do
Direito. Com efeito, até a primeira metade do século XX as Constituições
e seus princípios não eram vistos e considerados como verdadeiras
normas jurídicas (obrigatórias e vinculantes). Prevalecia o entendimento
de que os comandos constitucionais eram proclamações políticas a serem
considerados por ocasião da atuação do legislador. As disposições
constitucionais: a) não eram aplicadas diretamente para resolver os
problemas verificados na vida social; b) não geravam direitos subjetivos
e c) não eram utilizadas pelos juízes na solução dos casos submetidos à
apreciação do Judiciário. Segundo o paradigma legal (ou legalista)
prevalecente, obrigavam e vinculavam somente as leis elaborados pelo
Parlamento.
A
segunda metade do século XX testemunhou uma profunda mudança
paradigmática na compreensão e aplicação do Direito. Razões históricas
bem definidas, notadamente as iniquidades praticadas antes e durante a
Segunda Guerra Mundial com sustentação em leis, alimentaram a visão de
que a Constituição e suas disposições, especialmente seus princípios,
possuem força normativa (obrigatória e vinculante). Assim, os comandos
constitucionais podem incidir diretamente sobre os casos da vida e
resolver problemas postos perante o Judiciário sem a necessária
intermediação do legislador.
O
novo panorama de avaliação e aplicação do Direito suscita uma
quantidade significativa de graves problemas jurídicos a serem
equacionados. Eis alguns deles, a título de ilustração: a) os relatos
dos princípios constitucionais são mais subjetivos, fluídos e de
interpretação mais difícil; b) os princípios não são imediatamente (só
mediatamente) comportamentais; c) existe a possibilidade de confrontos,
em situações concretas, a partir de princípios ou direitos fundamentais
consagrados nas Constituições; d) a abertura para construção de soluções
com base nos valores dos operadores do Direito escorados na ordem
jurídica e e) a necessidade de fixação dos limites a serem observados
quando o operador do Direito constrói uma solução fundado diretamente em
princípios.
Neste
ponto já é viável a análise da manifestação do ministro Luiz Fux. O
ilustre julgador assevera que os princípios constitucionais podem
fundamentar decisões judiciais. Como visto, os princípios
constitucionais, atualmente com força normativa, podem efetivamente
plasmar diretamente a solução de problemas jurídicos. Ocorre que o
ministro sustenta que os princípios constitucionais são invocados para a
formulação de decisões “que o povo espera do Judiciário”. Esse é o ponto de extremo relevo, preocupação e perigo.
Observe-se
que a solução do caso, segundo o ministro, não precisa realizar a ordem
jurídica (uma regra comportamental ou um princípio-valor mais
abstrato). A motivação para a decisão pode, ainda segundo o ministro,
ser o desejo ocasional do povo ou a pretensão circunstancial da opinião
pública.
O
princípio constitucional aparece depois como mero elemento de
justificação, usado, torcido ou retorcido para produzir uma aparência de
legalidade. Essa concepção é rigorosamente inaceitável. O Estado
Democrático de Direito está fundado na juridicidade. Toda e qualquer
decisão jurídica é uma aplicação do ordenamento jurídico. Nesse sentido,
inclusive, o artigo oitavo do novo Código de Processo Civil (“Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz ...”).
Apelar,
da forma destacada, para os princípios constitucionais como caminho
para atender anseios populares funciona, na prática, como álibi para: a)
todo tipo de voluntarismo; b) realização de preferências políticas e
partidárias e c) satisfação de simples interesses pessoais.
Admite-se,
na atualidade, que os princípios constitucionais podem: a) incidir
diretamente sobre os casos da vida; b) paralisar a incidência de uma
lei-regra e c) conformar a incidência de lei-regra. Qualquer dessas
utilizações ou aplicações do princípios jurídicos reclama do operador do
Direito, em especial do juiz, a apresentação de exaustiva argumentação
que demonstre a melhor realização da ordem jurídica na solução do
problema. É preciso indicar os enunciados normativos considerados, os
aspectos fáticos julgados relevantes e as valorações contempladas no
ordenamento jurídico.
O
julgamento, pelo STF, da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) n. 132 é um emblemático exemplo da importância e
correção dos novos rumos tomados pelo direito. Em julgamento unânime,
com profunda argumentação jurídica, o pleno do Supremo reconheceu a
incidência direta de um amplo conjunto de valores, princípios e
objetivos constitucionais (proibição de discriminação, proibição do
preconceito, pluralismo, liberdade, autonomia da vontade, dignidade da
pessoa humana, igualdade, promoção do bem de todos, busca da felicidade,
proteção da intimidade, proteção da privacidade, fundamentos da
cidadania, construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
prevalência dos direitos humanos e liberdade de autodesenvolvimento da
personalidade) para considerar a união homoafetiva como instituto
existe, válido e eficaz.
Não
custa destacar que a conclusão indicada pelo STF representa um avanço
civilizatório profundamente amparado na ordem jurídica. Não se tratou,
no deslinde do caso, da concretização de capricho ou interesse pessoal,
político ou partidário lançando mão de forma torta de valores,
princípios e objetivos constitucionais,
Portanto,
o novo paradigma de compreensão do Direito, que reconhece força
normativa para a Constituição e suas disposições (princípios, em
especial), reclama operacionalização cuidadosa e limitada para a
realização dos objetivos e valores constitucionais mais relevantes para o
convívio social. Nesse
sentido, o rigor e crítica social da argumentação jurídica são
fundamentais. A abertura do direito para a vida, para o complexo e
plural convívio social contemporâneo, por intermédio de valores e
objetivos, não pode legitimar a sua interesseira aplicação para
consecução de caprichos, interesses pessoais e desideratos
político-partidários com a invocação genérica (um álibi mesmo) de
respeito ao interesse público, à opinião pública ou aos anseios
populares.
Do mesmo autor:
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