País - Sociedade Aberta
O documentário Uma noite em 67, dirigido
por Renato Terra e Ricardo Calli, reproduz uma antológica imagem do
cantor e compositor Sérgio Ricardo que, por causa das incessantes
contestações do público presente, se recusaria a defender a bela canção
intitulada Beto Bom de Bola, no III Festival de Música Popular
Brasileira, organizado pela TV Record. Atônito com a reação dos
irascíveis espectadores do evento, o intérprete, acuado, ao esbravejar,
quebra o violão, atira-o em direção a uma plateia em êxtase a vaiá-lo,
democraticamente, com a força de uma típica atitude de intolerância
juvenil a dialogar com a censura repressiva da época.
Os proibidos versos de Sérgio Ricardo se referiam ao processo de decadência vivenciado por um jogador de futebol que, ao ganhar as manchetes de jornais e revistas, disse adeus à namorada, aceitou a proteção dos cartolas, até se transformar em produto de exportação: “– É, é, é ou não é / Até parece o Mané”. Pode ser que o introito da crônica sirva de pretexto para justificar o título e ajudar-me a dizer que qualquer semelhança entre a realidade ficcional de um Beto Bom de Bola e o cotidiano de contos de fada de um Adriano Imperador não seja mera coincidência diante de um capítulo de biografia ou estribilho.
Confesso que não me atenho ao lugar-comum de se afirmar que a vida imita a arte, pois que ambos os craques brasileiros, o real e o fictício, se construíram pelo sensacionalismo da mídia a proporcionar vantagens políticas aos dirigentes dos clubes de futebol. Se os leitores me permitem um breve aparte, sobre isto há quem diga que a estreia do centroavante rubro-negro esteja ligada ao pleito da presidenta Patrícia Amorim à Câmara de Vereadores do município do Rio de Janeiro.
Em retorno ao binômio vida/arte, ensinou-nos um já quase centenário artista da palavra, imortalizado pelas canções de amor e a garrafa de uísque, que “a vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Ainda que, quiçá inconscientemente, o camisa 9 da Gávea recorra a outro poeta de existência efêmera e desregrada quando diz “eu não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo, a não ser a mim”, desconfio que o país deveria seguir mais a contento o seu lema de ordem e progresso, quando as recorrentes ausências ou o desmazelo de parlamentares no Congresso Nacional, de médicos nos hospitais públicos, dos policiais federais da fronteira e de professores universitários fossem tão divulgadas quanto as faltas aos treinos do Clube de Regatas Flamengo.
Neste contexto de boemia e irresponsabilidade, peço ao deus Baco que a contagem regressiva (e coletiva) para a terceira negligência profissional se equipare, em exposição jornalística, ao prejuízo social que o descompromisso dos fabricantes de greve do ensino público e dos doutores dorminhocos de plantão proporciona a milhões de cidadãos brasileiros, que não nasceram com o dom e o talento de um Adriano Bom de Bola para chutar uma bola de futebol para os fundos das redes europeias. Mas a vida prossegue e ensina ao craque da favela que deu lição de futebol aos gregos e romanos, para consagrar-se pelos campos de várzea da Vila Cruzeiro, pisados com pés descalços de menino pobre aos gramados de Itália com chuteiras de prata, bola de ouro, terno e gravata, sapato de couro...
Eis que ressurge o imperador Adriano a se equilibrar, triste e solitário, na corda de trapézio de um circo dos arrabaldes de si mesmo, entre o aplauso e o ocaso, entre o apupo e a ovação, entre a louvação e o esquecimento. Por um drible torto no destino ou um passe errado ao companheiro, o jogo prossegue para o implacável árbitro, em disfarces de consciência ou tempo, soar o estridente apito por um golpe de azar ou posição irregular na grande área no crucial momento de gol. E a desolada torcida em pleno Maracanã apta a saudar um ídolo, num átimo de clarividência, se dispõe a recordar que o herói de outrora, obeso e pestilento, se deixa flagrar em incontestável impedimento.
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
COPIADO www.jb.com.br/sociedade-abertaOs proibidos versos de Sérgio Ricardo se referiam ao processo de decadência vivenciado por um jogador de futebol que, ao ganhar as manchetes de jornais e revistas, disse adeus à namorada, aceitou a proteção dos cartolas, até se transformar em produto de exportação: “– É, é, é ou não é / Até parece o Mané”. Pode ser que o introito da crônica sirva de pretexto para justificar o título e ajudar-me a dizer que qualquer semelhança entre a realidade ficcional de um Beto Bom de Bola e o cotidiano de contos de fada de um Adriano Imperador não seja mera coincidência diante de um capítulo de biografia ou estribilho.
Confesso que não me atenho ao lugar-comum de se afirmar que a vida imita a arte, pois que ambos os craques brasileiros, o real e o fictício, se construíram pelo sensacionalismo da mídia a proporcionar vantagens políticas aos dirigentes dos clubes de futebol. Se os leitores me permitem um breve aparte, sobre isto há quem diga que a estreia do centroavante rubro-negro esteja ligada ao pleito da presidenta Patrícia Amorim à Câmara de Vereadores do município do Rio de Janeiro.
Em retorno ao binômio vida/arte, ensinou-nos um já quase centenário artista da palavra, imortalizado pelas canções de amor e a garrafa de uísque, que “a vida é arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Ainda que, quiçá inconscientemente, o camisa 9 da Gávea recorra a outro poeta de existência efêmera e desregrada quando diz “eu não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo, a não ser a mim”, desconfio que o país deveria seguir mais a contento o seu lema de ordem e progresso, quando as recorrentes ausências ou o desmazelo de parlamentares no Congresso Nacional, de médicos nos hospitais públicos, dos policiais federais da fronteira e de professores universitários fossem tão divulgadas quanto as faltas aos treinos do Clube de Regatas Flamengo.
Neste contexto de boemia e irresponsabilidade, peço ao deus Baco que a contagem regressiva (e coletiva) para a terceira negligência profissional se equipare, em exposição jornalística, ao prejuízo social que o descompromisso dos fabricantes de greve do ensino público e dos doutores dorminhocos de plantão proporciona a milhões de cidadãos brasileiros, que não nasceram com o dom e o talento de um Adriano Bom de Bola para chutar uma bola de futebol para os fundos das redes europeias. Mas a vida prossegue e ensina ao craque da favela que deu lição de futebol aos gregos e romanos, para consagrar-se pelos campos de várzea da Vila Cruzeiro, pisados com pés descalços de menino pobre aos gramados de Itália com chuteiras de prata, bola de ouro, terno e gravata, sapato de couro...
Eis que ressurge o imperador Adriano a se equilibrar, triste e solitário, na corda de trapézio de um circo dos arrabaldes de si mesmo, entre o aplauso e o ocaso, entre o apupo e a ovação, entre a louvação e o esquecimento. Por um drible torto no destino ou um passe errado ao companheiro, o jogo prossegue para o implacável árbitro, em disfarces de consciência ou tempo, soar o estridente apito por um golpe de azar ou posição irregular na grande área no crucial momento de gol. E a desolada torcida em pleno Maracanã apta a saudar um ídolo, num átimo de clarividência, se dispõe a recordar que o herói de outrora, obeso e pestilento, se deixa flagrar em incontestável impedimento.
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
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