A VENEZUELA PODE SE TORNAR A NOVA SÍRIA

Apoiadores do líder da oposição venezuelana Juan Guaido passam para o lado colombiano da Ponte Internacional Francisco de Paula em Cucuta, durante confrontos com as forças de segurança venezuelanas em Urena, Venezuela, em 25 de fevereiro de 2019.


Apoiadores do líder da oposição venezuelana Juan Guaido passam para o lado colombiano da Ponte Internacional Francisco de Paula em Cucuta, durante confrontos com as forças de segurança venezuelanas em Urena, Venezuela, em 25 de fevereiro de 2019. Foto: Raul Arboleda/AFP/Getty Images     Alexandre Andrada






27 de Fevereiro de 2019, 0h02
HUGO CHÁVEZ PRESIDIU a Venezuela entre 1999 e 2013, tornando-se provavelmente o líder latino-americano mais icônico desde Fidel Castro. Ao chegar ao poder, em 1999, Chávez prometia não só reverter o movimento de privatizações sugeridas pelo Consenso de Washington, mas instaurar o que chamava de “socialismo do século 21”. Não conseguiu. Nenhum governo daquele país, seja “neoliberal-entreguista” seja “bolivariano”, conseguiu transformar as riquezas naturais da Venezuela em um alto nível de educação médio de seu povo e na alavanca para a sofisticação e modernização da economia nacional.
O colapso econômico da Venezuela não é culpa apenas da queda do preço do petróleo. É resultado também de políticas econômicas temerárias, como fixação de preço de diversas mercadorias a um valor abaixo do de mercado, ameaças e prisões de empresários e expropriação de companhias que não obedecessem às ordens do governo. Hoje, a participação do setor de manufaturados no PIB da Venezuela é inferior ao registrado em 1999. Houve não apenas uma queda em termos relativos, mas também em termos absolutos, ou seja, a Venezuela tem hoje uma produção industrial menor do que a de 1999. Em 2016, a queda da produção industrial venezuelana foi da ordem de 19%; no ano seguinte, mais 15%. Em 2002, havia por volta de 830 mil empresas na Venezuela, em 2017 o número havia caído para 250 mil. Por fim, entre 2013 e 2017, o PIB da Venzeuela encolheu em 37%.

Ascensão e queda do chavismo

Militar de carreira, Chávez começou a aparecer na cena política em fevereiro de 1992, quando foi um dos responsáveis por uma tentativa de golpe de estado contra o então presidente Carlos Pérez. Seu plano fracassou. Chávez, então, concedeu entrevista pedindo que seus companheiros deixem as armas, para evitar um “banho de sangue” no país. Durante o processo, 49 pessoas foram mortas.
Ainda preso, foi figura importante de uma outra tentativa de golpe, em novembro daquele mesmo ano. Em vídeo divulgado pela TV estatal, controlada pelos golpistas, o futuro presidente louvava o movimento revolucionário bolivariano. O golpe de novembro também fracassou, deixando 171 mortos pelo caminho.
Com a eleição de Rafael Caldera para presidente do país em 1994, Chávez e os demais conspiradores bolivarianos foram soltos da prisão. Quatro anos depois, aos 44 anos, com o apoio do Partido Comunista Venezuelano, do Movimiento al Socialismo, entre outros, Chávez saiu vitorioso das eleições presidenciais com 56% dos votos válidos.
No Brasil, o jornal O Estado de S. Paulo trazia a reportagem em 7 dezembro de 1998, com o título “Eleição venezuelana consagra o golpista Chávez”. Nesse mesmo dia, o NY Times trazia uma pequena nota com o título: “Venezuelanos elegem um ex-líder golpista como presidente”.
Os golpes de 1992 tinham como alvo as políticas “neoliberais” então implementadas na Venezuela. Prometendo evitar os erros cometidos pelos soviéticos e sentado sobre as maiores reservas de petróleo do mundo, Chávez deu início ao seu reinado. E petróleo é a variável-chave para compreender a dinâmica política e econômica da Venezuela. Em 2017, por exemplo, algo como 95% das exportações venezuelanas se constituíam de petróleo bruto, refinado e derivados. Sendo assim, quando o preço do petróleo aumenta, a Venezuela enriquece. Quando cai, empobrece.
O peso do petróleo nas exportações venezuelanas: cerca de 95% vêm de vendas de petróleo bruto, refinado e derivados
O peso do petróleo nas exportações venezuelanas: cerca de 95% vêm de vendas de petróleo bruto, refinado e derivados
 
Fonte: The Observatory of Economic Complexity/MIT.
O gráfico mostra o preço médio do petróleo entre 1999 e 2016, já ajustado pela inflação.
O gráfico mostra o preço médio do petróleo entre 1999 e 2016, já ajustado pela inflação.
 
Gráfico: InflationData.com
Quando Chávez assumiu, o preço do barril estava próximo de US$ 25, entrando numa trajetória quase linear de alta, atingindo o valor recorde de US$ 103 em 2008. Com o preço real médio multiplicado por quatro em menos de uma década, Chávez pôde implementar uma série de políticas sociais que o transformaram em um líder extremamente popular. Ao controlar o Exército e o principal setor da economia – já que a estatal PDVSA é a grande empresa da área –, Chávez tornou-se o líder inconteste daquele país.
Em 2009, em consequência da crise americana, o preço do petróleo cai abruptamente, mas logo se recupera, atingindo US$ 95 em 2013, ano da morte de Chávez. A partir daí, entra em cena Nicolás Maduro, ex-motorista de ônibus que havia servido como Ministro das Relações Exteriores e vice-presidente. Sem o mesmo carisma de seu antecessor e sofrendo com nova queda do preço do petróleo, Maduro redobrou as apostas no autoritarismo e no populismo econômico.
Com a queda nas receitas do petróleo e como forma de continuar financiando os gastos do governo, só sobrou a Maduro o velho e ineficaz remédio de imprimir dinheiro, fazendo com que a inflação na Venezuela explodisse. Para este ano, o FMI espera uma taxa de inflação acima dos 10.000%.
Com a queda no valor das exportações, a Venezuela se viu sem dinheiro para financiar suas importações, fazendo com que o abastecimento de produtos básicos e insumos industriais e agrícolas entrasse em colapso. Não há comida, não há peças de reposição, não há remédios, pois não há dinheiro. A fome, a doença, o desemprego e a desesperança têm sido o motor da migração em massa de venezuelanos, algo que se denomina diáspora bolivariana. Mais de 2 milhões de venezuelanos saíram do país desde 2014.

Nova liderança instiga guerra civil

A catástrofe econômica não é inteiramente conhecida, pois não há estatísticas confiáveis. É provável, porém, que seja uma das maiores crises econômicas já registradas por um país que não atravessou uma guerra ou uma catástrofe natural de grande escala. A Venezuela entrará de modo negativo para os anais da história econômica do mundo.
A crise agora se agrava graças às questões geopolíticas. A decisão de parte importante da comunidade internacional (EUA, Canadá, União Europeia e o grupo de Lima, por exemplo) em reconhecer Juan Guaidó como presidente da Venezuela é algo grave. Um país com dois presidentes em exercício e reconhecidos por superpotências econômicas e militares (China e Rússia, por exemplo, apoiam o regime de Maduro) faz com que as possibilidades de guerra civil e/ou secessão cresçam.
As sanções econômicas impostas por Trump tornam a situação fiscal da Venezuela ainda mais desesperadora, implicando na piora da fome e da mortalidade. Apoiado por gestos e palavras de insanos como Trump e Bolsonaro, Guaidó publicou em seu twitter uma mensagem que parece um apelo à invasão estrangeira e/ou à guerra civil.
Há chances reais e efetivas de a Venezuela se tornar um novo Afeganistão, Iraque, Síria ou Líbia. Não há mocinhos nessa história. Os países nos quais os EUA estimularam ou provocaram a queda de ditadores – inclusive durante o governo Obama – caíram numa espiral de caos político e econômico. Se Trump decidir armar a oposição, China e Rússia tampouco ficarão sem apoiar seus aliados. Seria uma tragédia sem paralelos na história recente da América Latina um novo episódio da nova guerra fria travada por essas três potências.
Nenhum desses países tem real interesse pelo bem-estar dos venezuelanos. Suas preocupações são mesquinhamente econômicas e geopolíticas. Nenhum desses países se guia pelos princípios humanitários da Carta das Nações Unidas, mas pelo poder e pela baixa política do Conselho de Segurança.
Ainda que não haja uma invasão estrangeira imediata, cada uma dessas potências pode armar e estimular setores do Exército e da sociedade civil, arrastando a Venezuela para um conflito ao estilo da Síria. Estamos vendo um palco de guerra sendo montado em nossas fronteiras estimulado pelas palavras e gestos de dois despreparados que nos governam: Bolsonaro e Ernesto Araújo. Ou pior: pelos tuítes nada diplomáticos de um dos filhos do presidente.

Mourão, o adulto na sala

Numa clara sinalização de guerra de atrito entre o Itamaraty olavista e as Forças Armadas, Mourão participou da última reunião do grupo de Lima, posando para fotos oficiais ao lado do chanceler Ernesto. O vice-presidente parece mesmo condenado a desempenhar o papel do adulto na sala.
declaração final do grupo de Lima foi surpreendentemente serena. Ainda que condene as ações do “regime ilegítimo de Nicolás Maduro” e enfatize o reconhecimento de Guaidó como único presidente legítimo do país, o documento afirma que “a transição para a democracia deve ser conduzida pelos próprios venezuelanos e sob o marco da Constituição e do direito internacional”. Frase em plena consonância com os princípios elencados no artigo 4° de nossa Constituição, entre os quais estão o respeito à “autodeterminação dos povos” e a “não intervenção”.
Permitir a entrada de tropas americanas via solo brasileiro para atacar um país vizinho (numa manobra ilegal, que não seria aprovada pelo Conselho de Segurança, graças ao veto de Rússia e China) seria uma mancha em nossa história e um crime grave o suficiente para determinar a saída de Jair Bolsonaro do palácio do Planalto. Por meio de gestos e frases descuidadas, Bolsonaro pode provocar a primeira guerra entre o Brasil e um de seus vizinhos desde a Guerra do Paraguai (1867-1870) – sempre bom não perder de vista que a Venezuela já gastou desde meados dos anos 2000 algo como US$ 10 bilhões apenas com armamentos russos.
Ainda que o cenário de um confronto direto entre Brasil e Venezuela seja pouco provável, um governo sensato mediria as palavras e buscaria agir como mediador na crise daquele país. Mas uma retórica bélica, nacionalista e inflamada como a dos Bolsonaro, ensina a história, é um convite à violência.
Que Mourão seja mesmo “o adulto na sala”, tenha ouvido moucos para os idiotas, e costure uma saída pragmática para o Brasil.
copiado https://theintercept.com/

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