Especial aborda a luta das mulheres contra o preconceito e crimes de gênero

Especial aborda a luta das mulheres contra o preconceito e crimes de gênero

Renata teve o corpo queimado com pontas de cigarro. Tapa na cara. Chute. Precisou fugir de casa com os filhos. Mas achava que a culpa era dela pelo casamento ter fracassado.
Paula foi estuprada pelo marido. Camisola rasgada, choro sufocado, marcas no corpo. Até hoje os pais não sabem da violência sexual que sofreu. Guardou segredo por vergonha do julgamento alheio.
Quando se separou, Márcia ouviu de outras mulheres: “Você foi fraca. Devia ter aguentado. Não se desfaz uma família.”
Não importa de onde vem o dedo. Ele sempre aponta para a mulher.
Ela, que, de vestido curto, andava sozinha, no meio da noite. Ela, que, assanhada, flertou com o cara no bar e o levou para dentro de casa. Ela, que não teve paciência de entender e perdoar: homem é assim mesmo. Ela, que só pensa em trabalho e não cuida dos filhos. Ela, que gosta de apanhar.
A culpa, no cotidiano feminino dos abusos físicos e psicológicos, ocupa um lugar subjetivo que oprime de forma objetiva, material. Paralisa e silencia. Onipresente, finca a mulher em um ciclo de violência do qual escapar exige, muitas vezes, reinventar-se. Enxergar-se até. Mas como arrancar uma pele que se forma – fruto amargo do machismo – pela simples condição de ser mulher? Desnaturalizar a culpa é caminho tão espinhoso quanto necessário. Não importa se a acusação parte de si ou dos outros. Precisamos falar sobre culpa e a imobilidade que ela gera. Não há liberdade possível para as mulheres fora desse enfrentamento.
Apesar do ranço cultural, o incômodo tem crescido. Neste especial, a necessidade de afirmar/cravar/gritar que “a culpa não é delas” surgiu quase como um imperativo. Primeiro, pelas permanências. Absolutamente todas as vítimas de violência ouvidas na reportagem confessaram carregar algum tipo de culpa. Depois, pelo ponto de chegada. Em todos os relatos, livrar-se desse sentimento, ou aprender a lidar com ele, ajudou a arrebentar a porta de saída.
As meninas do aplicativo Mete a Colher, que ajuda as mulheres a identificar relacionamentos abusivos, abrigam na internet os mais diversos relatos de culpa. A responsabilização, mesmo que involuntária, parte sempre do mesmo lugar: ela.
“Como a culpa se materializa? É subliminar. O jantar que eu não fiz, a roupa que eu vesti, a hora que eu cheguei. É sempre ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’… A mulher está o tempo todo trazendo para si uma responsabilidade que está no outro. Ela própria se vê nesse papel”, afirma Aline Silveira, uma das idealizadoras do aplicativo. “Ninguém nunca pergunta sobre a atitude do homem, mas o que a mulher fez para merecer. Isso já é uma forma de responsabilizá-la pela violência sofrida”, reforça Renata Albertim, do coletivo Mete a Colher.
Quem estende a mão ou é por ela acolhida sabe bem a dificuldade que é para a mulher carregar esse peso. “Eu me sentia aprisionada pela culpa. A culpa da má escolha. As pessoas diziam: você que quis casar com ele. Agora aguente.” Ela aguentou. Por dez anos, Márcia Alves Lins, 40 anos, viveu um relacionamento abusivo. Achava que o erro estava nela. Sofreu violência física e psicológica. Sempre perdoava, sob a desculpa do alcoolismo do marido. Demorou para vê-lo no retrato que hoje ela o desenha: um homem violento e cruel. Quando finalmente procurou ajuda e decidiu encerrar o sofrimento, enfrentou a reprovação de outras mulheres. Era culpada por ficar e também por ir embora.
Com Renata Matias de Campos, 39, foi pior. Mãe de quatro filhos, precisou fugir com as crias para escapar da morte. Não sem antes ser humilhada por quem é pago para protegê-la. Depois de duas denúncias de agressão física contra o marido, ouviu na delegacia que de pouco adiantava prestar queixa, porque ela ia terminar voltando para o agressor. “Senti vergonha. Era como se eles dissessem: ‘Tá fazendo o que aqui? Você gosta de apanhar’. Eu insistia na relação porque gostava dele e porque não queria criar meus filhos longe do pai. Mas sentia culpa pelas crianças me verem apanhando.” O ex-marido não sabe, nem pode saber, o endereço onde hoje ela tenta refazer a vida. E se livrar da culpa.
AMARRA PODEROSA
Suely Araújo conhece bem essas e outras tantas histórias por um outro viés. O de quem acolhe. Coordenadora do Centro de Referência da Mulher Márcia Dangremon, em Olinda, no Grande Recife, diz que a culpabilização da vítima é um padrão imposto pela sociedade patriarcal e machista. Uma amarra invisível e poderosa. “Elas chegam se desculpando, tentando se explicar. Se sentem cobradas por não ter força suficiente para lidar com a violência que sofrem.” A secretária estadual da Mulher, Silvia Cordeiro, reforça o quanto a culpa mina a autoestima. “As mulheres olham para si e não se vêem como uma pessoa que tem direitos, tem emoção. Elas se sentem sem um lugar no mundo.”
Uma prisão que não machuca apenas o corpo ou a alma. Pode matar.
Em agosto deste ano, a delegada Gleide Ângelo, gestora do Departamento de Polícia da Mulher de Pernambuco, escreveu artigo onde cravava: “mulher protegida não morre”. Defendia isso baseada em um levantamento de dados que mostrava que, de janeiro a junho deste ano, 16.057 mulheres registraram boletins de ocorrências por violência doméstica no Estado. Ao cruzar os números de mortes cuja motivação preliminar era o feminicídio, ocorridas no mesmo período, a delegada constatou que apenas uma mulher, entre as que foram assassinadas, havia prestado queixa de violência na delegacia.
Enfrentar a culpa ajuda a enxergar com mais clareza as violências sofridas. E denunciá-las significa salvar vidas. Não é uma conta pequena.
228 mulheres foram mortas em Pernambuco, nos nove primeiros meses de 2017.
Há muitas maneiras de matar uma mulher. Mata-se de bala, de navalha, de silêncio, de omissão. Mata-se muito no Estado. Basta contar. 221 assassinatos, em 2012. 253, em 2013. 249, em 2014. 245, em 2015. 280, em 2016.
Uma das faces ainda mais cruéis da culpa é a violência sexual. Porque não basta ser violada, invadida, humilhada, a mulher ainda é responsabilizada pelo estupro que sofre.
A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil.
Há muitas maneiras de estuprar uma mulher. Obrigá-la ao sexo forçado é apenas uma delas. Está lá, na lei. Não precisa de penetração para que o agressor seja enquadrado nesse hediondo e perverso crime. O que não está na lei, mas resiste e insiste nas cabeças machistas (de homens e mulheres) é que a mulher, a depender do comportamento, sai da condição de vítima e passa a ser culpada. No ano passado, o Datafolha e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública dimensionaram o tamanho desse absurdo: um terço dos brasileiros culpam a mulher pelo estupro. Percentual semelhante concorda com a frase de que “mulher que usa roupa provocativa não pode reclamar se for estuprada”.
Na noite do dia 5 de janeiro deste ano, o desespero jogou uma adolescente alegre e corajosa em um mundo escuro e solitário.
– Mãe, mãe, eu fui estuprada.
Dá para ouvir até hoje a voz desesperada da filha, chegando em casa. Ela gritou pela mãe e desmaiou.
“Eu posso dizer que foi o pior dia da minha vida. Ele não machucou só o corpo dela. Maltratou a alma. Roubou a alegria e o sorriso da minha menina”, recorda a mãe, advogada. Num intervalo de apenas quatro meses, ela viu sua filha, de 16 anos, por duas vezes tentar suicídio. A primeira, tomando remédios. A segunda, cortando os pulsos. As cicatrizes, deixadas pela tentativa de mutilação, se estendem muito além da pele.
Nove meses após o estupro, a adolescente estudiosa, comunicativa e brincalhona não existe mais. Por ora, os dias são trancados no quarto, como se o mundo lhe fizesse mal. Na maior parte do tempo, quase não fala. Na escola, as notas despencaram. Conversar com os amigos, só quando eles vão em casa visitá-la.
Na noite em que teve a alegria roubada, a garota voltava para casa, quando, passando na Praça do Derby, na região central do Recife, foi perseguida por Alex Rosendo dos Santos, um jovem de 18 anos, que, mais tarde, confessaria outros três estupros. Ele foi preso 15 dias após arrastar a adolescente e estuprá-la embaixo da ponte, bem ali no quintal do Quartel da Polícia Militar de Pernambuco. Confessou à polícia que, no momento da prisão, estava à espera de uma nova vítima.
“Se eu lhe disser que sei o caminho, eu não sei. Não sei o que fazer nem como recolocar as nossas vidas no eixo”, desabafa a mãe da adolescente, detalhando o quanto a família, e não só a jovem, foi violentamente afetada pelo estupro. De uma coisa, no entanto, ela está convicta. Só descansará quando conseguir a condenação do estuprador. Não só por uma questão de justiça. Mas de receio de que outras famílias venham a sofrer dor igual, caso o acusado volte às ruas.

Mãe de adolescente estuprada viu a filha tentar suicídio duas vezes. A violência marcou não só a vítima de 16 anos. Toda a família foi duramente afetada
O medo da impunidade ronda a vida de mulheres vítimas de violência sexual. Muitas preferem nem denunciar. Uma atitude que a delegada Gleide Ângelo, gestora do Departamento de Polícia da Mulher de Pernambuco, diz que é preciso mudar. “Se a mulher não denuncia, o estuprador vai continuar cometendo novos crimes. A impunidade é o que gera a reincidência”, reforça.
O apelo da delegada faz ainda mais sentido nos casos de assédio sexual, quando o crime de estupro é mais difícil de ser caracterizado. É o que tem acontecido nos reincidentes flagrantes de assédio no transporte público. Só este ano, pelo menos cinco episódios em Pernambuco foram parar nas manchetes dos jornais. Em todos eles, o assediador terminou sendo solto.
Em março passado, um sargento reformado da Polícia Militar ejaculou no pé de uma jovem de 24 anos que estava num ônibus que circulava no Centro do Recife. “Eu comecei a sentir uma coisa roçar em mim. E fiquei logo desconfiada. Quando vi, senti uma coisa no meu pé. Não acreditei que aquilo estivesse acontecendo comigo”, contou a jovem, que fez questão de ir à delegacia denunciar o agressor. “É uma sensação horrível. Eu não fiz nada para merecer isso.” Apesar do relato de testemunhas confirmando a agressão, o suspeito assinou apenas um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) por importunação ofensiva ao pudor e foi liberado.
A maior dificuldade de punir está na própria lei. O estupro, em sua tipificação penal, diz que o ato precisa ser praticado “mediante violência ou grave ameaça”. Para Gleide Ângelo, o que está faltando é uma lei intermediária. “Ou se enquadra em um crime muito menor a importunação ofensiva ao pudor, que é apenas uma contravenção, ou no estupro, que é muito pesado. A sociedade evoluiu e a lei, nesse caso, ficou para trás.”
Na prática, o que tem acontecido é que muitos delegados e juízes entendem que o fato de o homem ejacular em cima da vítima ou constrangê-la colocando seu pênis para fora, seja no ônibus ou metrô, sem uso de violência física, descaracteriza o estupro. Difícil é explicar isso para quem foi humilhada, desrespeitada e agredida pela simples condição de ser mulher. Quase 50 anos separam a publicação desta notícia no extinto Diário da Noite, jornal sensacionalista que circulou em São Paulo, até o início da década de 80.
Publicada no dia 2 de janeiro de 1968, fazia chacota de uma jovem que levava “uma surra a cada dois dias” do marido.
Tirando a forma humilhante que escancara o extremo machismo e desrespeito de uma época, a reportagem permanece, desconcertantemente, atual.
O que, de fato, mudou em cinco décadas de violência contra a mulher?
Continuamos a falar em dominação, relação de poder, sentimento de posse, culpa, julgamentos, intolerância e naturalização.
O que mais revolta?
A forma da notícia ou o conteúdo que ela denuncia?
As narrativas de hoje, em geral, até diferem na escrita, na forma em que são embaladas. Mas a rotina de violência, abuso, silêncio e morte de mulheres sobrevive nas casas, nas ruas e nas manchetes de jornais.

veja o conteúdo editado aqui  http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/aculpanaoedelas/


Texto: Ciara Carvalho / Imagem: Alexandre Gondim


A cultura do Estupro

 A esposa assassinada a tiros por ciúmes. A ex-namorada executada a facadas após o fim do relacionamento. A estudante estuprada e morta no canavial. Isso tem nome. E chama-se feminicídio. Não um crime de excesso de amor. De paixão. Mas de dominação. De posse. Um crime de ódio. Importantes passos foram dados desde que a Lei do Feminicídio entrou em vigor em março de 2015. Mas o caminho de desconstrução é longo. Chamar pelo nome o que sempre foi um crime de gênero. É o que a sociedade está aprendendo a fazer.

Desde o último dia 4 de setembro, Pernambuco passou a incluir nos boletins de ocorrência o subtítulo feminicídio. A inclusão foi resultado de uma campanha iniciada, em junho deste ano, pela Rede Meu Recife, que recolheu quase cinco mil assinaturas virtuais exigindo a mudança no procedimento policial. A subscrição do termo feminicídio é mais do que uma questão burocrática. Muda a forma como a história daquele assassinato vai ser contada desde ali, a partir da cena do crime.
O registro ajudará também a jogar luz sobre uma área ainda hoje nebulosa: a produção de dados sobre a motivação das mortes violentas de mulheres. A cientista social Camila Fernandes, uma das coordenadoras da Rede Meu Recife, diz que as estatísticas disponíveis são pouco confiáveis e difíceis de serem obtidas. “Não basta apenas falar de feminicídio. Precisamos ter disponível um conjunto de informações que permita uma busca transparente dos dados. É com eles que vamos produzir política pública de enfrentamento do problema.”
Melhorar as informações requer, antes de tudo, aperfeiçoar a forma como esses dados são colhidos. É o que propõe o documento elaborado pela ONU Mulheres para implantação de um protocolo para investigar, processar e julgar os homicídios de mulheres.
“Precisamos criar diretrizes para nortear o trabalho da polícia, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Judiciário, tendo como foco a perspectiva de gênero. Ou seja, considerando em primeiro lugar o fato da vítima ser mulher. E que essa condição foi determinante para o crime cometido”, afirma Vânia Pazzinato, assessora da ONU Mulheres no Brasil.
Pernambuco aderiu ao protocolo e está formatando o modelo que será adotado no Estado. O documento tem feito falta. Levantamento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Pernambuco, mostra que a punição dos acusados ainda passa ao largo da Lei do Feminicídio. Desde a sua implantação, 164 denúncias foram apresentadas pelo Ministério Público de Pernambuco usando essa qualificadora. Apenas seis processos foram adiante. E só quatro viraram condenações na Justiça.
Assédio, abuso, estupro, assassinato. O cotidiano violento das mulheres contado a partir de histórias reais. Machuca, espetáculo encenado pela Trupe Ensaia Aqui e Acolá, é um soco no estômago. Um grito para não deixar calar as vozes das mulheres. Em cena, as atrizes Andrea Rosa, Iara Campos e Juliana Montenegro revezam-se para exorcizar as dores nossas de cada dia. As que tiveram grande repercussão midiática e também aquelas, anônimas, aceitas, toleradas. Todas, fruto amargo de uma sociedade machista e patriarcal.
copiado http://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/aculpanaoedelas/interna1/


Taxa de feminicídio no mundo



Um grito para fazer ver





Esta morte tem nome. Chama-se feminicídio


Não é verdade. A culpa não é minha. Não é sua. Não é delas. A culpa nunca é da vítima.

A dor que sai no jornal



Quase 50 anos separam a publicação desta notícia no extinto Diário da Noite, jornal sensacionalista que circulou em São Paulo, até o início da década de 80.
Publicada no dia 2 de janeiro de 1968, fazia chacota de uma jovem que levava “uma surra a cada dois dias” do marido.
Tirando a forma humilhante que escancara o extremo machismo e desrespeito de uma época, a reportagem permanece, desconcertantemente, atual.
O que, de fato, mudou em cinco décadas de violência contra a mulher?
Continuamos a falar em dominação, relação de poder, sentimento de posse, culpa, julgamentos, intolerância e naturalização.
O que mais revolta?
A forma da notícia ou o conteúdo que ela denuncia?
As narrativas de hoje, em geral, até diferem na escrita, na forma em que são embaladas. Mas a rotina de violência, abuso, silêncio e morte de mulheres sobrevive nas casas, nas ruas e nas manchetes de jornais.

A violencia. A proximidade. O silencio

1

em cada 3 mulheres sofreram algum tipo de violência no Brasil em 2016

503

mulheres foram vítimas de agressão física a cada 1 hora em 2016

52 %

das mulheres que sofreram violência em 2016 não denunciaram a agressão

11 %

procuraram uma delegacia da mulher
para prestar queixa

13 %

preferiram o auxílio da família na hora de falar sobre a agressão

61 %

dos casos de violência tem como agressor uma pessoa conhecida

43 %

dos casos de agressão
ocorreram dentro de casa

19 %

dos agressores eram
os companheiros atuais

A dor que sai no jornal





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

Ao Planalto, deputados criticam proposta de Guedes e veem drible no teto com mudança no Fundeb Governo quer que parte do aumento na participação da União no Fundeb seja destinada à transferência direta de renda para famílias pobres

Para ajudar a educação, Políticos e quem recebe salários altos irão doar 30% do soldo que recebem mensalmente, até o Governo Federal ter f...