Quando deixou Havana, em 2002, para trabalhar em uma das missões de saúde que Cuba realiza em outras nações, o médico Nivaldo Montero Rodríguez não sabia o que encontraria. A primeira delas --todas designadas pelo governo-- foi em San Sebastian, Honduras, na fronteira com El Salvador.
Depois de um ano, passou a atuar na fronteira com a Guatemala, antes de trabalhar durante dez anos na Venezuela, em dois momentos diferentes, atendendo na saúde básica. As missões carregavam um peso em comum: nos dois países, Rodríguez era obrigado a seguir uma rotina rígida, praticamente sem poder fazer nada --exceto trabalhar.
"Não podia ver ninguém, não podia ir na casa dos amigos, era claustrofóbico. Eram locais muito pobres. Por exemplo, na fronteira com a Guatemala, eu passava horas sem eletricidade", conta Rodríguez à reportagem.
Foi em março de 2014, quando chegou a Maringá, no Paraná, para atuar no programa federal Mais Médicos, que pôde realmente desfrutar de uma vida social longe de seu país natal.
Rodríguez é um dos profissionais que entraram com um processo contra Cuba e a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), que gerenciava a cooperação com o Brasil, para poder renovar seu vínculo com o Mais Médicos. Acabou expulso do programa e proibido de entrar na ilha caribenha por oito anos.
Ele faz parte de um contingente de médicos cubanos que querem permanecer no Brasil. Muitos são residentes fixos e já deram entrada na documentação para se tornarem cidadãos brasileiros.
Os profissionais dizem querer continuar atuando como médicos nos postos de saúde do país. São pelo menos 150 casos semelhantes ao de Rodríguez, todos sob os auspícios do advogado André Corrêa, que conta ter sentido o contato dos cubanos aumentar após a retirada do país do Mais Médicos.
As ações instauradas abrangem vários questionamentos dos médicos que vieram ao Brasil, cada qual com uma perspectiva e reclamações. No caso de Rodríguez, o salário e a impossibilidade de renovar seu vínculo com o programa foram os motes para o processo.
"A princípio não sabíamos o valor que era destinado ao governo cubano. Queria melhorar a vida da minha família, as condições de vida no país, ajudar as pessoas", diz ao UOL. Quando soube que alguns milhares de reais de seu salário iam diretamente à ilha, pleiteou na Justiça receber o valor integral.
Quando soube do processo, o coordenador do programa me chamou e disse: 'Você está desligado do programa, Nivaldo, tem que voltar para Cuba'. Fui considerado desertor, não posso tirar documentos, não posso voltar para o meu país. Decidi ficar, quero ser brasileiro
Nivaldo Montero Rodríguez, médico cubano
Rodríguez lembrou ainda que vendeu marmitas durante um ano para conseguir sobreviver no Brasil, antes de conseguir um emprego numa universidade do Paraná, que prefere não citar o nome. "Pode dar problema, para mim e para eles."
Além de terem parte de seus salários repassados ao governo cubano --o que era respaldado por um contrato assinado antes de aderirem à missão--, os médicos estavam sujeitos a regras específicas no Mais Médicos.
Os cubanos eram os únicos estrangeiros que não podiam renovar seus contratos com o programa, segundo o advogado André Corrêa, o que fere o princípio jurídico da isonomia [de que todos são iguais perante a lei]. "O edital de 2016 não permitiu que esses médicos prorrogassem seus contratos até 2019, por isso ingressamos no Judiciário. Temos decisões contra e a favor e ainda não obtivemos o julgamento do mérito em segunda instância", conta.
'Doutora, você está na rua, não importa se está doente'
Pouco antes de a reportagem ligar para Yanelis Miranda Herrera, 35, a médica já havia preparado o terreno. "Posso contar minha história, mas te adianto que é triste, é uma história diferente", escreveu à reportagem em mensagens de texto pelo celular.
Herrera veio ao Brasil para trabalhar no Mais Médicos em 2013 e foi designada para atuar em Curitiba, mas pediu para ser deslocada para Araucária, na região metropolitana de Curitiba. "Sei que na capital tem pessoas com mais condições, planos de saúde, e meu objetivo é atender os mais pobres", disse ela ao UOL.
Como Rodríguez, Herrera entrou com um processo contra Cuba, a Opas e o governo brasileiro em 2016. Foi desligada do programa federal um ano depois.
Quando foi chamada ao escritório do Mais Médicos em Curitiba, no entanto, havia acabado de sofrer uma trombose cerebral --espécie de AVC (Acidente Vascular Cerebral) em que um coágulo de sangue entope uma das artérias do cérebro.
"Não quiseram saber de nada, apresentei um laudo médico explicando que não poderia voar para Cuba porque poderia morrer. Não aceitaram. 'Doutora, você está na rua, não importa se está doente', foi isso o que eu ouvi naquele dia", conta a médica.
Ficou durante um tempo desempregada. Ouvia dos possíveis gestores que não seria contratada por não estar habilitada no CFM (Conselho Federal de Medicina). Acabou conseguindo uma vaga de auxiliar num consultório de oftalmologia.
"É um trabalho. Pelo menos estou conseguindo sobreviver. Mas o que quero é estudar, fazer o [exame] Revalida e atuar nas Unidades Básicas de Saúde ajudando as pessoas."
O teste é tema comum entre os médicos ouvidos pela reportagem. Todos disseram estar estudando para passar na prova. Mas o governo de Michel Temer (MDB) abriu um edital nesta semana em que permite a inscrição de profissionais estrangeiros sem o Revalida.
O exame ainda levantou questionamentos sobre a qualidade do serviço que os médicos cubanos prestavam. Nivaldo Rodríguez contou que, quando chegou a Maringá, sentiu a desconfiança dos moradores, que ele logo converteu em respeito e admiração. "No princípio houve uma rejeição, mas depois entenderam nosso trabalho, viram os resultados."
O exame ainda levantou questionamentos sobre a qualidade do serviço que os médicos cubanos prestavam. Nivaldo Rodríguez contou que, quando chegou a Maringá, sentiu a desconfiança dos moradores, que ele logo converteu em respeito e admiração. "No princípio houve uma rejeição, mas depois entenderam nosso trabalho, viram os resultados."
Segundo os médicos, muito desse preconceito passa pelo descaso das universidades brasileiras de medicina em relação à atenção primária, um contraste com a medicina de Cuba, que privilegia um programa voltado à saúde da família.
O Brasil tem uma boa estrutura de saúde, mas a atenção básica é muito precária. Não se pode tratar doentes no posto de saúde. Tem muita coisa errada, a medicina básica tem de ser preventiva. Você vai lá e receita um paracetamol [remédio para dor] para o paciente, mas não vai na causa da doença. Depois, passa um tempo e esse mesmo paciente morre, mesmo com o paracetamol
Yanelis Miranda Herrera, médica cubana
Ela, que se formou na Universidade de Matanzas, em Cuba, teve de fazer dois anos de especialização em medicina da família, além dos outros seis que todo médico cubano obrigatoriamente tem de cursar. Quando foi desligada do programa, os moradores de Araucária entregaram um abaixo-assinado na prefeitura pedindo que a médica continuasse trabalhando. Sem sucesso.
Os entrevistados também têm o mesmo sentimento de solidariedade com os parentes que permaneceram em Cuba. Rodríguez, que se casou com uma brasileira em 2016, enviava mensalmente parte de seus vencimentos do Mais Médicos para sua irmã, sua mãe e dois sobrinhos que vivem na ilha.
Herrera ajudava os pais e o filho de oito anos. Isso durou até o ano passado, quando todos vieram visitá-la no Brasil. O menino permaneceu aqui, se naturalizou e hoje está matriculado numa escola primária. Os pais dela voltaram para a terra natal.
'Governo cubano tirou a minha casa'
No dia em que conversou com o UOL, a médica cubana Neivis Sanchez Acosta passou horas em diversos postos da Polícia Federal para tentar regularizar sua situação no Brasil. "Só falta meu atestado de antecedentes criminais", conta Sanchez, que já é residente no país e agora almeja a naturalização.
Num percurso similar ao de Rodríguez, ela passou por missões de saúde em Trujillo e na Isla Margarita, na Venezuela, antes de chegar a Maringá, em 2014, para atuar no Mais Médicos. Quando soube que não poderia renovar seu contrato e permanecer no Brasil, Acosta também entrou com uma ação judicial.
Vivendo com um brasileiro desde 2014 e casada desde 2016, a médica conta que o processo rendeu retaliações por parte do governo em Cuba. "Os dirigentes, depois que souberam que estava processando [o governo], tiraram de mim a casa que eu tinha e passaram para outro médico", diz.
Segundo Acosta, a casa estava ocupada por seus dois filhos, um de 20 e outro de 25 anos. Eles agora vivem com o pai em outro local e, segundo ela, criaram antipatia pela mãe, já que a julgam como responsável pela perda da moradia. "Foram e ameaçaram. Eles viviam naquela casa havia mais de 20 anos. Me julgaram para os meus filhos, eles agora acham que eu sou culpada", conta.
Para o governo, eu traí a revolução, eu traí a pátria
Neivis Sanchez Acosta, médica cubana
Acolhida em uma universidade de Maringá, ela quer passar no Revalida e voltar a atuar no Mais Médicos, agora como brasileira naturalizada. "Em 2017, não passei por dois pontos", conta, com a voz embargada.
Com um salário de R$ 1.300, se vê atualmente impossibilitada de mandar recursos para a família em Cuba. "Agora é esperar minha nacionalidade sair e estudar. De certo, ainda nada."
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