Tunísia após a Primavera Árabe
Além da torre de vigia da antiga fortaleza conhecida como Ribat, se espalha uma vista panorâmica da cidade tunisiana de Sousse. A leste fica a costa mediterrânea, onde os cartagineses ancoravam os navios durante batalhas épicas contra o Império Romano. A sul e oeste, as passagens labirínticas de Medina, o antigo bairro murado da cidade, se estendem até sumirem da vista entre um mar apinhado de casas e minaretes.
Numa tarde ensolarada de janeiro, caminhei ao longo das ameias da fortaleza vazia, espiando por entre as fendas usadas por atiradores de flechas as ruas onde caminhavam tunisianos idosos de chapéus vermelhos e mulheres com lenços na cabeça. Ocorreu-me que eu podia ver quase tudo em Sousse dessa posição.
Menos uma coisa: colegas viajantes.
Após chegar à Tunísia poucos dias atrás, mal vi turistas. Na verdade, era baixa temporada. Porém, o verdadeiro motivo, sei bem, era a Revolução de Jasmim, de janeiro de 2011, quando os tunisianos se levantaram contra o regime autoritário e forçaram a fuga do antigo homem forte Zine El Abidine Ben Ali.
O turismo caiu mais de 30 por cento no ano passado, ainda que, no geral, o país estivesse calmo após a deposição de Ben Ali. Durante minha visita, as recepcionistas de hotel e atendentes nos restaurantes lamentaram inúmeras vezes a falta de turistas.
Assim, foi uma agradável surpresa quando uma família alemã de quatro pessoas interrompeu meu devaneio pacífico no topo da torre de vigia. Eles estavam viajando de ônibus, admirando "a religião e a cultura", como me disse o pai, Tobias Haug, enquanto examinava a vista. "Todos foram amistosos", contou, acrescentando que os amigos na Alemanha estavam preocupados antes da viagem. "Eles não sabem que a guerra acabou há mais de um ano."
Para os viajantes, visitar a Tunísia agora oferece a chance de não apenas testemunhar um momento crucial na História do país como também de obter uma noção das lutas e apostas do jogo da Primavera Árabe em geral. Enquanto os ditadores da região caem ou são questionados, a Tunísia, ainda que longe de calma, oferece um exemplo tranquilizante do que pode emergir das ruínas. As eleições de outubro produziram resultados inimagináveis durante os anos de Ben Ali, quando grupos islâmicos e dissidentes eram sufocados: um primeiro-ministro de um partido muçulmano moderado e um presidente com histórico de defensor dos direitos humanos.
Karim Ben-Khelifa/The New York Times
Um ano depois do fim da revolução, tirei proveito da infraestrutura turística bem desenvolvida da Tunísia – hotéis abundantes, restaurantes limpos e transportes, em geral, eficientes – e comecei uma jornada de oito dias de ônibus e trem para ver os cenários célebres do país e tomar o pulso do vital e combalido setor turístico.
Em cidades como Túnis, onde o debate público agora pode ser expresso em jornais, exposições e arte de rua, encontrei gente amistosa e feliz por trocar ideias com viajantes. Mais longe, em locais mais dependentes do turismo como El Jem, com suas maravilhosas ruínas romanas, os moradores expressavam alívio pelo fim do antigo regime, mas também comentavam a necessidade urgente de começar a encher novamente os hotéis e restaurantes. Em todo lugar, encontrei tunisianos descontraídos e gratos por haver alguém disposto a visitar o país em meio a essa transição.
Choveu no meu primeiro dia em Túnis. Fiquei olhando pela janela do antiquado Hotel Excel a Avenue Habib Bourguiba, local dos maiores protestos. Cheia de edifícios coloniais franceses e cafés animados na calçada, a via pública representava um curso intensivo da História moderna da Tunísia, começando pelo nome. Habib Bourguiba, advogado formado em Paris, ofereceu uma voz apaixonada contra o colonialismo francês e ajudou a conquistar a independência do país, em 1956. Um ano depois, ele se tornou presidente e começou a modernizar o país, garantindo educação universal e decretando direitos iguais para as mulheres. A poligamia foi banida e o uso do véu, desencorajado.
Porém, as tendências ditatoriais de Bourguiba desgastaram as boas-vindas. Ben Ali, seu primeiro-ministro, o depôs em 1987, mas permaneceu comprometido com a educação e os direitos femininos. Seu sufocante Estado policial e estilo de vida opulento, no entanto, levaram à própria queda. Em dezembro de 2010, quando Mohamed Bouazizi, jovem vendedor de frutas numa cidade rural, colocou fogo em si mesmo para protestar contra sua pobreza e assédio da polícia, a nação inteira se incendiou.
Naquela noite, em frente ao teatro Art Nouveau, avistei folhetos anunciando um documentário chamado "Chroniques de la Revolution". Eu estava ansioso por testemunhar os principais eventos de janeiro de 2011, ainda que de segunda mão, o bigodudo bilheteiro disse que eu havia perdido o filme, cuja estreia coincidiu com o aniversário da revolução, em 14 de janeiro.
"Não está passando mais", ele explicou em francês. "Quer um ingresso para 'Os Smurfs' em 3-D?"
Karim Ben-Khelifa/The New York Times
Ainda ávido por aprender mais sobre a Revolução de Jasmim, tomei um trem para
La Marsa, subúrbio à beira-mar. Prédios de apartamento art déco se enfileiravam
na orla da praia enfeitada com palmeiras. Em conjunto com o vizinho Sidi Bou
Said, vilarejo azul e branco com hoteizinhos adoráveis e galerias, o bairro
compõe o coração artístico do país. Butiques e galerias – principalmente a
famosa El Marsa – pontilham as ruas, e durante a primavera acontece a Printemps
des Arts, festival quinzenal de teatro e arte contemporânea da Tunísia e outros
países.Na livraria Mille Feuilles, uma exposição chamada "Degage!" oferecia uma visão notável das manifestações do ano passado em Túnis. Batizada em função do refrão em francês dos manifestantes, "Saia!", a mostra traz fotos da multidão tomando a Avenue Habib Bourguiba. Numa delas, um grupo de manifestantes – jovens, velhos, endinheirados, pobres, leigos, religiosos – pressionavam o ministro do interior, famoso pelas prisões. A organizadora da exposição, uma tunisiana de belo penteado chamada Leila Souissi, explicou que a exibição seria impensável antes da queda de Ben Ali. "Eu teria sido presa e a galeria estaria fechada", ela contou. "Agora, podemos dizer qualquer coisa", concluiu.
Depois de uma sexta-feira sossegada em Sousse, durante a qual a maior parte das lojas estava fechada para o Sabá, a cidade despertou por completo na manhã seguinte. Buzinando e cuspindo fumaça, minivans e táxis deixavam os compradores. Ocupando mesas lotadas, os vendedores exibiam seus artigos – meias do Mickey Mouse, tatuagens de hena e utensílios de cozinha, além de camisas e calçados tão malfeitos que somente a fé do freguês os manteria inteiros. Nas proximidades, as barracas vendem artesanato – bolsas de couro, jogos de xadrez, taças de chá pintadas – misturadas a vendedores de suco e grelhas de kebab.
Um ziguezague de passagens estreitas me levou a Dar Essid, mansão que já pertenceu aos soberanos otomanos da Tunísia. Eu tinha o local exclusivamente para mim e caminhei sem pressa pelos cômodos com lustres de cristal e tapetes orientais. Um cartão no quarto de dormir principal explicava o segredo da lamparina ao lado da cama: "A lamparina a óleo era usada desde a época dos romanos pelo marido para garantir que daria prazer à esposa. Para comprovar o vigor e controle, o homem tinha de continuar enquanto a lamparina permanecesse acesa".
O bilheteiro me encontrou e apontou uma marca negra na parede. Um contrato de casamento e um de enterro de vários séculos foi roubado durante o caos da revolução. Contudo, não era nada comparado aos roubos maiores que os tunisianos sofreram. "Ben Ali roubou 23 anos de nossas vidas", disse o homem.
Karim Ben-Khelifa/The New York Times
Para o adorador de baklava, aquelas camadas de massa folheada encharcadas de mel, amêndoas e pistaches, uma peregrinação à Patisserie Masmoudi, em Sfax, é essencial. No local, na imaculada loja azul e branca, mulheres de branco entraram para a história da baklava cerca de uma década atrás criando a maior versão do mundo, espécime que recebeu uma menção no Livro Guinness dos Recordes Mundiais.
"Ela pesava cerca de 1.150 quilos", contou a caixa.
Eu me contentei com um sortimento de baklavas pequenas e outras especialidades, como o "Mosaique Pistache", pequeno e suculento biscoito de pistache recoberto com pistache picado e uma espécie de coroa espiral feita de pinhões.
Para jantar, procurei além das muralhas de Medina outra instituição gastronômica com décadas de idade, o Restaurant Baghdad. Dentro da sala branca simples, pedi Chateau Magon, mistura de shiraz e merlot da Tunísia, embebido no brik clássico, entregue por um garçom idoso de paletó branco. Sob o garfo, a casca fina e crocante da massa, ainda quente, transbordava ovo pegajoso misturado a cebolinha e atum. A seguir, veio a ojja, guisado picante de tomate com ovo frito, pimentão verde, cebola e pedaços de linguiça merguez vermelha. O desfecho foi uma dose flamejante de licor de tâmara do gerente, que parecia aliviado ao ver uma cara estrangeira.
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Karim Ben-Khelifa/The New York Times
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