Não é possível governar para todos, mercado que tome Rivotril, diz Boulos No Brasil, é muito fácil ser radical. Defender a igualdade racial é coisa de radical. Qualquer um é taxado de radical. O debate político foi levado de uma maneira que tão irresponsável à direita que basta você ficar parado que você virou extrema esquerda no dia seguinte. Se defender a igualdade social, eu sou. Se defender a democratização do Estado é ser radical, eu sou. Se defender liberdades individuais sem concessões, direitos civis e democráticos é ser radical, eu sou.....

Não é possível governar para todos, mercado que tome Rivotril, diz Boulos


Caio Quero e Felipe Souza
Da BBC Brasil em São Paulo
26/04/201808h36 
O líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, de 35 anos, quer se tornar o presidente da República mais novo da história do Brasil.
Pré-candidato pelo PSOL, ele tem ao seu favor um movimento social de expressão e uma espécie de "unção" feita por Lula em seu último discurso antes de ser preso pela Polícia Federal, em São Bernardo do Campo, no último dia 7 de abril. Por outro lado, Boulos faz parte de um partido pequeno e não passa de 1% das intenções de voto segundo o último levantamento do instituto Datafolha.
Em entrevista à BBC Brasil, o pré-candidato afirmou que é impossível governar para toda a população brasileira e que, caso eleito, combaterá os privilégios da população mais rica.
"O 1% dessa elite econômica, não acredito que eles considerem as políticas que nós defendemos boas para eles. No momento que nós estamos e, numa sociedade dividida e polarizada, não é possível governar para todos. Nós queremos enfrentar interesses. Interesses poderosos. Nós queremos governar pelos 99%", disse.



Com origem de classe média alta e filho de um dos principais infectologista do país - o médico Marcos Boulos, coordenador de Controle de Doenças da Secretaria de Saúde do governo de São Paulo -, Boulos disse que não teme que seus inimigos políticos o acusem de oportunismo por liderar um movimento sem-teto.
"Eu seria oportunista se eu tivesse enriquecido no movimento. É exatamente o contrário", afirmou o pré-candidato.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - O senhor estava no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo nos dias que antecederam a prisão de Lula. O sr. defendeu até o fim uma resistência. Por que fez esse tipo de ação?
Guilherme Boulos - Quando uma ordem é injusta, a resistência é legítima. O processo que condenou Lula é de uma ilegalidade do começo ao fim. Não há uma prova concreta. O caso do tríplex é extremamente frágil e não sou eu quem digo. Você pega os principais juristas do Brasil como se posicionam em relação a isso.
Foi importante o Lula ir para lá. Foi importante ele não ter se entregado no prazo estabelecido pelo juiz Sergio Moro e a comoção e a solidariedade que se criou de gente que veio de vários cantos do país para se formar aquele abraço ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que é um lugar muito simbólico. A foto que o Sergio Moro queria era a foto do Lula cabisbaixo, cercado de policiais entrando numa viatura. Não foi exatamente essa foto que rodou o mundo. A resistência ali foi importante. Nós achamos que ela poderia ter prosseguido, ter ido mais adiante. Mas nós respeitamos a decisão tomada pelo Lula.
BBC Brasil - Em sua opinião, Lula errou ao não resistir mais?
Boulos - É difícil dizer erro. Essa era uma decisão muito pessoal dele. É muito fácil defender martírio no corpo alheio. Eu não faço tipo de coisa. Em relação à questão política, nós achamos que o gesto de resistência como aconteceu e poderia ter corrido mais prolongadamente, um gesto que também serviria de exemplo para que pudesse animar mais pessoas a se dispor a ir para as ruas contra o abuso que foi a prisão do Lula.
BBC Brasil - Lula elogiou o sr. no último discurso e comparou a sua história à dele. O sr. se vê como plano B de Lula?
Boulos - Seria um desrespeito da minha parte num momento como esse querer me colocar como alternativa eleitoral ao Lula, que é candidato. O PT manteve a candidatura de Lula, que está sofrendo uma injustiça brutal, em relação à qual eu sou solidário. Eu não vou cometer esse equívoco porque eu acho que, mais que um erro político, seria um desrespeito em relação a todo sofrimento e injustiça que ele está recebendo neste momento.
BBC Brasil - O sr. tem 1% das intenções de voto, segundo a última pesquisa Datafolha. Sua candidatura é para marcar posição, como um treineiro, ou o sr. acha que vai ganhar as eleições esse ano?
Boulos - Eu sou o candidato mais jovem da história do país a disputar a Presidência da República. Alguns perguntam: "Tão jovem, nunca teve experiência parlamentar". Se experiência político-parlamentar fosse credencial para governar o Brasil, o Temer seria o melhor presidente da nossa história, porque está fazendo isso há 50 anos e é um desastre.
Experiência não é só estar no Parlamento. Obviamente, eu não desvalorizo aqueles que têm experiência parlamentar. Mas política não se faz só lá dentro, em tribuna, em instituição. Política se faz nas ruas e junto com o povo. É o que eu tenho feito nos últimos 16 anos da minha vida.
A nossa candidatura é para disputar projeto de país, para disputar de verdade, uma candidatura para valer. Não é candidatura para marcar posição. Eu lancei minha candidatura há um mês. O Bolsonaro está fazendo campanha há 2 anos, 3 anos pelas redes sociais. A campanha está absolutamente aberta. O Datafolha não expressa o que nós vamos vivenciar daqui quatro meses, cinco meses.
Nós não achamos que o mundo acaba em 2018. Independente de quem ganhar as eleições, nós precisamos construir um projeto de futuro que seja capaz de resgatar a esperança. Um dos erros que a esquerda cometeu foi pensar numa estratégia de acordo apenas com a próxima eleição. Estratégia com prazo de validade no calendário eleitoral. Nós não vamos fazer isso. Nós queremos pensar um projeto para os próximos 10, 15 anos. Para a próxima geração, não pela próxima eleição.
BBC Brasil - Caso seja eleito, como o sr. enfrentaria um Congresso provavelmente hostil ao seu governo. O sr. não tem medo de um eventual governo PSOL ser inviabilizado?
Boulos - Nós queremos apresentar um projeto que, pela primeira vez, vai botar o PMDB na oposição. Não queremos o PMDB na nossa base parlamentar, não queremos aliança fisiológica. Isso significa apresentar um projeto político, que a participação popular não se reduza a votar e acabou. Isso não é democracia. Isso é um conceito tacanho e limitado de democracia.
Queremos uma participação popular permanente. Nós queremos plebiscitos e referendos para temas fundamentais, a começar para no dia 1º de janeiro de 2019 um plebiscito para que o povo decida se quer revogar as medidas tomadas pelo governo ilegítimo de Michel Temer. Sem isso não se governa o Brasil.
BBC Brasil - Parece que o sr. está propondo tirar poderes do Parlamento com essa política plebiscitária.
Boulos - Isso não é desvalorizar as instituições. Ao contrário, é valorizar as instituições, porque é isso que vai fazer com que as instituições estejam em sintonia com a sociedade, aproximando o poder das pessoas.
Mas para representar o sentimento da sociedade tem que estar ouvindo o sentimento da sociedade. Nós precisamos criar esses canais de escuta e de definição que não existem hoje no Brasil. E reitero que eu não estou propondo nenhuma invenção da roda. Isso existe em várias partes do mundo. A Suíça faz mais de dez plebiscitos por ano. O Uruguai faz plebiscitos. Os Estados Unidos, que não podem ser exatamente acusados de comunistas, fizeram plebiscito agora na Califórnia, fazem plebiscitos. Vários países latino-americanos fazem plebiscitos, escutam as pessoas. O nome disso não é autoritarismo para fechar o Congresso. O nome disso é simplesmente democracia.
BBC Brasil - Se eleito presidente, como o sr. lidaria com a Lava Jato, com a Polícia Federal e com o Judiciário?
Boulos - Corrupção não pode ser tolerada. Toda investigação em relação à corrupção deve ser valorizada. Agora, isso precisa ser feito com respeito às garantias constitucionais, à presunção de inocência e ao amplo direito de defesa. Isso porque, para combater corrupção, não pode passar por cima da lei e dos direitos individuais. Se não, nós não estamos mais falando estado de Direito. Operações de combate à corrupção, se comprovarem provas contra as pessoas, deve haver punição. Isso independente da coloração partidária. Esse é o papel do Judiciário. É pensar e atuar de maneira isenta, independente da coloração partidária.
Lamentavelmente, o que tem ocorrido hoje não é exatamente isso. A Operação Lava Jato foi por caminhos muito preocupantes. Eu não estou vendo algum tucano preso, algum grande tucano preso pela Operação Lava Jato. É verdade que prendeu figuras do PMDB só depois de cumprirem um determinado papel. O pedido de prisão de Eduardo Cunha foi feito em dezembro de 2015. O Eduardo Cunha só foi preso de verdade após ter coordenado o processo de retirada da Dilma.
Eu acredito que o combate à corrupção não se dá principalmente com operações policiais. Elas são necessárias e devem continuar. No nosso governo tem o apoio, evidentemente, operações de combate à corrupção. O combate efetivo à corrupção para além das operações se dá com a mudança do sistema político. Como funciona o sistema político atual? Financiamento de campanha eleitoral vai lá e financia. Ganha, está comprometido com quem financiou. Vai favorecer os interesses em aprovação de leis, em negociação de contratos para empresas e empresários que financiaram.
Se a gente quer combater corrupção de verdade, vamos parar de udenismo e de falso moralismo e vamos enfrentar a raiz do problema, que é transformar profundamente o sistema político brasileiro.
BBC Brasil - Recentemente, o sr. criticou um economista liberal que propôs privatizações em larga escala. Qual seu plano para economia?
Boulos - Estou para encontrar algum economista neoliberal que se preze mundo afora que defenda isso (privatizações). O próprio FMI nos relatórios mais recentes fez uma série de autocríticas em relação à política que pregaram em adotar mundo afora. A política que pregaram em relação à crise de 2008, que não funcionou. Fracassou em todos os lugares do mundo. A política de austeridade, de redução de investimentos públicos durante a crise, só gera novos desajustes fiscais.
Olha, estamos em crise, o Estado segura o investimento. Qual o resultado disso? O resultado é que a economia cai ainda mais com a ausência do investimento público. Gera mais desemprego, desaquece ainda mais a economia e, portanto, arrecada ainda menos. Portanto, a política de ajuste fiscal gera um desajuste.
Em todos os países do mundo, o papel do Estado na indução do crescimento econômico e do desenvolvimento do país foi chave. Pega os Estados Unidos, modelo do liberalismo. Quem é que financiou as pesquisas do iPhone no Vale do Silício? Vocês acham que foi a Apple? Quem financiou foi o Departamento de Estado, o Departamento de Defesa. O Estado tem um papel-chave para qualquer país, inclusive para os grandes países capitalistas, no crescimento e na indução econômica.
Mas o investimento público é chave. Investimento em tecnologia, ensino, moradia popular e saneamento básico, infraestrutura urbana. Isso gera emprego, serviços públicos essenciais para a população e, ao mesmo tempo que recupera a economia brasileira, nos permite reduzir o abismo social e fazer com que o Estado cumpra mais com a sua responsabilidade. Essa é uma primeira linha que nós defendemos.
Agora como se sustenta isso? Enfrentando a desigualdade no nosso país. No Brasil, não falta dinheiro. O Brasil é uma sétima economia do mundo. O dinheiro está mal distribuído. Nós temos que mexer numa reforma tributária profunda e progressiva. O sistema tributário brasileiro está baseado em arrecadação sobre consumo, que é profundamente regressiva, que não tem justiça tributária. O que seria num Estado que opere para a justiça social? Quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos. É assim em boa parte do mundo.
BBC Brasil - Temos 12 milhões de pessoas desempregadas. Eu não entendi como o sr. pretende estimular esse emprego. É o Estado financiando empresas, como no governo Dilma? Por trás do refinanciamento o sr. tem a ideia de que elas geram emprego, e que talvez facilitando a vida delas eu consiga fazer com que elas empreguem?
Boulos - Eu não acho que esse é o caminho. Eu acho que um dos erros cometidos pelo governo Dilma foi fazer as desonerações de grandes setores econômicos. E isso não se reverteu em melhorias para a sociedade. O que eles deixaram de pagar em impostos não deu arrecadação e não se reverteu em novos empregos. Ao contrário, fecharam postos de trabalho. Não teve contrapartida social.
O caminho para estimular economia não é desonerar o setor privado. No meu entendimento, o caminho para estimular a economia é investimento público direto em áreas fundamentais, dei exemplos, de infraestrutura social, que trazem uma série de benefícios para o conjunto da sociedade, ao mesmo tempo que geram emprego. Você pega a construção de moradias populares. O setor da construção civil é um dos mais intensivos em mão de obra, gera bastante emprego. Se você fortalece um programa. Minha Casa, Minha Vida, de algum modo fez isso.
Você tem toda uma linha de investimento, saneamento básico. Isso gera bastante emprego. Isso é investimento público direto.
BBC Brasil - Então seria o Estado empregando? Seria a empresa brasileira de construção do Minha Casa, Minha Vida...
Boulos - Você tem vários modelos. Tem empresas públicas que empregam. A Petrobras agora está demitindo loucamente. Lá no Comperj, no Rio de Janeiro, foi contratada uma construtora chinesa para fazer. Está tendo um desmonte das empresas públicas. O Estado não controla todos os setores da economia, mas nos setores onde há presença estatal isso é contratação direta pelas empresas públicas. Nos setores de investimento público onde não há empresa estatal, você pode discutir a construção de empresas públicas, mas num primeiro momento é evidentemente viabilização de investimentos de obras também por meio de licitações no que a lei determina.
BBC Brasil - A gente viu ascensão das classes C e D formando uma nova classe média. Como convencer essas pessoas, a classe média tradicional e a elite econômica de que um governo Boulos poderia ser bom para eles?
Boulos - Não dá para convencer a todos. Tem alguns, inclusive, que eu até abro mão de convencer. O 1% dessa elite econômica, eu não acredito exatamente que eles considerem as políticas que nós defendemos boas para eles. No momento que nós estamos e, numa sociedade dividida e polarizada, não é possível governar para todos.
Nós queremos enfrentar interesses. Interesses poderosos. Nós queremos governar pelos 99%. Essa é a nossa decisão. Governar para os 99% significa enfrentar os privilégios do 1%, uma elite financeira que só espolia o país, que leva nossas riquezas lá para fora. O Brasil para eles é uma plataforma de acumulação e não deixam nada aqui.
Nós queremos enfrentar a lógica de uma economia que exclui e de um Estado que não representa as maiorias. E este enfrentamento é enfrentar as oligarquias políticas que mandam no Brasil. Esse enfrentamento é enfrentar o grande setor econômico que dá as cartas por aqui. O debate que nós temos que fazer com o conjunto, com a sociedade, é que hoje esse é o único caminho possível para que os 99% possam ter futuro.
Do jeito que a coisa vai, se não houver uma reversão, perspectiva de futuro não vai existir para a maioria do povo brasileiro. Nós temos 30% de desemprego entre jovens. O cenário é muito grave. Nós precisamos ter propostas contundentes de enfrentamento de rupturas nesse sentido. O papel da minha campanha não é acalmar o mercado. O mercado que busque tomar Rivotril. O papel da nossa campanha é defender o que a gente acha que tem que se defender para a maioria do povo brasileiro. É transformar maiorias sociais em maiores políticas. Isso significa confrontar interesses e significa enfrentar privilégios porque não tem outro caminho.

BBC Brasil - Como atrair um jovem usando discursos de distribuição de renda, ocupação, aborto, lutas indígenas quando, do outro lado, a direita parece estar mais popular, usando memes, falando de liberação do uso de armas e liberalismo econômico?

Boulos - Eu acho que não dá para generalizar isso. Efetivamente, você teve um crescimento de ideias de direita na sociedade, mas não podemos maximizar e nós temos que buscar compreender o contexto em que isso acontece. Na medida em que há uma falência do sistema político, que se expressa também numa crise de representação, as ideias se polarizam. As alternativas de centro, as alternativas do establishment, são cada vez mais menos críveis para as pessoas. As pessoas não querem isso. Isso abre demanda pelo novo.
Isso não está acontecendo só no Brasil. Isso tem criado mundo afora novas experiências de direita e novas experiências de esquerda. No Brasil, o problema que nós temos hoje é que o sentimento de antipolítica foi canalizado principalmente pela direita até aqui. A esquerda não conseguiu ainda construir uma alternativa ousada que se apresente também como antiestablishment, como antissistema. A esquerda, por ter tido 13 anos do PT, e as pessoas associam o PT à esquerda. Na cabeça de boa parte da população é assim, embora isso não seja exato, preciso. O fato é que na cabeça das pessoas isso acaba sendo parte da crise de representação e não uma alternativa a ela.
Nosso desafio está em apontar e construir um trajeto da esquerda no próximo período que não tenha medo exatamente de levantar essas bandeiras. Onde a esquerda manteve firme suas bandeiras e ousou, ela cresceu mundo afora. Nós temos que ir consolidando também a construção de uma alternativa à esquerda, que dispute esse sentimento de antipolítica. Boa parte do eleitorado que diz que vai votar no Bolsonaro não diz isso porque é de extrema-direita, porque é homofóbico, machista. Nós não temos 20% de extrema-direita no Brasil, mas vê no Bolsonaro exatamente alguém que possa acabar com essa bandalheira toda que está aí, uma coisa difusa de crise da política. Este espaço nós temos que disputar com ideias firmes, arejadas, conectadas com a dinâmica dos movimentos sociais mais novos, mais importantes, mais expressivos e, ao mesmo tempo, dialogando muito com a juventude. Ter a Mídia Ninja junto com a gente na campanha é uma expressão muito importante. Dialogar com novas linguagens, com novas gramáticas, sem abrir mão das bandeiras fundamentais.
BBC Brasil - O sr. se considera um radical?
Boulos - No Brasil, é muito fácil ser radical. Defender a igualdade racial é coisa de radical. Qualquer um é taxado de radical. O debate político foi levado de uma maneira que tão irresponsável à direita que basta você ficar parado que você virou extrema esquerda no dia seguinte. Se defender a igualdade social, eu sou. Se defender a democratização do Estado é ser radical, eu sou. Se defender liberdades individuais sem concessões, direitos civis e democráticos é ser radical, eu sou. Há 50 anos, o nome disso não era ser radical, mas chamem como quiser. O que está em jogo, para a candidatura que estamos construindo, é apresentar um projeto ousado de mudanças. É tocar em feridas fundamentais. Eu não acredito que isso seja extremismo. Extrema é a realidade brasileira hoje.
BBC Brasil - E o papel do Brasil no mundo. Como negociar com o governo Trump e como o sr. ver a questão da Venezuela?
Boulos - Política externa para nós tem que estar baseada na Aliança Sul-Sul. Esse é o nosso foco. Precisamos ter uma integração com países latino-americanos, com a África. Isso é um conceito de geopolítica que nos aproxima de países que construíram a sua trajetória tal como a nossa. Isso não quer dizer não ter relações com o Norte. Essas relações precisam existir tanto do ponto de vista comercial, como diplomático e político.
Países como o nosso, com a dimensão do Brasil, a sétima maior economia do mundo, mais de 200 milhões de habitantes, precisa dialogar com o mundo todo. Mas também precisa saber aonde quer chegar e não pode tolerar ser humilhado no cenário internacional, ser subordinado no cenário internacional. Não pode tolerar nível de intervenção estrangeira que nós temos hoje. Voltamos a ser aquele país que fala fino com os Estados Unidos e grosso com a Bolívia, isso precisa ser enfrentado. Isso significa fortalecer mais o Mercosul, em termos concretos, a Unasul, fortalecer as alianças latino-americanas. Isso tem o significado de fazer parcerias com os nossos e não subordinar apenas as relações internacionais a relações econômicas. Nós não podemos fazer com os nossos vizinhos a mesma política neocolonial que nós reclamamos que os Estados Unidos faz conosco. O Brasil precisa se reinserir também no cenário internacional e não apenas como produtor de commodities.
BBC Brasil - Como o sr. vê a situação na Venezuela hoje e como agiria caso fosse eleito?
Boulos - Antes de qualquer coisa, é preciso respeitar a soberania dos países e autodeterminação dos povos. É inadmissível uma declaração como a do secretário de Estado dos Estados Unidos estimulando o golpe militar na Venezuela e sugerindo a intervenção estrangeira na Venezuela. O problema na Venezuela parte de uma crise econômica profunda, que também foi resultado de erros cometidos pelo governo. De não ter diversificado a matriz produtiva. A Venezuela permaneceu absolutamente refém do petróleo e no momento que teve renda petrolífera altíssima, quando o petróleo estava US$ 110 o barril, tinha a oportunidade de ter investido em diversificação produtiva para se tornar autossustentável, inclusive em alimentos.
Mas atuou como se a alta dos preços do petróleo fosse durar para sempre. Quando o petróleo caiu para US$ 30, 40 o barril, o país quebrou economicamente. Um país que depende absolutamente do petróleo, quando estava 110, tinha condições fazer políticas sociais, e foram feitas. A desigualdade foi combatida brutalmente na Venezuela, o que não se mostra. Teve políticas sociais, as Missiones, praticamente se erradicou o analfabetismo na Venezuela em poucos anos. Teve políticas de investimento público fortíssimo em moradias, o Grand Mission Vivenda. Fez essas políticas, mas não se preocupou com o futuro mais no médio e longo prazo, que seria a diversificação produtiva. Quando o petróleo cai e não permite mais isso, entra numa crise econômica profunda. Agora, eu sou candidato a presidente do Brasil, não da Venezuela. Não me cabe me imiscuir em assuntos da Venezuela.
Oposição perseguida? Não é meu papel chancelar o governo Maduro. Se erros foram cometidos, precisa responder por esses erros. Agora, o mesmo vale para a oposição venezuelana. Tratar a oposição venezuelana como coitadinha é não conhecer o que se passa na Venezuela. A oposição venezuelana apostou na violência política, existem provas, imagens. A oposição venezuelana guardando e armazenando alimentos para aprofundaram a crise social com desabastecimento. A oposição venezuelana formou milícias.
BBC Brasil - O governo também...
Boulos - Houve enfrentamento ali, é evidente que as mortes pelas quais gente do governo foi responsável tem que responder por elas. Nós não vamos passar a mão na cabeça de ninguém, mas nós também temos que falar das mortes causadas pela oposição. O cenário é complexo. É muito fácil apresentar o Maduro como o vilão e oposição como mocinha. A vida não é desse jeito. É muito mais complexo na Venezuela.
Quando vem a imprensa brasileira chamando a Venezuela de ditadura. O Maduro foi eleito. Eleições com observadores internacionais, legitimadas. Foi eleito pela maioria do povo venezuelano. O mesmo não acontece com Temer, aliás. Não vi ninguém chamá-lo de ditador. (Sobre) as eleições do Trump nos Estados Unidos pairam talvez mais suspeitas em relação à sua manipulação de redes, à Cambridge Analytica, do que a todo o processo que foi feito às eleições do Maduro na Venezuela. O cenário de luta na Venezuela é muito mais complexo.
Nós temos uma oposição extremamente violenta e nós temos uma tentativa dos Estados Unidos de tentar desestabilizar a Venezuela. Os Estados Unidos têm um péssimo costume de tratar qualquer governo que ele não concorda como ditadura. Ameaçar intervenção, ameaçar invasão, e isso nós não podemos permitir.
BBC Brasil - O sr. nasceu em um contexto de classe média, classe média alta. O sr. não tem medo de ser classificado como oportunista, de ter usado um movimento social para entrar na política e fazer campanha?
Boulos - Eu seria oportunista se eu tivesse enriquecido no movimento. É exatamente o contrário. Eu comecei minha militância com 15 anos de idade num movimento estudantil secundarista. Militei num movimento de juventude e fui percebendo que não era ali que eu queria estar porque me incomodava muito de ver muita gente apresentando soluções para o povo, falando em nome do povo, mas com muito pouca disposição de ouvir o povo, de estar junto com as pessoas.
Em 2001, o MTST entra na região metropolitana de São Paulo, período que eu também estava iniciando minha formação em Filosofia. Depois, completei ela, me formei, dei aula por alguns anos em escolas públicas nas periferias. Depois, me formei em Psicanálise, fiz mestrado em Psiquiatria, dou aula hoje também na Escola de Educação Permanente (ligada ao Hospital das Clínicas), além de escrever artigos. Escrevo hoje para a revista Carta Capital, escrevo para sites.
Solidariedade é um princípio fundamental. Solidariedade é ter a capacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir uma dor que não é sua. Sentir a sua dor todo mundo sente. Solidariedade é algo essencialmente humano, que é a capacidade de sentir e se sensibilizar com a dor dos outros. Solidariedade não deveria ser vista como um problema, ainda mais no mundo que a gente vive. Deveria ser vista como algo a se propagar. O que me levou ao MTST é lutar para que todos possam ter as oportunidades que eu tive.
BBC Brasil - Recebeu críticas por isso?
Boulos - A pergunta tem que ser invertida. A pergunta não é porque alguém se juntou à luta por moradia num país que tem mais de 6 milhões de pessoas sem casa em pleno século 21. A pergunta deveria ser porque mais gente não se junta, por que mais gente não se sensibiliza. Essa é a pergunta que nós temos que fazer e que diz muito sobre o que é a sociedade brasileira. É estranho que a gente tenha que se explicar, se justificar porque se juntou a uma causa e foi solidário com as pessoas. A explicação deveria mudar o lado do balcão.
copiado https://noticias.uol.com.br/politica

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