Um retrato da cruel realidade nas escolas

Pro dia nascer feliz


sex, 28/09/12
por Yvonne Maggie |
categoria Todas
O belíssimo documentário de João Jardim Pro dia nascer feliz, realizado entre 2004 e 2005, é um dos raros filmes que retratam com delicadeza e sensibilidade a cruel realidade da vida de adolescentes na escola. João Jardim descreve o cotidiano de jovens em quatro escolas brasileiras. Em Pernambuco, São Paulo, Duque de Caxias e no Rio de Janeiro, todas elas são públicas. Há também uma escola em São Paulo, particular, em um bairro de elite. João Jardim não deixa de mostrar ainda outro estabelecimento de ensino, não nomeado, mas que o espectador percebe que é uma instituição para adolescentes em conflito com a lei.
O filme começa com dados da educação da década de 1960 na voz de um locutor, provavelmente do Canal Cem, informativo de meados do século XX, feito para o cinema e que passava antes das sessões. As frases vão repetindo o bordão que conhecemos tão bem e que ainda hoje se repete, sobre a precariedade “da educação” no Brasil. Passando pelos anos 1960 o documentarista mostra os dados de 2000 para constatar a realidade de um sistema que conseguiu universalizar o acesso e incluiu crianças e jovens antes alijadas do ensino. Em 1960 apenas 30% dos jovens e crianças tinham acesso à escola.
Desde o sertão de Pernambuco, João Jardim entrevista estudantes e professores e descreve os ambientes e rituais escolares. Ao estilo de François Truffaut, consegue aproximar meninos e meninas da elite paulista com estudantes das escolas públicas nas periferias das três grandes cidades brasileiras. O sofrimento, a solidão e os sonhos de jovens brasileiros são narrados por suas próprias vozes.  O espectador não sai desse filme imune à crueza da vida desses adolescentes, e dos professores que se dedicam à difícil tarefa de educar 95% de jovens brasileiros com os meios precários de que dispõem e inseridos na cultura da repetência, expressão cunhada por Sergio Costa Ribeiro seguindo os passos de Teixeira de Freitas, que nos anos 1940 descobriu os princípios de organização da vida escolar brasileira. João Jardim expõe, especialmente, um dos cerimoniais mais chocantes da escola, o famoso conselho de classe, que nunca havia sido filmado, e mostra a difícil escolha de Sofia que cabe aos professores em seu papel de mestres.
Tenho discutido o documentário em muitas escolas do Rio de Janeiro. Essas sessões são riquíssimas porque mostram como os estudantes se interessam pelo tema, debatendo as questões com seriedade e expressando ideias de equidade, de justiça e da missão das escolas.
No início do mês de setembro houve mais um desses fabulosos debates em uma escola localizada em Ramos. Com turmas cheias, as aulas corriam normalmente, ou seja, os professores em sala escrevendo muito no quadro negro e, os estudantes nem sempre atentos ao assunto, e muito menos ao professor. Conversavam entre si e brincavam entre carteiras do início do século XX, de madeira de lei, geminadas e pesadíssimas, tornando o espaço da sala ainda mais apertado e o tumulto ainda maior.
Na classe em que passamos o filme, um dos alunos ao fazer um belíssimo resumo do documentário terminou dizendo: “Estudar é horrível. Ninguém gosta mesmo de estudar. A gente gosta de ver os amigos, de estar com eles na escola, mas estudar, quem gosta de estudar?”
Não tive como discordar.  É preciso tempo e brechas para que os estudantes possam descobrir seus caminhos. Fiquei impressionada com essa turma que falou pouco, mas resumiu suas angústias com frases bem construídas. Não houve nenhuma balbúrdia embora o filme tenha sido visto numa televisão de 20 polegadas e projeção de péssima qualidade. Mesmo assim, os olhos dos alunos brilhavam.
O que mais me impressionou nesse debate foi a sinceridade das falas. Todos reforçaram que, apesar de não gostarem de estudar, estavam ali para ter uma vida melhor do que a de seus pais. Todos disseram que, ao contrário dos meninos e meninas da elite vistos no filme, não tinham herança nem gostariam de seguir a profissão de seus pais. A maioria dos meninos queria jogar futebol e alguns já estavam na escolinha do clube de Bonsucesso. Pensavam alto. Um deles disse que seu sonho era ser goleiro da seleção brasileira.
O debate ficou mais intenso quando dois assuntos foram abordados. A falta dos professores e a aprovação automática. Naquela escola e em muitas outras, como nas descritas no filme, muitos professores faltam e as aulas terminam mais cedo. A maioria dos alunos acha um absurdo a escola não substituir os professores faltosos, e mais ainda a aprovação automática, que lhes parece uma dupla injustiça: Se não é necessária a reprovação porque precisam ir à escola onde pouco aprendem? E os que se esforçam são aprovados junto aos que não se esforçam? Quem não estuda deve ser reprovado, segundo disseram. Alguns, porém, apoiam essas duas práticas – faltas de professores e aprovação automática – quase estruturais na maioria das escolas públicas brasileiras. Para revolta da maioria, afirmam seriamente que é bom não ter aula e sair mais cedo e que o injusto é a reprovação que os obrigava a fazer tudo de novo.
O filme termina com a câmera quase parada retratando os rostos dos entrevistados. Quando indaguei por que o final do filme tinha sido feito dessa maneira, a maioria disse que era para mostrar que havia diferenças entre os estudantes, mas que eles não eram diferentes. Ricos e pobres, meninos e meninas, brancos e negros e de outras muitas cores, tímidos e agressivos, altos e baixos, todos devem ser tratados como iguais.
Fiquei impressionada com a lógica de seus argumentos e saí da escola com a sensação de que talvez estivéssemos assistindo a um novo cenário da educação no Brasil porque quanto mais permanece a mesma coisa, mas muda. Os estudantes não se balizam apenas no que é ensinado na escola. Fiquei certa disso ao voltar à sala dos professores e, ao conversar com a professora de sociologia, ver o livro didático usado. Mas este é tema para um próximo post.

COPIADO :g1.globo.com

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