País - Sociedade Aberta
Lições de pornografia
Em agradável
palestra discorríamos sobre as curiosidades da vida literária
brasileira, pouco antes de iniciarmos a filmagem da segunda parte do
documentário Dom Quixote dos pampas sobre o acadêmico Carlos
Nejar, que nos recebera em sua residência, na Urca. Dizia eu ao poeta
gaúcho que, quiçá, a maior de todas elas seria a morte de Machado de
Assis e o nascimento de Guimarães Rosa, em 1908. Entretanto, adverti que
outra incrível coincidência era o fato de que dois escritores
nordestinos considerados pornográficos, Nelson Rodrigues e Jorge Amado,
brotaram do ventre materno em 1912.
Não obstante o cenário do genial teatrólogo pernambucano tenha sido o Rio de Janeiro da década de 40 e o do romancista das fazendas de cacau o território adubado pelo sangue das emboscadas das Terras do sem fim; além do cenário da cidade de São Salvador imortalizada pelo pitoresco erotismo e miscigenação deTeresa Batista cansada de guerra e Dona Flor e seus dois maridos. É verdade que a data e região de nascituro não lhes possibilitaram a proximidade de âmbito ficcional e ideológico, uma vez que são autores distintos em suas opções políticas e literárias, que, no entanto, se igualam pelo rótulo da pornografia.
Diz que o baiano romântico e sensual se notabilizara por capturar o imaginário pátrio através das figuras sedutoras ao estilo de Tieta e Gabriela, enquanto que o autor de Bonitinha mas ordinária vinculou a alma do subúrbio carioca às obsessões sexuais extraídas de sua fértil imaginação pautada pelo patético da condição humana. Foi então que observei ao cinegrafista e editor Curt Ponce que, mesmo não se celebrizando como ficcionista, não só por se utilizar da paisagem urbana, Nelson Rodrigues encarnaria o espírito machadiano em seu clássico Vestido de noiva.
Foi então que afirmei ao Nejar que a história de um natimorto, Alaíde, até certo ponto poderia ser considerada uma espécie de versão teatral de Memórias póstumas de Brás Cubas, com elementos narrativos que, em pleno ápice realista em se tratando de Machado de Assis, antecedem o surrealismo de Buñuel e Breton. Isto sem dizer que, para além do cientificismo naturalista, a ideia fixa do memorialista Cubas pode-se fazer demonstrar pelas obsessões patológicas das figuras dramáticas inventadas por Rodrigues.
É fato que o dublê de teatrólogo ainda tentara se aventurar no ofício dramatúrgico com a investida sobre Castro Alves; contudo, Amado se equilibra na cobiçada corda da posteridade ao se utilizar de uma popularesca brasilidade calcada no retrato de malandros, pescadores e prostitutas, a causar desprezo (ou inveja?) aos desdenhosos e satíricos modernistas de São Paulo. Sobre este ponto inclusive, em seu Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira, o gramático e filólogo Claudio Cezar Henriques aponta que o criador de Jubiabá fora alcunhado, por Oswald, de “Rasputin de Linha Reta”; e de “Pai João das Letras”, por Mário de Andrade.
Apesar de não dialogar com a concepção de um sincretismo religioso e étnico, o dramaturgo Nelson Rodrigues se aproveita da popularidade obtida pela reação ao exame do grotesco que aguça a sua ira e criatividade, a ponto de escrever peças como Álbum de família, Bonitinha mas ordinária e Sete gatinhos. Porém, por vezes, nota-se que nestes registros a preocupação estética se posiciona aquém da proposital agressividade contra a hipocrisia de uma sociedade arcaica e decadente.
Ainda que outras abordagens rodrigueanas esbarrem na psicanálise mítica, a erotização do discurso que se arvora em diferentes fórmulas de análise o impele à condição de gênio maldito, a se inventariar ora pelo escândalo da prostituição caseira e familiar; ora pela desestabilização da união matrimonial. Tal constatação se apercebe em Anjo negro, Toda nudez será castigada e Perdoa por me traíres que, em síntese, pode se traduzir pela magistral condição de adultério: “A esposa desiludida é uma grande mulher”.
Por fim, se parte de um país retrógrado e moralista não consente as lições de pornografia ministradas por Nelson Rodrigues e Jorge Amado, pode-se imaginar que, supostamente, a consagração de seus libertinos manuscritos se eternize; seja pelo incondicional aplauso de uma plateia a esbanjar êxtase e indignação; seja pelo silêncio cúmplice e sestroso, propositado pela instigante leitura de uma cena de Gabriela cravo e canela a subir pelos telhados da memória brasileira.
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
Não obstante o cenário do genial teatrólogo pernambucano tenha sido o Rio de Janeiro da década de 40 e o do romancista das fazendas de cacau o território adubado pelo sangue das emboscadas das Terras do sem fim; além do cenário da cidade de São Salvador imortalizada pelo pitoresco erotismo e miscigenação deTeresa Batista cansada de guerra e Dona Flor e seus dois maridos. É verdade que a data e região de nascituro não lhes possibilitaram a proximidade de âmbito ficcional e ideológico, uma vez que são autores distintos em suas opções políticas e literárias, que, no entanto, se igualam pelo rótulo da pornografia.
Diz que o baiano romântico e sensual se notabilizara por capturar o imaginário pátrio através das figuras sedutoras ao estilo de Tieta e Gabriela, enquanto que o autor de Bonitinha mas ordinária vinculou a alma do subúrbio carioca às obsessões sexuais extraídas de sua fértil imaginação pautada pelo patético da condição humana. Foi então que observei ao cinegrafista e editor Curt Ponce que, mesmo não se celebrizando como ficcionista, não só por se utilizar da paisagem urbana, Nelson Rodrigues encarnaria o espírito machadiano em seu clássico Vestido de noiva.
Foi então que afirmei ao Nejar que a história de um natimorto, Alaíde, até certo ponto poderia ser considerada uma espécie de versão teatral de Memórias póstumas de Brás Cubas, com elementos narrativos que, em pleno ápice realista em se tratando de Machado de Assis, antecedem o surrealismo de Buñuel e Breton. Isto sem dizer que, para além do cientificismo naturalista, a ideia fixa do memorialista Cubas pode-se fazer demonstrar pelas obsessões patológicas das figuras dramáticas inventadas por Rodrigues.
É fato que o dublê de teatrólogo ainda tentara se aventurar no ofício dramatúrgico com a investida sobre Castro Alves; contudo, Amado se equilibra na cobiçada corda da posteridade ao se utilizar de uma popularesca brasilidade calcada no retrato de malandros, pescadores e prostitutas, a causar desprezo (ou inveja?) aos desdenhosos e satíricos modernistas de São Paulo. Sobre este ponto inclusive, em seu Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira, o gramático e filólogo Claudio Cezar Henriques aponta que o criador de Jubiabá fora alcunhado, por Oswald, de “Rasputin de Linha Reta”; e de “Pai João das Letras”, por Mário de Andrade.
Apesar de não dialogar com a concepção de um sincretismo religioso e étnico, o dramaturgo Nelson Rodrigues se aproveita da popularidade obtida pela reação ao exame do grotesco que aguça a sua ira e criatividade, a ponto de escrever peças como Álbum de família, Bonitinha mas ordinária e Sete gatinhos. Porém, por vezes, nota-se que nestes registros a preocupação estética se posiciona aquém da proposital agressividade contra a hipocrisia de uma sociedade arcaica e decadente.
Ainda que outras abordagens rodrigueanas esbarrem na psicanálise mítica, a erotização do discurso que se arvora em diferentes fórmulas de análise o impele à condição de gênio maldito, a se inventariar ora pelo escândalo da prostituição caseira e familiar; ora pela desestabilização da união matrimonial. Tal constatação se apercebe em Anjo negro, Toda nudez será castigada e Perdoa por me traíres que, em síntese, pode se traduzir pela magistral condição de adultério: “A esposa desiludida é uma grande mulher”.
Por fim, se parte de um país retrógrado e moralista não consente as lições de pornografia ministradas por Nelson Rodrigues e Jorge Amado, pode-se imaginar que, supostamente, a consagração de seus libertinos manuscritos se eternize; seja pelo incondicional aplauso de uma plateia a esbanjar êxtase e indignação; seja pelo silêncio cúmplice e sestroso, propositado pela instigante leitura de uma cena de Gabriela cravo e canela a subir pelos telhados da memória brasileira.
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
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