O NOVO JEITINHO BRASILEIRO: EMPRESAS CONFESSAM DÍVIDAS FISCAIS PARA PROTEGER PATRIMÔNIO DE DONOS
NUM PAÍS ONDE os ricos pagam menos impostos do que os pobres, sempre pode surgir um jeitinho a mais de se livrar das garras da Receita. Para evitar que seus bens sejam confiscados por problemas fiscais, a moda entre o empresariado agora é confessar a dívida de suas firmas e, no fim das contas, escapar de pagar o que devem. De quebra, também ficam com seus patrimônios pessoais protegidos.
Traduzindo a lógica dos executivos, seria mais ou menos como dizer “minha firma deve, não nego, a empresa que pague quando puder. Mas eu não tenho nada a ver com isso”. De acordo com a Receita Federal, essa estratégia é comum em firmas menores e sem patrimônio. O movimento, no entanto, já começa a ser observado em grandes corporações.
“O cara declara tudo e ‘confessa’ em um CNPJ [empresa] sem ativos [bens] porque a intenção de pagar é zero. Isso vai direto para a dívida ativa. E, como não há bem nenhum a ser confiscado, vai ser mais um crédito podre”, explica o subsecretário de Fiscalização da Receita, Iágaro Martins.
Como funciona: o empresário abre várias firmas em nome de laranjas e sem patrimônio algum. Vende seus produtos e serviços com nota fiscal e tudo, confessando o débito, mas nunca paga. A conta vai parar na Dívida Ativa da União, mas os órgãos de fiscalização, como Receita e Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, não conseguem receber o imposto porque não existem bens. Depois, é só abrir uma nova firma em nome de outros laranjas e continuar o negócio.
Rede de consultores
São os chamados “devedores contumazes”, empresários que usam a falta de pagamento de impostos como estratégia para se “diferenciar” dos concorrentes que pagam suas obrigações em dia. Considerada fraude pela Receita, essa estratégia já estaria movimentando uma rede de consultores especializados em orientar os grandes empresários a usar do artifício para se antecipar a qualquer chance de ter o seu patrimônio pessoal afetado.
O crescimento desse “jeitinho” é ratificado pelos números da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, obtidos por The Intercept Brasil. Até 2010, quando foi publicada uma portaria para apertar a fiscalização, o cerco da Receita não estava tão forte e organizado. A maioria das cobranças da dívida ativa – 59% – era feita a partir de autos de infração dos fiscais.
Mas, desde 2011, a “confissão de dívida” virou um modelo que representa 52% do total da União. Com essa medida, os empresários evitam que fiscais entrem em suas empresas e até confisquem os bens dos donos e executivos para garantir o pagamento do imposto.
Sem essas “batidas” dos fiscais, o débito é simplesmente jogado numa relação gigante de impostos não pagos – que hoje soma R$ 1,6 trilhão -, incluindo devedores que morreram ou repassaram o patrimônio para terceiros e laranjas, os chamados “créditos podres”.
Levantamento de The Intercept Brasil identificou firmas grandes que também mudaram o perfil de suas dívidas após 2010, quando o Fisco apertou o cerco aos devedores. Um exemplo é o grupo JBS – dos irmãos delatores nas operações Greenfield e Patmos, Joesley e Wesley Batista. A mesma situação se observa nas empresas BR Foods, alvo da Carne Fraca, e Odebrecht, cujos executivos confessaram crimes em troca de redução de penas na Operação Lava Jato.
A JBS deve pelo menos R$ 3,72 bilhões acumulados desde 1994. Até 2010, a menor parte de seus débitos, 34%, tinha sido “confessada”, mas sem pagar nada. A partir de 2011, esse mecanismo passou a representar 79% do total.
“Quando uma empresa confessa, ela não quer um auditor dentro dela.”
Para Iágaro Martins, isso também é uma estratégia de blindagem patrimonial:
“Porque eles não querem seus sócios responsabilizados”, resume. “Quando uma empresa confessa, ela não quer um auditor dentro dela.”
Em setembro de 2014, a Receita Federal em Mato Grosso abriu uma ação fiscal com “arrolamento de bens” contra Wesley Batista. Não há informações sobre qual patrimônio foi dado em garantia para pagamento de tributos. A assessoria da J&F, que controla a JBS, chegou a negar a existência da busca por bens do executivo mas, questionada sobre o processo fiscal aberto, não conseguiu localizar informações sobre ele até o fechamento desta reportagem. A Receita Federal não se pronuncia sobre casos específicos por causa do sigilo fiscal dos contribuintes.
Na manhã desta quinta, a J&F disse que a Receita arrolou bens do dono da empresa porque acusou-a de ser a herdeira das dívidas da firma Guaporé Carnes. Um recurso do grupo ainda está em análise. Em outro recurso, Wesley conseguiu retirar seus bens como garantia para pagamento da cobrança, mas não se sabe quando isso aconteceu.
A JBS diz que as dívidas mais antigas têm origem na compra de outras empresas pelo grupo, mas elas foram parceladas no chamado “novo Refis”, em dezembro do ano passado. O Programa Especial de Regularização Tributária, criado no ano passado, permitiu que empresas e cidadãos parcelassem impostos atrasados em até 15 anos com redução de juros e multa e possibilidade de usar créditos tributários para bancar a despesa. “Embora houvesse argumentos consistentes” para não ser preciso pagar os impostos derivados da compra de empresas, a JBS preferiu refinanciá-los.
A JBS negou usar estratégia de blindagem patrimonial ao confessar dívidas. “Sustentar que a companhia passou a confessar débitos tributários depois de 2010, como parte de uma estratégia, é um equívoco”, disse, em nota. “Em nenhuma hipótese a confissão de débitos poderia implicar em proteção patrimonial de pessoa física ligada à companhia, especialmente por se tratar de uma S/A de capital aberto”.
Segundo a assessoria, os débitos confessados são pedidos para pagar contribuições à Previdência usando créditos tributários, não recebidos até hoje e que também fazem parte da negociação no Refis.
“Não é correto afirmar que os débitos se acumulam”
Na BR Foods, por exemplo, o percentual de dívidas confessadas passou a ser de 71% do total devido entre 2011 e 2018. No período anterior, até 2010, era de 38%. A empresa – que deve R$ 1,78 bilhão, com pendências desde 1990 – não quis prestar nenhum esclarecimento à reportagem.
O conglomerado da Odebrecht e de seu braço petroquímico, a Braskem, deve R$ 2,77 bilhões, pelo menos desde 1994, de acordo com dados da Procuradoria da Fazenda. Até 2010, essa dívida era composta por 29% de débitos confessados. De 2011 em diante, passou para 59%.
Mas as assessorias da Odebrecht e da Braskem disseram que cerca de R$ 1,8 bilhão dos débitos já foi pago ou resolvido com a Receita. Os demais R$ 930 milhões aproximadamente estariam suspensos ou garantidos por depósitos em dinheiro ou fianças bancárias.
“Não é correto afirmar que os débitos se acumulam”, disse a Odebrecht. “A companhia discute esses valores de forma legítima, e os débitos encontram-se devidamente garantidos via depósito.” A empreiteira afirmou que nenhum executivo teve bens bloqueados para garantir pagamento de impostos, e a Braskem não respondeu a essa pergunta.
A Odebrecht disse que o aumento das “confissões” de dívidas se assemelha ao que aconteceu com a JBS. O motivo seria uma série de pedidos para compensar pagamentos com “créditos legítimos da empresa, todos anteriores a 2010, não havendo qualquer implicação de seus sócios ou executivos”.
Além da ação do Fisco, prisões e casos criminais passaram a mudar a rotina de empresários envolvidos em grandes operações. Mesmo depois de sua delação premiada com a Lava Jato, Marcelo Odebrecht, ex-presidente do grupo, está com bens indisponíveis por duas ordens da 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada pelo juiz Sérgio Moro. A assessoria da Odebrecht disse que não poderia informar os imóveis confiscados por causa do sigilo da colaboração de um dos donos da empreiteira.
* Esta reportagem foi atualizada às 12h de quinta-feira (19 de abril) com informações adicionais da J&F.
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