EDUCAÇÃO SOB ATAQUE
Para que serve a filosofia em tempos de mistificadores?
ACERVO ONLINE | BRASIL
por Leonardo Lusitano
Maio 13, 2019
Imagem por Agência Brasil
Os cultuadores da violência e da ignorância desejam destruir tudo aquilo que não podem controlar. Mas a filosofia e seus pensadores e pensadoras resistem desde a Grécia.
O ensino e a pesquisa nas áreas de Filosofia e Ciências Sociais estão sob ataque dos cultuadores da ignorância e da violência. Bolsonaro e o novo ministro da educação anunciaram uma “descentralização” de investimentos. A proposta de cortar verbas de cursos de Humanas tem pouco peso prático. E muito ideológico.
Jair Messias e o ministro Abraham Weintraub são mistificadores, não têm nada de técnico nesse anúncio nebuloso. Um por cento dos alunos de federais está cursando Filosofia e Sociologia. Os dados são do censo educacional superior de 2017. As duas áreas registram 2,5% dos programas de mestrado e doutorado das federais, segundo a Capes. Bolsas: 1,4% dos Gastos do CNPq são direcionados às Ciências Sociais. Para Filosofia o percentual é de 0,7%. Por outro lado, só as engenharias concentram mais de 20% dos gastos com bolsas. Qual seria então o impacto desse tipo de corte que não seja acabar com o conhecimento crítico e com o pensamento?
Diante disso, a tropa virtual que apoia o governo se postou nas redes sociais questionando a utilidade dessas áreas de ensino e pesquisa. Se considerarmos Olavo de Carvalho um filósofo, realmente a Filosofia não serve para nada. O guru de Jair Messias e dos seus filhos nunca criou um conceito, usa falácias ofensivas, não tem rigor para fazer ressoar o pensamento de filósofos. Só faz comentários baseados em opiniões e delírios. É autoritário, cria discípulos que pagam suas aulas e se comportam como escoteiros que fizeram um juramento diante de um cachimbo, uma garrucha enferrujada e uma web cam.
Se isso fosse Filosofia, serviria para envergonhar gente lúcida. O que encanta na Filosofia é a força prática dos conceitos. Como a relação entre conceitos e áreas como arte, ciência e política é criadora de novos mundos. O filósofo francês Gilles Deleuze lembra que a filosofia não serve nem ao Estado nem à igreja ou a qualquer outro poder estabelecido.
Servir ao Estado, à igreja ou a qualquer outro poder estabelecido é tudo que pretende o tal guru, nosso Rasputin Tupiniquim. Reduzir a filosofia a um discurso ideológico que dê aos grupos que ocupam o Estado um poder soberano com ares religiosos. Assim seria possível destruir completamente quem pensa e vive diferente. Coisa de cruzado medieval.
Ou pior: coisa de ideólogo. Segundo o psicanalista Christian Dunker, a função de um ideólogo é dupla: justificar as arbitrariedades de quem ele se aproveita para criar projeção e traduzir as mensagens do líder de modo a criar vantagens estratégicas para seus adeptos no exercício do pequeno poder cotidiano. Dunker nos lembra que o saber jurídico da República de Weimar foi neutralizado por um ideólogo como Roland Freisler, durante a ascensão do nazismo; o saber universitário norte-americano foi controlado por um ideólogo como Joseph McCarthy, no início da Guerra Fria; o saber artístico e intelectual soviético foi destroçado por Andrei Jdanov, durante a ascensão do stalinismo. Todos eles eram pensadores medíocres, mas que sabiam usar uma oscilação de tom que os permitia fazer alusões impressivas ao lado de palavras chulas gerando um efeito de autenticidade. Podiam ser também eruditos e especialistas em apenas uma área, mas que transferiam sua autoridade para problemas nos quais não eram realmente estudiosos.[1]
Ao contrário do que opina Carvalho, não temos como destino voltar a uma essência universal onde se encontra o bem (ou, pior, o cidadão de bem). Nosso povo é um entrecruzamento do português invasor com indígenas originários e com africanos que vieram escravizados. Essa combinação diversa entre conhecimento, beleza e alegria, pode ser perversa pendendo mais para o conhecimento e suas técnicas neoliberais como forma de dominação e gerar exclusão das diferenças, se o sentido da combinação for o passado – como quer o guru. Mas também pode ser uma combinação ética, criar boas relações, se apontar para o futuro. Foi nisso que Darcy Ribeiro apostou toda uma vida voltada para o pensamento. É preciso inventar o Brasil que nós queremos, dizia o pensador Darcy Ribeiro. Os povos da floresta já nos ensinaram a extrair o veneno da mandioca brava e a transmutá-la em mandioca boa.
Mas, para que serve então a Filosofia? Deleuze não nos deixa esquecer: a filosofia serve para entristecer. Para sentirmos vergonha da tolice. Não tem outra serventia a não ser esta. Denunciar a baixeza do pensamento sob todas as formas. A Filosofia serve para denunciar mistificações de qualquer fonte e objetivos. Inclusive essas, que são tentadas por Bolsonaro, filhos, guru e ministros indicados. Deleuze não fala vagamente sobre o que possa ser uma mistificação. É bem claro. Mistificação é essa mistura de baixeza e de tolice que forma uma cumplicidade assustadora entre vítimas e algozes.
Um exemplo? Trabalhadores defendendo uma reforma da Previdência empunhada pelo mercado para fazer com que idosos trabalhem mais e se aposentem miseráveis. Ou morram sem se aposentar. No Chile, Pinochet foi um mistificador, com ajuda do Chicago Boy Paulo Guedes. Fizeram a maioria do povo desejar capitalização privada. Prometeram que em trinta anos renderia aposentadorias equivalentes a 100% dos salários. Rendeu 30% e o índice de suicídios na terceira idade aumentou. Isso é mistificação, fazer pessoas humildes desejarem a própria desgraça.
Se ainda restar dúvida sobre para que serve a filosofia, podemos ficar com as palavras cortantes de Gilles Deleuze: “[…] Fazer, enfim, do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral, da religião. Vencer o negativo e seus altos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a não ser a Filosofia? A Filosofia como crítica mostra-nos o mais positivo de si mesma: obra de desmistificação. […] tolice e a bizarria, por maiores que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de Filosofia para impedi-las, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, para proibi-las, mesmo que seja por ouvir dizer, de serem tão tolas e tão baixas quanto cada uma delas desejaria. Alguns excessos lhes são proibidos, mas quem lhes proíbe a não ser a Filosofia? Quem as força a se mascararem, a assumirem ares nobres e inteligentes, ares de pensador? Certamente existe uma mistificação propriamente filosófica; a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da crítica são testemunhos disso. Mas a mistificação da Filosofia começa a partir do momento em que esta renuncia a seu papel […] desmitificado e faz o jogo dos poderes estabelecidos, quando renuncia a contrariar a tolice, a denunciar a baixeza”.[2]
Os cultuadores da violência e da ignorância desejam destruir tudo aquilo que não podem controlar. Mas a filosofia e seus pensadores e pensadoras resiste desdem a Grécia. Atravessando corpos, iluminando corações diante da ignorância. Como nos versos de Chico Buarque em O que será, ela cria novas possibilidades, aumenta nossa potência. Não pode ser capturada por governos e nem mesmo julgada por juízes que julgam, sobretudo, a própria vida enquanto princípio:
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo…
Leonardo Lusitano é professor de história no município de Itaboraí, mestre em Letras pela UFRJ e doutorando em Filosofia pela Uerj.
[1] Christian Dunker. Olavo de Carvalho, o “ideólogo de Bolsonaro”, contra o professor Haddad.
[2] Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia.
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