Entenda promessa e travas do salvo-conduto para dono de terra atirar em invasores
Bolsonaro quer livrar fazendeiros de punição caso estejam defendendo sua propriedade ou sua vida
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) promete enviar ao Congresso nos próximos dias uma proposta para dar salvo-conduto a donos de terra que atirarem em quem tentar invadir suas propriedades.
A fala foi comemorada por ruralistas, mas entidades ligadas aos trabalhadores rurais receiam que a proposta possa agravar os conflitos por terra. Nos últimos 33 anos, disputas fundiárias deixaram quase 2.000 mortos no país, mas só 8% dos casos foram levados a julgamento.
A promessa do presidente também foi criticada por especialistas em direito, que veem ameaça à Constituição. Se a lei passar no Congresso, dizem, poderá ser barrada no Supremo Tribunal Federal (STF).
"Não existe equivalência entre propriedade privada e vida, então você não pode sacrificar uma vida a pretexto de proteção de propriedade. Juridicamente isso não é viável", diz a professora de direito da FGV-SP Maíra Zapater.
O que Bolsonaro prometeu? Na segunda (29), durante a Agrishow, em Ribeirão Preto (SP), o presidente afirmou que pretende enviar ao Congresso um projeto para que a exclusão de ilicitude (quando se considera que não há crime) seja aplicada no caso de proprietários rurais que estejam defendendo sua propriedade ou sua vida.
No dia seguinte, em entrevista à Band, o presidente disse que é um direito do fazendeiro atirar, mas que "tem que ter legislação bastante rígida para quem porventura usa arma de forma irregular".
O que diz a lei atual sobre exclusão de ilicitude?
Segundo o artigo 23 do Código Penal, não há crime quando o fato for praticado:
Segundo o artigo 23 do Código Penal, não há crime quando o fato for praticado:
- em estado de necessidade (“considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”)
- em estrito cumprimento do dever legal (caso das polícias, por exemplo)
- em legítima defesa —ou seja, para proteger a integridade física ou a vida própria ou de outra pessoa
O que acontece com um proprietário que atira em alguém que tentou invadir sua terra? Depende da situação. Professora de direito da FGV-RJ, Silvana Batini explica que, segundo a lei atual, um proprietário pode não ser punido por atirar em uma situação de risco. Sua reação, contudo, precisa ser moderada e proporcional à ameaça.
Cabe à Justiça avaliar cada caso e decidir se houve legítima defesa ou se houve excesso. Um exemplo: um juiz pode entender que a exclusão de ilicitude se aplica em uma situação em que a fazenda foi invadida por pessoas armadas no meio da noite, mas que o mesmo não vale para uma invasão pacífica durante o dia.
"Pode ser que você precise atirar, numa situação limite, mas não se pode criar essa autorização genérica e abstrata. Hoje, pela legislação, não é impossível o emprego de arma para proteger a propriedade. O que não é possível é estabelecer o uso da arma a priori", afirma a professora.
Quais as críticas que os especialistas em direito fazem à proposta de Bolsonaro? Cinco especialistas ouvidos pela reportagem afirmaram que a proposta de permitir que uma pessoa atire para defender sua propriedade é inconstitucional.
O Artigo 5º da Constituição garante ao cidadão o direito à vida e o direito à propriedade, mas eles não são equivalentes. Isso porque, embora a propriedade seja considerada um direito fundamental, a Constituição admite restrições, como em caso de não atendimento da função social, como produtividade e respeito às regras ambientais e trabalhistas.
Em relação ao direito à vida, a única restrição da Carta Magna é em caso de guerra.
“[A proposta de Bolsonaro] viola a proteção que a Constituição busca dispensar ao direito à vida, que se sobrepõe ao direito de propriedade”, diz Guilherme Amorim, professor de direito constitucional e sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados.
Considerando que o projeto seja aprovado, assentados e indígenas também poderão atirar em quem invadir suas terras?
Ainda não é possível dizer, visto que o projeto ainda não foi apresentado. O que especialistas afirmam é que o texto precisaria delimitar quem se enquadraria na lei.
Ainda não é possível dizer, visto que o projeto ainda não foi apresentado. O que especialistas afirmam é que o texto precisaria delimitar quem se enquadraria na lei.
O que dizem os ruralistas? Jerônimo Goergen (PP-RS), deputado federal ligado ao agronegócio e integrante da base do governo na Câmara, defende a proposta. "O que o presidente está querendo dizer não é que poderá matar, mas para o ladrão não ir assaltar. É uma lei mais dura, um aviso de 'não vai lá que pode morrer'", afirma.
Para ele, a lei se aplicaria não apenas a invasões de terra para pressionar o governo pela desapropriação da área para a reforma agrária, mas a roubos de defensivos agrícolas, tratores e de animais. "Não temos policial para mandar para o interior. O ladrão sabe que não tem segurança e que os produtos que existem são de alto valor", defende o deputado.
A Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) não responderam ao pedido da Folha para comentarem a proposta.
E as entidades ligadas aos trabalhadores rurais? A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) criticam a proposta e afirmam que ela pode contribuir para agravar a violência no campo.
Segundo levantamento da Pastoral da Terra, o país teve, de 1985 a 2018, 1.466 episódios de assassinatos relacionados a conflitos de terra, com 1.938 mortos. Apenas 8% (117) dos casos registrados nesse período, contudo, foram levados a julgamento ---e só 33 mandantes e 101 executores foram condenados.
"O que ele [Bolsonaro] está propondo é legitimar o que já existe na prática, e os números estão aí para dizer. Já se mata no campo desse jeito", crítica Ruben Siqueira, da CPT.
Quando o governo pretende enviar a proposta? Isso ainda não foi anunciado. Também não foi dito se seria enviado projeto de lei ordinária ou de emenda à Constituição (PEC). Procurado pela reportagem para comentar essas questões, assim como a possível inconstitucionalidade da proposta, o governo Bolsonaro não respondeu.
Na quarta (1º), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, disse que a promessa do presidente ainda é uma discussão "prematura". Questionado sobre esse tema em entrevista à rádio Jovem Pan, ele evitou se manifestar sobre a proposta, dizendo que ainda precisaria conversar com Bolsonaro.
"São questões que estão sendo discutidas dentro do governo. Antes de ter no papel exatamente o que vai se propor, quais são os limites do que vai se propor e tal, é muito prematura essa discussão", afirmou. "Eu, sinceramente, não me sinto confortável em discutir esses assuntos. São questões que eu ainda tenho que falar com o presidente, ouvi-lo, discutirmos e colocar algo sólido no papel", completou.
Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou à Folha que não concorda com a proposta.
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