Blog Ser Mãe. Estudante de medicina desabafa depois de ver parto violento
Estudante de medicina escreve desabafo depois de assistir a parto violento feito por professora: “Chorei de raiva e frustração no quarto dos internos”
Rita Lisauskas
26 fevereiro 2016 | 17:19
“Cala a boca!”, gritou a obstetra. E subiu na paciente também
“Menina de 16 anos, grávida pela primeira vez, chega à maternidade, com contrações ritmadas e sete centímetros de dilatação. Não se queixava de dores fortes, apenas desconforto e certo cansaço. Andamos pelos corredores, do lado de fora da sala do pré-parto, das 23h até meia-noite.
Tudo corria bem, eu fazia massagens na sua região lombar quando, de repente, a médica plantonista apareceu no local para atender outra paciente que estava na mesma sala, já que não há pré-parto individual. Ignorando o meu relato de que a paciente estava evoluindo super bem prescreveu ocitocina* (hormônio usado para estimular as contrações) diretamente no soro, sem uso de bomba de infusão, a correr, sem um controle preciso do número de gotas, apesar de a paciente e a mãe dela terem dito que não queriam.
“A obstetra aqui sou eu!”, disse.
A paciente começou a sentir contrações dolorosas, ficando impossibilitada de caminhar.
A obstetra mandou ela se deitar na cama, para novo exame de toque, dizendo “Ah, você está fazendo é fiasco!” e rompeu a bolsa da parturiente. Líquido claro. Os batimentos cardíacos do bebê estavam ótimos, eu captava com o sonar a cada dez minutos, preocupada com tanta ocitocina. Eu tentava argumentar com a obstetra: “Dra, ela estava com contrações efetivas, ritmadas.” Mas ouvi: “Agora são meia-noite e meia. Vamos acabar com isso já!” E repetiu a pérola: “Quem é a obstetra aqui? É tu?”
Bom, lá pelas duas da manhã, a paciente já estava com dilatação total, mas o bebê ainda estava alto. E a “Dra” tascou outro soro com ocitocina na moça, sob protestos da paciente, da mãe, que era sua acompanhante, e meus.
Na sequência levei uma super bronca porque deixei a paciente beber água.
Bom, quando o bebê desceu e estava quase nascendo, a doutora, com gestos rudes, fez a paciente levantar-se do leito e me pediu para levá-la para a sala de parto, a cerca de dez metros dali. Disse para eu me paramentar, porque seria eu que daria assistência àquele parto. Minha colega estagiária, também interna, fazia o acompanhamento dos batimentos cardíacos do bebê que estavam ótimos, em 140 por minuto, e posicionamos a paciente deitada, em litotomia. A cabeça do bebê vinha descendo lentamente, mas descia. Os batimentos do bebê continuavam excelentes. Mas a obstetra, impaciente, gritou para minha colega realizar manobra de Kristeller* (manobra proibida, por ser perigosa para mãe e bebê, que consiste na aplicação de pressão na parte superior do útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê). Ela se negou e eu disse para ela que nós não realizávamos aquilo. A médica brigou conosco, xingou todo mundo e mandou a enfermeira subir na escadinha e fazer. A enfermeira quase montou na paciente, que berrava para que parassem. A menina dizia que doía muito e que não conseguia respirar.
“Cala a boca!”, gritou a obstetra. E subiu na paciente também.
Eu dizia que não tinha necessidade daquilo, que o bebê estava descendo. Foi um pandemônio. A obstetra se enfureceu, tirou-me de campo e fez episiotomia* (corte entre a vagina e o períneo da mulher, também abolido por muitos médicos humanizados, para “facilitar” a saída do bebê).
Minha colega auscultou novamente o bebê: os batimentos cardíacos estavam ótimos, 136 por minuto.
Não contente, a médica pediu para a enfermeira trazer o fórceps. Quando ela colocou, a paciente berrou de dor. E o corte, já enorme e feito contra a vontade de paciente, aumentou ainda mais, como um rasgo.
A médica puxou o bebê com o fórceps, desnecessariamente ao meu ver, porque o bebê descia, ainda que lentamente, era só ter paciência já que os batimentos cardíacos mostravam que tudo evoluía bem, não havia sofrimento fetal. Até o dorso do bebê estava à esquerda, como manda o figurino.
A médica olhou para mim, ao final e disse: “Você que ficou aí parada, sutura aqui a episiotomia!”. Levei mais de uma hora para suturar aquele corte.
Eu e minha colega anotamos tudo no prontuário. A “doutora” não gostou do nosso registro e “passou a limpo o prontuário”, fazendo nova folha de registro! E foi dormir.
Para completar ainda recebi bronca por “ter deixado a familiar entrar”. Quando retruquei dizendo que é lei federal, ouvi: “Mas eles não sabem!”
A minha paciente chorou e a mãe dela disse: “É assim mesmo, filha”. Eu disse que não, não era, que não precisava ser assim, horrível, enquanto suturava aquele corte profundo, enorme, que ia até quase a nádega da moça.
Quando solicitei à enfermagem gelo perineal, para reduzir o edema, elas disseram: “Só se a Dra. prescrever!” Daí me humilhei na frente da obstetra para conseguir que fosse colocada a compressa de gelo. Consegui, mas ouvi que tinha sido bom “para ela ver que pôr filho no mundo não é brincadeira!”
Daí eu entendi que ela fez tudo isso porque a moça tinha apenas 16 anos.
Também doeu ver que as pessoas não têm consciência de que isso é violência, mesmo depois de alertamos, eu e minha colega.
A mãe dela disse, no fim: “Olha, doutoras, eu não vou denunciar a médica porque a gente precisa dos médicos! A gente nunca deve fazer uma coisa dessas com quem cuida da gente!”
Foi de partir coração ouvir isso. A minha colega e eu choramos de raiva, de frustração, de tudo, no quarto dos internos. Esse foi o caso mais criminoso e horrível que eu assisti, o parto mais violento.”
*Explicações sobre os termos foram feitas pelo blog, sob supervisão da médica.
Raquel*(nome trocado), 30 anos, é estudante de medicina e só permitiu que esse relato fosse publicado no blog se a identidade dela, do hospital e da obstetra fossem mantidas em sigilo. A profissional em questão é professora no curso de medicina e ela, claro, teme represálias.
Outras dores do parto: mães relatam ‘novo tipo’ de violência obstétrica em hospitais
Centenas de mulheres são
vítimas, diariamente, da violência obstétrica dentro de unidades de
saúde, que vai desde o tratamento dado pela recepcionista das
maternidades às imposições médicas na hora do parto
A
alegria em relembrar o nascimento do primeiro filho é ofuscada pela
angústia que sente ao relatar a violência que sofreu durante o parto.
Este é o caso da vendedora Tayana Guimarães, 23, que derramou lágrimas
enquanto contava a história. Assim como ela, centenas de mulheres são
vítimas, diariamente, da violência obstétrica - que vai desde o
tratamento dado pela recepcionista das maternidades às imposições
médicas.
Nos
últimos dois anos, o Ministério Público Federal registrou 53 denúncias
de violência obstétrica no Brasil, sendo três no Amazonas. Mesmo
sendo um tipo de violência ainda pouco denunciada - muitas vezes por
falta de informação - há casos que chocam e traumatizam mulheres pelo
resto da vida.
A
vendedora Tayana se programou para ter o pequeno Luiz Antônio, hoje com
oito meses, em casa. Porém, quando começou a sentir as dores, a
família bastante preocupada resolveu levá-la a uma maternidade pública.
Ela optou pelo parto ‘normal’ acreditando que tudo aconteceria
naturalmente.
“A
doula (acompanhantes de parto profissional) que estava comigo não pôde
entrar na maternidade. Tive que ficar deitada na maca do hospital com
outras gestantes ao meu lado. Duas médicas passaram por mim para fazer o
‘toque’ enquanto meu marido massageava minhas costas”.
A
bolsa foi estourada pela cirurgiã obstetra com um palito. Para piorar a
situação, Tayana passou pelo que mais temia: a episiotomia, um corte
cirúrgico feito na região períneo. “Deitei, coloquei os pés no apoio e
quando vi que a médica ia me cortar, questionei. Mas ela afirmou que
como era meu primeiro filho o procedimento era necessário. Mesmo
anestesiada, notei a força que ela fazia para fazer o corte. Foram 20
pontos, tive uma hemorragia e ainda estou me recuperando”, relatou.
O
bebê de Tayana também não escapou da violência. “Ele chorava muito e no
terceiro dia uma pediatra constatou que ele estava com a clavícula
fraturada porque ele foi ‘puxado’ com muita força. Ela ainda disse que
isso normalmente acontece quando eles fazem a manobra para tirar o
bebê”, contou.
Momentos de terror
O
que era para ser um momento perfeito tornou-se uma lembrança ruim na
vida da artista plástica Marcela Aureliano. Com 32 anos, ela foi
impedida de ter um parto natural “por conta da idade”, entre outros
tipos de violência obstétrica que sofreu.
“Eu
e meu bebê estávamos bem de saúde. Eu havia me preparado para ter meu
filho em casa, mas aconteceram alguns imprevistos e meu ‘plano B’ era ir
para uma maternidade pública. Já na triagem fui super mal tratada pelas
enfermeiras que não sabem lidar com mulheres em trabalho de parto”.
Os
maus tratos foram além da enfermagem. “A primeira coisa que o médico
fez foi perguntar ‘o que eu estava fazendo alí’, argumentando que
‘mulher que tem mais de 30 anos não pode ter parto normal’. Me deixaram
em uma maca desconfortável, sem comida e sem água. A dor era muita e
lembro que eu chorava bastante”, desabafou.
O
ápice da violência foi quando Marcela recusou a ocitocina artificial
(hormônio que acelera as contrações na hora do parto) e o médico a
abandonou, dizendo que ela “estava fazendo tudo errado”. “Ninguém
respeitava o que eu queria e eu comecei a passar mal. Me deram soro com
remédio para dor. As enfermeiras falavam que eu tinha que fazer a
cesárea. Na sala de cirurgia não permitiram que meu marido entrasse e
ainda me mandaram calar a boca várias vezes”.
‘Apavorante’
A
professora Gabriela Repolho de Andrade, 23, não sabia o que era
violência obstétrica até o nascimento da primeira filha. Diferente de
Tayana e Marcela, a professora sofreu violência obstétrica em um
hospital particular, onde foi internada com forte dor de cabeça e visão
embaçada.
O
plano de saúde não cobria o parto, apenas consultas e exames do
pré-natal. “Cheguei ao atendimento de urgência e desconfiaram de
pré-eclâmpsia ( quando a grávida tem pressão arterial elevada). Por
causa da carência do plano fui humilhada e constrangida pela médica, que
dizia que eu tinha ido ao hospital para ter o parto de graça”.
A
parturiente foi proibida de ter um acompanhante durante o parto,
direito dado às gestantes e preconizado pelo Ministério da Saúde. “Eles
me levaram para a sala de cirurgia e pediram um cheque caução para
autorizar o procedimento. Mas meu marido não tinha o dinheiro na hora.
Minha pressão subiu ainda mais e eu perdi a visão do lado esquerdo
durante o procedimento”, contou.
Inquérito civil
Gabriela
denunciou o caso ao Ministério Público do Estado (MPE-AM) e Federal
(MPF-AM) em 2013, mas a denúncia foi arquivada por se tratar de “um caso
isolado, de direito individual”. Orientada por um procurador, ela
entrou com um processo cível na Justiça. “Ele também sugeriu formar um
grupo para solicitar uma audiência pública e fazer denúncia coletiva.
Desde então estamos tentando reunir as mães que passaram por violência
obstétrica”.
Para
a surpresa dela, o MPF-AM instaurou um inquérito civil em novembro do
ano passado para avaliar possível prática de violência obstétrica nos
hospitais e maternidades do Amazonas.
Posicionamento
A
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(Febrasgo) informou que está imbuída na defesa dos direitos da mulher,
elaborando condutas e normas de aplicação pelos médicos com o objetivo
de universalizar as boas práticas na condução do parto e na busca de
caminhos e soluções mais adequadas para ampliar os direitos femininos,
assim como na minimização das vulnerabilidades.
Números
Em
números, 26.657 partos foram realizados em maternidades estaduais do
Amazonas em 2014. Deste total, 40,6% foram cesáreas, enquanto o índice
recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 15%. Em uma das
principais maternidades da prefeitura de Manaus, Moura Tapajóz, 1.072
cesáreas foram feitas de um total de 2.634.
Grupo reúne vítimas de violência
As
redes sociais foram as ferramentas ideais encontradas pelo grupo
‘Sagrado Feminino’ para reunir mulheres com o objetivo de compartilhar
informações entre gestantes sobre hospitais, médicos e procedimentos. A
mais recente luta das ‘mamães’ é para fazer uma denúncia coletiva de
violência obstétrica, a fim de conseguirem uma audiência pública no
Ministério Público Federal, conforme explicou uma das organizadoras,
Gabriela Repolho, que também sofreu violência.
“Fiz
uma denúncia, mas foi arquivada. Então um procurador orientou que
algumas mulheres se reunissem para apresentar documentos e relatos dos
tipos de violência obstétrica que sofremos. Desde então estamos
mobilizando as mães que foram vítimas, mas por algum motivo tem medo de
denunciar”, ressaltou.
Além da página oficial do grupo, elas criaram uma página só para denúncias: www.facebook.com/ViolenciaObstetricaManausAM.
Atualmente o grupo do Whatsapp conta com 60 integrantes e a página no
Facebook tem cerca de mil ‘curtidas’. Informações em (92) 982598643.
"Médicos são vítimas também"
“Nós
também somos violentados, gritam em nossos ouvidos, recebemos
xingamentos das mães e dos acompanhantes enquanto estamos tentando fazer
o atendimento da melhor maneira que nos é permitido”, declarou a
presidente da Associação Amazonense de Ginecologia e Obstetrícia
(Assago-AM), Hilca Espírito Santo.
De
acordo com a médica, a episiotomia e ocitocina artifical são
procedimentos usados “para facilitar a condução do trabalho de parto”.
“A ocitocina apressa a expulsão do bebê, são drogas que precisam ser
utilizadas quase sempre. É um risco de vida não usar, pois muitas vezes
as pacientes não têm produção suficiente do hormônio. Se tenho uma droga
que vai facilitar dar um ritmo às contrações, não posso lançar mão da
tecnologia que me é oferecida? É para o bem da paciente”, esclareceu.
Sobre
a episiotomia (corte na região do períneo), a médica explicou que é uma
indicação obstétrica feita há mais de um século. “Caso não tenha esse
corte, a mulher corre o risco de ter várias lacerações e teremos que
fazer a sutura depois. Não concordo em rotular esses procedimentos como
violência. Não somos violentos”.
Ministério prega parto humanizado
O
Ministério da Saúde informou que “estimula a adoção de práticas de
humanização do atendimento, como o respeito à privacidade da mulher, a
abolição da violência obstétrica (episiotomia de rotina, ocitocina
artificial, jejum), um ambiente ajustado que possibilite que a gestante
escolha melhores posições para o parto, entre outros”. Essas ações são
realizadas por meio da estratégia Rede Cegonha, que beneficia com
incentivos financeiros as maternidades que aderem ao programa.
O
secretário adjunto de atenção especializada da capital, Wagner William
de Souza, garantiu que o conceito de parto humanizado está sendo
implantado em toda a rede estadual de saúde. “Iniciamos o processo da
implantação da Rede Cegonha.O principal a ser trabalhado é a mudança de
processos de trabalhos. Algumas adaptações estruturais também estão
sendo feitas na rede para facilitar essa humanização. Sabemos que
infelizmente os direitos das mulheres são negados, mas o importante é
esclarecer para as gestantes o que consiste um parto humanizado para que
ela seja a protagonista do parto”.
copiado http://acritica.uol.com.br
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