Che queria 'morrer como um mártir', diz pesquisadora franco-argentina Diante do corpo de Che Guevara

Che queria 'morrer como um mártir', diz pesquisadora franco-argentina

AFP / MIGUEL RIOPAEfígie de Che em Oleiros, Espanha
Além da imagem de guerrilheiro que defende um ideal, Che Guevara era obcecado com a morte e a ideia de martírio, assinala a pesquisadora franco-argentina Marcela Iacub, que traçou o perfil psicológico do célebre revolucionário.
Marcela é diretora de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa Científica) francês e acaba de publicar "Le Che, à mort" (ainda sem tradução em Português).
Seguem abaixo os principais trechos da entrevista concedida à AFP:
PERGUNTA: Por que Che passou a ser uma lenda?
RESPOSTA: Há duas lendas que dizem respeito a Che: a lenda castrista e a lenda "crística", na qual se apoia, sobretudo, o filme hollywoodiano "Che", de Steven Soderbergh.
Para muitos, Che se tornou uma figura "crística" com a foto de seu cadáver. Talvez o mito nunca tivesse existido sem essa foto tirada horas depois de sua execução por parte do Exército boliviano e para a qual seu corpo foi preparado (seu cabelo foi cortado, e se injetou formol no rosto).
Vários fotógrafos chegaram depois ao local onde o corpo estava exposto. Graças à luz dos flashes, os olhos de Che estavam cheios de luz.
O mundo inteiro viu essa foto perfeita, com a qual Che mostrou que era um mártir no sentido cristão do termo, porque parece ter-se entregado a seus carrascos em um estado de satisfação.
Em contrapartida, as fotos tiradas logo depois de sua execução foram escondidas durante 20 anos. São horríveis e nunca teriam dado lugar a um culto como esse.
P: Che Guevara também é o símbolo do revolucionário defendendo um ideal?
R: Em sua adolescência, não era nem comunista, nem estava comprometido politicamente, mas havia decidido morrer muito jovem, como um mártir. É o que se pode ler em alguns de seus poemas.
Naquela época, já se condenava a morrer como um herói. Em seus "Diários de Motocicleta" (sobre seu périplo pela América Latina aos 20 anos), já imaginava seu destino.
Para fazer uma análise psicológica do personagem, eu me baseei em seus escritos. Antes de mais nada, queria lhe dar a palavra, porque também escrevia bem. Acredito que tenha inventado seu personagem desde sua juventude, lendo romances de aventuras.
Tinha um ideal muito elevado para si mesmo, provavelmente, porque sua família era aristocrática, mas havia caído na miséria. Queria salvar a humanidade, tornando-se um grande cientista quando era jovem. Estudou Medicina. Como não teve êxito por esse caminho, tentou liderar uma guerra total e definitiva contra o capitalismo... Queria que a humanidade morresse lutando, mesmo que o combate terminasse em uma derrota.
P: O que resta de Che na atualidade?
R: Somos uma sociedade mais pacifista do que nos anos 1960-1970. Não aceitamos mais a luta armada como meio para impor nossas ideias políticas, diferentemente de décadas anteriores.
O que persiste é o mito do mártir, a ideia de que, se matou, se exterminou seus oponentes, foi para evitar coisas mais graves. Caso contrário, por que tantos comunistas caíram no esquecimento, e ele, não?
Em sua relação com a morte, talvez haja algo em comum com a atitude dos jihadistas: o desejo de glória, a ideia de já se considerar morto...

Diante do corpo de Che Guevara

AFP/Arquivos / JAVIER SORIANO(1967) Fotografia de Marc Hutten mostra o corpo de Che Guevara em exposição na localidade de Vallegrande, Bolívia
Em 10 de outubro de 1967, o corpo do guerrilheiro argentino Ernesto "Che" Guevara foi exposto, um dia depois da sua morte, em um necrotério improvisado em Valle Grande, sul da Bolívia, onde ele tentava lançar uma revolução.
Marc Hutten, fotógrafo da AFP, foi um dos poucos jornalistas estrangeiros a testemunhar a cena. Suas fotografias coloridas do corpo do companheiro de armas de Fidel Castro rodaram o mundo.
O exército boliviano afirmou na época que "Che" morreu em decorrência de seus ferimentos. Mais tarde, se saberia que ele foi executado depois de ter sido feito prisioneiro.
Marc Hutten morreu em 2012. Apenas algumas fotografias dessa reportagem ainda estão nos arquivos da AFP.
A seguir, a descrição histórica da cena ocorrida há 50 anos de acordo com suas anotações, difundidas em 11 de outubro de 1967:
Diante do corpo de "Ramón".
VALLE GRANDE (Bolívia), 11 outubro 1967 (AFP) - (Do enviado especial da AFP: Marc Hutten)
Ontem à tarde vi o corpo, cravejado pelas balas e sem vida, de um guerrilheiro apelidado "Ramón", o suposto nome de guerra de Ernesto "Che" Guevara.
Fomos cerca de trinta jornalistas, entre eles apenas três correspondentes estrangeiros, que chegamos a Valle Grande, um povoado pacato no sudeste boliviano, para constatar ali a morte do mais prestigiado dos guerrilheiros.
Após descer das alturas enevoadas do aeródromo militar de La Paz (4.100 metros), nosso "Dakota" parou em Valle Grande na hora da siesta. No outro extremo do povoado de ruas desertas, uma cerca diante da qual estavam parados aproximadamente 50 curiosos dava acesso a um terreno no fim do qual se erguia, em uma ladeira, um necrotério improvisado em um antigo estábulo. Altos oficiais e soldados armados nos receberam.
O cadáver de um homem barbudo, de cabelo longo e vestido apenas com uma calça verde oliva, jazia sobre uma maca colocada sobre uma pia de cimento. Um cheiro de formol pairava acima do corpo cravejado por balas e ensanguentado, que tinha a seus pés outros dois cadáveres, sobre o mesmo solo. Os oficiais encarregados de dissipar cada uma de nossas eventuais objeções sobre a identidade de "Ramón" se empenhavam em apontar a semelhança, traço por traço, do corpo com o guerrilheiro. Não há dúvida possível, nos diziam: as impressões digitais do cadáver correspondem às de Guevara.
"Ramón" foi fatalmente ferido na batalha do domingo anterior, a poucos quilômetros de La Higuera, perto de Valle Grande. Morreu pelos ferimentos na primeira hora de segunda-feira. "Não foi executado", garantiu o coronel Arnaldo Saucedo, comandante do segundo batalhão de 'rangers' que opera no setor.
"Sou Che Guevara, fracassei", teria murmurado, dirigindo-se aos soldados que o fizeram prisioneiro. Isso pelo menos é o que afirma o general Alfredo Ovando, comandante-chefe das Forças Armadas bolivianas. Mas ao ser perguntado sobre isso, pouco antes, em uma entrevista coletiva, o coronel Saucedo declarou que "Ramón" não tinha estado consciente em nenhum momento.
Os jornalistas que se amontoavam ao redor do necrotério, incluindo fotógrafos e cinegrafistas, dão sinais de estupefação e incredulidade. O erro na identificação pareceria ser, contudo, impossível.
Um colega boliviano me diz: "Valle Grande acaba de entrar na história revolucionária da América do Sul".
Aos pés do corpo de "Ramón", outros dois guerrilheiros jazem sobre o solo. Seriam os corpos de "El Chino", um peruano, e de "El Moro", um médico cubano. Outros dois cadáveres, que seriam ao que tudo indica bolivianos, ainda não foram identificados definitivamente.
O coronel Saucedo, que oferece uma entrevista coletiva depois da apresentação dos corpos, afirma que só restam nove guerrilheiros em todo o sudeste boliviano e que já não há focos de insurreição. Atlético e com um bigote preto, fala de pé sob a imagem religiosa que decora uma das paredes da sala do hotel em que nos reunimos.
Um militar americano assiste a essa coletiva. Não usa nenhuma insígnia, mas sua estatura, sua pele corada e seu uniforme entregam sua nacionalidade. O abordo para entrevistá-lo em inglês. Ele vira para um soldado boliviano e pergunta, em espanhol, o que queremos. Dirigindo-se a mim, acrescenta: "não compreendo..." e vai embora. Ao ser perguntado sobre isso, o coronel Saucedo me diz: "sim, é um militar americano, um instrutor do centro de Santa Cruz. Veio aqui como observador. Nenhum 'boina verde' americano participa nas operações militares na Bolívia".
Uma lista de 33 guerrilheiros, incluindo mais de uma dezena de cubanos, abatidos desde que começaram as hostilidades no dia 23 de março, foi publicada em Valle Grande.
O general Ovando reduz a guerrilha boliviana a proporções tão reduzidas quanto inesperadas, afirmando que seus efetivos nunca passaram de sessenta homens.
"A aventura da guerrilha chegou ao fim", afirma. "Como toda aventura destrambelhada deve chegar ao fim. Seu fracasso se deve à ausência de qualquer apoio popular e à aridez do terreno escolhido". E acrescenta: "enterraremos Guevara aqui mesmo, em Valle Grande".
O guerrilheiro "Ramón" teria encontrado a morte no fundo de um vale estreito, ao fim de uma violenta batalha, de corpo a corpo ou quase: as nove balas que o atingiram foram disparadas a 50 metros de distância.
Ele deixou um diário, cujos escritos, que preenchem uma agenda alemã de 7 de novembro de 1966 a 7 de outubro de 1967 -onze meses exatamente- não dá margem a dúvidas, dizem, sobre a identidade do autor. Ali se encontra uma frase "irrefutável" para Régis Debray*: "Foi encarregado de uma missão em nome da guerrilha...".
AFP
* O escritor francês Régis Debray, que se juntou a Che Guevara, foi preso e julgado na Bolívia em 1967, acusado de ter participado em confrontos que deixaram 18 mortos nas fileiras do exército boliviano.
copiado https://www.afp.com/pt/


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