Por 296 votos a favor e 177 contra, a Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira, 26, o texto-base da chamada reforma trabalhista. A votação aconteceu dois dias antes da greve geral programada para acontecer em todo o país justamente contra as reformas trabalhistas e previdenciárias do governo Temer. As duas pautas são consideradas prioritárias pela gestão peemedebista, e os debates (e embates) acontecem quase concomitantemente.
Na véspera da votação, por exemplo, quem quisesse acompanhar as discussões dos temas em suas respectivas comissões especiais na Câmara, longe do espalhafato observado no Plenário no dia seguinte (entre outras questões, um deputado usou o microfone para pedir a CPI da segurança pública), teria de escolher entre uma e outra. Ambas eram transmitidas ao mesmo tempo pelo canal no YouTube da TV Câmara.
Na comissão da reforma trabalhista, presidida pelo jovem deputado tucano de Goiás, Daniel Vilela, a diferença de posições entre governistas e oposição, manifestada durante as sessões, mostra o tamanho do impasse sobre as regras que hoje regulam as relações trabalhistas do país, cujo marco data de 1943, quando Getúlio Vargas aprovou a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Entre as normas estabelecidas desde então,  está a proteção aos empregados em caso de demissão sem justa causa.
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Reprodução da página do Facebook do MBL

Como se trata de uma lei estabelecida nos anos 1940, e obviamente muita coisa mudou de lá para cá, os defensores das mudanças na CLT chamam as reformas em análise de “modernização”. Argumentam que as leis atuais criam amarradas ao empregador, impedem a geração de empregos e empurram parte da mão de obra para a informalidade.
Embora tentem emplacar a ideia de que patrão não é inimigo dos funcionários e vice-versa, a defesa ou a oposição das propostas parte de dois pontos inevitáveis de observação: uma é a do empregado; outra, do empregador.
“Não deveria nem existir”
“É melhor reduzir a jornada de trabalho em 10% do que demitir 10% dos funcionários em uma situação de crise”, disse o CEO da Votorantim S/A, João Miranda, em entrevista à Folha de S.Paulo.
“Quando o trabalhador está protegido, com carteira assinada e garantia de emprego, ele consome, compra uma casa. Mas, se ele tiver um contrato precário, de jornada de três horas, que segurança vai ter? Quanto mais você precariza o trabalhador, menos ele consome, menos a indústria produz e menos o país cresce”, contesta, Sérgio Nobre, secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT), também em entrevista para a Folha.
A disputa por posição tem eco entre os deputados. Na sessão de terça-feira, por exemplo, o deputado Vitor Lippi (SPDB-SP), argumentou que as mudanças não trarão riscos aos direitos do trabalhador, mas o esclarecimento de algumas “jurisprudências inadequadas, incompatíveis, prejudiciais” à geração de empregos no país. “Temos de valorizar o trabalhador, mas não podemos criar uma situação de insustentabilidade das empresas brasileiras.”
“Quem paga a conta é quem dá emprego.”
Um dos argumentos, além dos quase 13 milhões de desempregados, é que cerca de 60% das empresas morrem com menos de cinco anos de idade no Brasil.
Parte da culpa, segundo ele, cabe ao número de ações trabalhistas na Justiça e à proliferação dos sindicatos. “Quem paga a conta é quem dá emprego.”
O discurso está em sintonia com o que disse recentemente o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), vulgo Botafogo nas planilhas da Odebrecht: a Justiça do Trabalho, onde empregados podem recorrer caso se sinta injustiçado em casos de demissão ou eventuais abusos, “não deveria nem existir”.
Com essas mesmas leis, o Brasil atingiu o pleno emprego há poucos anos.
Sindicatos, Justiça Trabalhista e a própria lei que protege o trabalhador são assim, direta ou indiretamente, alçados a inimigos do empreendedorismo e da geração de empregos, mas nem todos pensam assim.
Na sessão, o deputado Alessandro Molon (Rede-RJ) lembrou: com essas mesmas leis, o Brasil atingiu o pleno emprego há poucos anos.
Segundo ele, o acordo negociado hoje entre trabalhador e empregador, ponto-chave da reforma, já prevalece sobre o legislado, desde que beneficie o trabalhador. “O que não existe é que o negociado seja pior do que o legislado para o trabalhador.”
A proposta de reforma, avalia, vai inverter essa posição e dificultar o acesso do trabalhador à Justiça. Segundo ele, é como dificultar o registro do crime em vez de combater a criminalidade. “Esse substituto (do projeto de lei) tem lado, e está do lado de quem tem muito. É injusto e é covarde”, disse no plenário.
Diante desta polarização, é no contexto em que se dá a discussão (e a forma como tem sido colocada) que está o principal fio desencapado da conversa. Enquanto centrais sindicais, que podem perder um montante generoso do financiamento das próprias atividades, mobilizam manifestações, e grupos apoiadores do governo lançam memes classificando os atos como coisa de vagabundo, a pergunta que vale um ministério no governo Temer é se, de fato, a remoção de alguns dispositivos da CLT será suficiente para alavancar a geração de empregos no país após anos seguidos de recessão.

Quando a crise ainda era marola

Para responder, é preciso voltar algumas casas. De fato, as mesmas leis hoje sob discussão estavam em vigência quando a crise era ainda chamada de marola – foi ontem, e não nos anos 1940.
No livro “As contradições do lulismo”, o cientista político André Singer analisa como o avanço da intervenção estatal provocou expansão dos postos de trabalho formais entre 2011 e 2014, quando as taxas de desocupação estavam próximas a 4,5%, e como isso se converteu em um problema, dali em diante, para o governo Dilma.
A tese de Singer é que, para revogar o arcabouço estatal que sustentava o pleno emprego, a burguesia usaria uma espécie de “greve de investimentos” como estratégia. “Talvez não seja casual que as inversões tenham estagnado de 2011 a 2013, vindo a cair em 2014”, escreve ele. O pleno emprego deu musculatura aos sindicatos, o que resultou na contínua elevação do número de greves. “As paralisações, que já vinham subindo desde 2008, atingiram quase 87 mil horas em 2012, o maior índice desde 1997. Depois, continuaram a crescer, batendo 111 mil horas paradas em 2014. Em número de greves, houve 873 em 2012 com um salto para 2.050 em 2013.”
A chamada bancada empresarial é formada por 208 deputados e está entre as mais atuais da Câmara.
Na mesma direção, escreve Singer, o salário médio real teve aumento de 13% entre 2011 e 2013 e, considerando-se a pressão de custos, decorrente da inflação e da desvalorização cambial, somada ao desaquecimento da economia, segmentos empresariais começaram a se queixar da elevada parcela do faturamento destinado a remunerar o trabalho.
Para ele, o encarecimento da mão de obra, que não poderia ser repassado aos preços devido ao desaquecimento econômico, explicaria, ao menos em parte, a redução da lucratividade. “Entende-se, no contexto, que a perspectiva neoliberal de diminuir salários e direitos tenha se tornado atraente.”
Essa queixa por parte dos empresários pode ser observada nos últimos dias na fala dos deputados. Não por acaso, segundo a Agência Pública, a chamada bancada empresarial é formada por 208 deputados e está entre as mais atuais da Câmara, juntamente com a das empreiteiras e construtoras (226), a evangélica (197) e a dos “parentes” (238).
É dessa base aliada de um governo sem voto, impactado pela Lava Jato e aprovado por menos de 5% da população, que parte a iniciativa de “modernizar” as relações de trabalho em uma sociedade cada vez mais complexa, conectada, informada e impactada com o surgimento de novas tecnologias.
Os protestos do dia 28 podem servir de termômetro para consolidar o fosso entre as ruas e quem de fato representa seus representantes. Como diz Trebor Scholz no livro “Cooperativismo de Plataforma” (outra leitura recomendada para orientar as discussões atuais), “daqui a 20 ou 30 anos, quando provavelmente enfrentaremos o fim das profissões e mais empregos serão ‘uberizados’, podemos muito bem acordar e imaginar por que não protestamos contra essas mudanças com mais força”.