País - Sociedade Aberta
Por que tudo não pode ser mais?
Foi no último dia 31 de julho, festa de Santo Inácio, enquanto participava da missa na igreja do colégio em Botafogo. Lotada de gente, a missa era bela e cheia de espírito e alegria. Eu recordava os tempos em que meus filhos eram alunos do colégio, em que eu ia às reuniões de pais e participava de muitas atividades pastorais. Agora, via ali alunas minhas de teologia que haviam tomado o lugar dos antigos professores de religião. Presentes com seus filhos, vibrando na mística comum que o colégio sabe criar, eram membros plenos daquela família nascida do sonho do gentil homem de Loyola que um dia se tornou o peregrino da vontade de Deus.Ao final da missa, o padre Carlos Palácio, provincial do Brasil, apresentou a nova logomarca da Companhia em nosso país. O clipe de apresentação abria justamente com esta frase: Por que tudo não pode ser mais? Com a frase dando-me voltas na cabeça e no coração, voltei para casa. Assim dormi, assim acordei no dia seguinte. Assim escrevo, por ela motivada. A realidade não é tão somente aquilo que é, mas também e talvez sobretudo aquilo que devia ser. Toda a antropologia cristã trabalha com esse princípio, que já foi enunciado nos albores do cristianismo pelo grande Paulo de Tarso. “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rom 12,2).
O ser humano é o único que não se conforma com a realidade mas deseja mais: que ela seja melhor, mais justa, mais reconciliada, mais perfeita. Nesse sentido trabalharam e trabalham todas as espiritualidades, as místicas diversas, laicas ou afiliadas a alguma instituição. Feito para a infinitude, apesar de sentir-se e ser finito, o ser humano é o único de toda a criação que não resolve sua existência por aquilo que a realidade lhe oferece: comer, dormir, procriar, morrer. Quebrando constantemente as fronteiras dos instintos e da natureza, a humanidade sempre buscou — para além do que lhe era dado, — o que desejava e podia alcançar. E transformou a vida em um incessante combate que tem como mola propulsora os desejos, os sonhos, os ideais, as utopias. Os projetos intra-históricos adquiriram transcendência inesperada e inexplicável. Os elementos da natureza foram para os laboratórios e, incessantemente observados e experimentados pelos cientistas, tornaram-se cura de doenças, avanços tecnológicos e produtos novos e úteis ao progresso da vida em todas as suas manifestações.
Os desvios, as manipulações, os erros também aconteceram. Mas o fato mesmo de sua existência denotava o esforço do homem e da mulher, seres finitos, lutando incessantemente para ser mais, para culminar o sonho do Criador para si mesmos e para a realidade em geral. Talvez a frase da logomarca da Companhia de Jesus tenha me feito pensar tanto e tão profundamente, porque hoje percebo um movimento inverso. O ser foi substituído pelo ter. Portanto, o ser mais pelo ter mais. E desde que o mundo é mundo sabemos que o ter mais muitas vezes vai na direta proporção do ser menos. As pessoas parecem se contentar com menos, buscar menos. Compromissos a longo prazo são muito difíceis. Ideais que alimentam toda uma vida são impossíveis. Então, contentemo-nos com o que encontramos nas esquinas, provisório, atrofiado e menor. Isso basta para satisfazer-nos. Não cansemos nossas cabeças esforçando-nos para conhecer mais e mais profundamente. Limitemo-nos à estreita área de nossa especialidade e vejamos o mundo apenas por esse prisma. Para que cansarmo-nos tentando saber mais para ser mais e servir mais quando saber apenas isso é o que nos dá de comer e o que garante nossa subsistência?
E assim foram perdendo seu lugar de honra na agenda humana os bons livros, a boa música, a boa educação, os bons costumes. Fica o que é imediato. Para que vou fazer um esforço para fazer o que não está à flor de minha pele, qual desejo urgente e imediato? Por que vou correr na direção daquilo que não acaricia minha capacidade de sentir e gozar sem nenhum débito ou responsabilidade?
A vida de Santo Inácio foi uma constante corrida no encalço deste mais e um esforço contínuo de responder a esta pergunta instigante: “Por que tudo não pode ser mais?” Olhando meus quatro netos, pequenos e inocentes, penso em como incutir neles essa chama inextinguível do desejo que se pergunta, diante da vida que se apresenta a cada dia: “Por que tudo não pode ser mais? “
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. - mhpal@terra.com.brcopiado : http://www.jb.com.br
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