Sem limites para quem?
"É possível afirmar, a partir do panorama traçado, que sequer esgota a análise, que as abissais desigualdades socioeconômicas brasileiras são resultados de instrumentos cuidadosamente construídos para favorecer alguns poucos em detrimentos da grande maioria"
O Brasil figura entre as nações com maior grau de desigualdade socioeconômica do planeta. Entre 188 países avaliados pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil aparece, na última divulgação do ranking, em 79o lugar em termos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Entretanto, o país alcançou o oitavo posto entre as maiores economias do mundo em 2017.
Não é sem razão, portanto, que constam entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo terceiro da Constituição: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e c) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Para o alcance dos fins aludidos são necessárias vigorosas políticas públicas e o manejo de importantes instrumentos econômico-financeiros. É sempre bom lembrar que o indefectível mercado, cada vez mais idolatrado na sociedade brasileira (estranhamente), não possui a mínima “vocação” para o combate à desigualdade socioeconômica.
Importa destacar que as profundas diferenças verificadas na sociedade brasileira não são obras do acaso, defeitos de funcionamento das engrenagens sociais ou puramente consequências da corrupção endêmica que assola as instituições públicas e privadas. Existem poderosos mecanismos, cuidadosamente construídos e ancorados na institucionalidade jurídica, voltados para viabilizar a transferência de bilhões e bilhões de reais da grande maioria da população para um punhado de setores minoritários extremamente privilegiados.
Uma das formas de identificar os mecanismos referidos, verdadeiras usinas de produção acelerada de desigualdade socioeconômica, é justamente buscar onde a ordem jurídica determina, ou não determina, limites claros de atuação para os mais importantes agentes públicos e privados.
Existem limites para as despesas com pessoal ativo e inativo no âmbito do Poder Público (art. 169 da Constituição). Esses tetos estão detalhados por nível da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e por Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), além de menções específicas ao Ministério Público e à Defensoria Pública (arts. 18 a 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar n. 101, de 2000).
As remunerações dos agentes públicos (ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos) estão limitadas por expressa determinação constitucional (art. 37, inciso XI). O referido teto abrange os proventos, pensões ou qualquer outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza.
Por força da Emenda Constitucional n. 95, de 2016, foi instituído, por 20 (vinte) anos, o Novo Regime Fiscal. Trata-se de um poderoso limite para os gastos de natureza social (as chamadas “despesas primárias”). Assim, no conjunto, as despesas com educação, saúde, cultura, lazer, segurança pública, entre outras dessa natureza, terão como teto o desembolso do exercício anterior corrigido pela inflação. Por esse draconiano mecanismo, as políticas públicas mais sensíveis para erradicação da pobreza e das profundas desigualdades sociais e regionais brasileiras sofrem um duríssimo golpe.
A Constituição de 1988 chegou a fixar um limite para a cobrança de juros no Brasil. Nesse sentido, o art. 192, parágrafo terceiro, do Texto Maior estabelecia: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Esse dispositivo foi revogado pela Emenda Constitucional n. 40, de 2003.
“Segundo o informe do Banco Central de fevereiro de 2017, o saldo das operações de crédito do sistema financeiro, incluindo recursos livres e direcionados, atingiu 3.074 bilhões reais, 48,7% do PIB. Sobre este estoque incidem juros, cujo valor médio no mesmo período era de 32,8% ao ano (o equivalente na Europa é da ordem de 3% a 5%). Isto significa que a carga de juros pagos pelas pessoas físicas e jurídicas representa 999 bilhões, praticamente um trilhão de reais, cerca de 16% do PIB. Trata-se dos juros extraídos, não do volume de empréstimos” (A era do capital improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo? Ladislau Dowbor. São Paulo: Autonomia Literária, 2017).
Dowbor, na obra citada, destaca a impressionante evolução recente do endividamento das famílias com base em dados do Banco Central. Em março de 2005, a dívida das famílias representava a 19,3% da renda familiar. Em março de 2015, a dívida acumulada equivalia a 46,5% dessa mesma renda. Essa perversa realidade, decorrente de juros altíssimos (nas economias mais desenvolvidas ficam entre 2 e 5% ao ano), revela: a) uma monumental transferência de riqueza da maioria da sociedade para um fração mínima de intermediários financeiros; b) uma profunda limitação à expansão do consumo e c) um poderoso obstáculo ao crescimento da atividade econômica. E não há limites para o travamento da economia brasileira por obra da financeirização selvagem.
Élida Graziane Pinto, José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto, no artigo “É inconstitucional a omissão em limitar a dívida pública federal”, afirmam com propriedade: “A dívida pública federal é o mais sensível termômetro das relações cada vez mais intrincadas e complexas entre instrumentos de política econômica: fiscal, monetária, cambial e, depois da crise global de 2008, creditícia (…) Com quase 30 anos de vigência, o desiderato constitucional de balizar a dívida pública federal — ainda que a LRF, há 17 anos, tenha dado um ultimato de 90 dias para que o tema ingressasse na pauta de debates do Congresso — sofre um impasse político travestido de omissão supostamente discricionária“.
É isso mesmo. São quase 30 anos sem a realização da determinação constitucional de estabelecer limites para a dívida pública da União (mobiliária e consolidada). Temos, nessa área, situação similar e igualmente surreal. São quase 40 anos sem a efetivação do comando constitucional que estabelece a auditoria da dívida pública brasileira.
Uma das principais questões econômico-financeiras do Brasil permanece distante do noticiário da grande imprensa e do paupérrimo debate em torno dos nossos problemas mais relevantes. Tratam-se das “operações compromissadas” realizadas pelo Banco Central do Brasil. O volume dessas operações cresceu tanto nos últimos anos que foi responsável por parte significativa do aumento do endividamento público.
Os condutores da política econômica brasileira transformaram um instrumento secundário de política monetária num monumental mecanismo de transferência de riqueza da maioria da sociedade para segmentos altamente privilegiados do intocável mercado financeiro.
Essas operações funcionam como “compras” de dinheiro dos bancos, realizadas pelo Banco Central, em troca de títulos da dívida pública com cláusula de revenda e pagamento de juros em patamares altíssimos. Esta é a evolução dos montantes das “operações compromissadas”, em bilhões de reais e em dezembro de cada ano: 2011 – 311,86; 2012 – 497,50; 2013 – 508,54; 2014 – 791,57; 2015 – 894,54; 2016 – 1.026,39 e 2017 – 1.113,15 (http://www.bcb.gov.br > Economia e Finanças > Notas econômico-financeiras para a imprensa > Histórico > Política Fiscal > Dez/2017 > Quadro XXXVII – Operações compromissadas – Mercado aberto). Simplesmente não existem limites ou restrições para a realização dessas operações, como bem demonstram os números de sua evolução.
Registre-se a tramitação, na Câmara dos Deputados, do inusitado Projeto de Lei n. 9.248, de 2017. A proposição busca “legalizar” a trilionária prática das “operações compromissadas” sob a nomenclatura do “acolhimento, pelo Banco Central do Brasil, de depósitos voluntários à vista ou a prazo das instituições financeiras”.
O projeto simplesmente autoriza o expediente e remete para o BC a regulamentação da remuneração, das condições, dos prazos e formas de negociações. Limites? Não foram cogitados, claro. Além de inusitado, o projeto é inconstitucional. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não é juridicamente válida a delegação de regulamentação na forma de um “cheque em branco”, sem a definição de parâmetros ou padrões a serem seguidos.
As reservas internacionais brasileiras chegam perto da impressionante cifra de 1,3 trilhão de reais. A maior parte desse estoque corresponde a títulos americanos que rendem juros baixíssimos. Não são poucos os economistas que condenam o nível exageradamente alto dessas reservas. O elevado custo de formação (ou de carregamento) também é objeto de fortes críticas.
Com efeito, o Brasil lança títulos remunerados por juros SELIC para captar os recursos a serem utilizados na formação das reservas em títulos americanos e dólares. Nos últimos anos, essas operações foram responsáveis por parte significativa do aumento da dívida pública. Nessa área, sintomaticamente, não existem limites (para o tamanho do estoque das reservas e para as operações com títulos públicos para formá-las).
Importa destacar um ponto especialmente curioso. Advoga-se uma tal “independência do Banco Central”. Independência de quem? É a pergunta. Só pode ser independência da soberania popular e das instâncias políticas eleitas.
Afinal, o atual BC, totalmente dependente do mercado, notadamente financeiro, sem a necessidade de nenhum arcabouço jurídico para tanto, opera com as “operações compromissadas”, formação de reservas internacionais, swaps cambiais e vários outros instrumentos bilionários e trilionários sem qualquer limite jurídico. Se for independente …
Segundo dados do Ministério da Fazenda, divulgados pelo jornal Folha de São Paulo do dia 6 de agosto de 2017, de 2003 a 2016 os subsídios embutidos em operações de crédito e financeiras alcançaram quase R$ 1 trilhão. Desse total, cerca de 420 bilhões foram destinados para o setor produtivo. Deve ser destacado que a maior parte desses benefícios não aparecem expressamente no orçamento debatido e aprovado pelo Congresso Nacional. Como é de se imaginar, o tamanho desses subsídios não possui qualquer restrição. Literalmente, o céu é o limite …
Dados da Receita Federal e do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgados pelo portal G1, indicam que as renúncias tributárias em 2017 chegaram a 406 bilhões de reais. Em 2016, o montante apurado foi de 378 bilhões de reais. Esses números não contemplam o benefício de cerca de 1 trilhão de reais para o setor de petróleo e gás. Essa é outra área, onde são “perdidos” centenas de bilhões de reais por ano, sem qualquer tipo de limitação ou restrição.
É possível afirmar, a partir do panorama traçado, que sequer esgota a análise, que as abissais desigualdades socioeconômicas brasileiras são resultados de instrumentos cuidadosamente construídos para favorecer alguns poucos em detrimentos da grande maioria. Nesse triste cenário, a grande mídia e o rasteiro debate político e econômico visível esconde boa parte desses mecanismos e expõe, com insistência e intensidade, os gastos públicos relacionados com servidores públicos, seguridade social e políticas públicas de interesse popular.
Na minha modesta opinião, a superação aceitável e legítima deste quadro socioeconômico dantesco envolve uma profunda intervenção. A complexa e demorada intervenção popular a partir da conscientização e mobilização crescentes. Intervenção divina, militar, ditadura, enfraquecimento substancial do papel do Estado, salvadores da Pátria e outras soluções rápidas e mágicas são ilusões pueris e infantis ou manifestações transversas dos poderosos e condenáveis interesses dominantes já.
Do mesmo autor:
copiado https://www.brasil247.com/ptNão reeleja ninguém?
"A proposta padece de três graves defeitos. O primeiro consiste em formular uma solução simples (ou simplista) para um problema de alta complexidade. O segundo defeito envolve um equívoco de análise e sugestão de atuação política. A última dificuldade reside em uma profunda injustiça"“A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, conhecida por sua série de livros de divulgação sobre doenças mentais, lançou-se em uma campanha pela não-reeleição de políticos. Para a médica, não reeleger ninguém é a forma de ‘ajudar a limpar as instituições políticas’”. (https://goo.gl/qUgt5p). A proposição em questão ganha adeptos de forma crescente e forte disseminação nas redes sociais.A proposta, em que pese ser bem-intencionada, padece de três graves defeitos. O primeiro deles consiste em formular uma solução simples (ou simplista) para um problema de alta complexidade. O segundo defeito envolve um profundo equívoco de análise e sugestão de atuação política. A última dificuldade reside na promoção de uma profunda injustiça para com trajetórias políticas éticas e fortemente comprometidas com os mais relevantes interesses populares e democráticos.A solução é simplista porque não resolve o problema de fundo da representação política. A simples escolha de “caras novas”, de candidatos que jamais exerceram mandatos eletivos, não garante ou indica uma melhora no triste quadro dos políticos eleitos. Considere, a título de ilustração, a seguinte situação. Um velho cacique político, eleito e reeleito com base na pura e simples compra de votos, ícone do fisiologismo mais rasteiro, resolve deixar as campanhas eleitorais e lançar o filho, jejuno nas pendengas nessa seara, como candidato. Júnior é uma “cara nova” como candidato, mas também um novo representante do que existe de pior em termos de atuação política. O novo, por si só, não resolve nada.O equívoco de análise da cena política é enorme. Afinal, para avaliar um candidato ou mesmo alguém no exercício de um mandato eletivo é preciso confrontar o personagem com uma série de parâmetros, exigentes parâmetros, relacionados com a delicada missão de representar interesses de terceiros. Costumo utilizar a seguinte situação hipotética para realçar a importância dos critérios de escolha dos representantes. Imagine a necessidade de alguém receber a quantia de R$ 5 milhões e a impossibilidade, em função de uma viagem inadiável, de comparecer pessoalmente ao ato de recebimento da “bolada”.A solução para a dificuldade reside na constituição de um procurador (representante) para receber o numerário em nome do beneficiário e, ato contínuo, repassá-lo ao seu legítimo destinatário. Pergunta-se: alguém, no seu juízo perfeito, escolherá o representante (procurador) sem atenção para critérios rigorosíssimos, notadamente de ordem ética? Afinal, o risco de perder de vista o procurador mal escolhido e o dinheiro é enorme. Emendo com outra pergunta: por que a escolha de representantes políticos (para lidar com interesses trilionários) não exige rigores iguais ou maiores do que aqueles do beneficiário da “bolada” de 5 milhões de reais? A pura e simples proposta de não reeleger ninguém desconsidera a necessária atenção para os rigorosos critérios a serem manejados para a escolha de um bom (ótimo ou excelente) candidato.A injustiça envolvida na proposta também é grande. Embora minoritários, temos parlamentares que honram a representação política com uma atuação pautada pelos mais rigorosos valores éticos e uma intransigente defesa dos mais relevantes interesses democráticos e populares. Com esse perfil, listo, entre outros, três deputados federais: Chico Alencar (Psol), Alessandro Molon (Rede) e Tadeu Alencar (PSB). Não votar nessas combativas figuras do parlamento em nome da “limpeza” das instituições é um monumental equívoco. Afinal, esses mandatos parlamentares estão visceralmente comprometidos justamente com a máxima lisura do funcionamento das instituições.Assim, é fundamental indicar os aspectos ou critérios a serem considerados na escolha de candidatos nos pleitos eleitorais. Os principais e mais importantes são os seguintes, a serem identificados em alguém que nunca exerceu um mandato ou em alguém que já exerce um mandato eletivo:a) defesa dos mais relevantes interesses democráticos e populares. Com efeito, as mais significativas mazelas socioeconômicas não são obras do acaso, defeitos de funcionamento da sociedade ou meros resultados da corrupção. Leis, decisões de governo e a formatação de políticas públicas realizam, nas situações mais importantes, os interesses de determinados segmentos sociais em detrimento de outros. Na minha visão, o vínculo com segmentos populares (trabalhadores, estudantes, aposentados, artistas, intelectuais progressistas, etc.) e a consequente representação de seus interesses socioeconômicos é o aspecto mais importante para a definição de voto nos pleitos eleitorais institucionais;b) as propostas defendidas pelo candidato para os mais relevantes temas em debate na sociedade indicam, com razoável precisão, como se dá a inserção do mesmo no complexo jogo de interesses socioeconômicos (como destacado no item anterior). Vejamos alguns exemplos emblemáticos. Como se posiciona em relação: a) a um teto de gastos públicos seletivo (aplicável às despesas relacionadas com direitos e políticas sociais e não aplicável às despesas financeiras com a dívida pública); b) a uma política tributária recheada de benefícios fiscais para setores privilegiados e com forte e majoritária pressão fiscal sobre o consumo e os rendimentos decorrentes do trabalho e c) aos vários e relevantíssimos aspectos das políticas monetárias, creditícias e cambiais que viabilizam a transferência de bilhões de reais para segmentos minoritários da população e são convenientemente esquecidos pela grande imprensa e pelas autoridades governamentais;c) uma trajetória ética definida pela distância de escândalos de corrupção e condenações penais ou por improbidade administrativa. Nessa seara, a experiência profissional e de vida devem ser consideradas com especial cuidado, inclusive quanto aos vínculos de defesa de interesses no complexo tecido socioeconômico;d) um mínimo de conhecimento técnico do funcionamento das instituições, das políticas públicas e da gestão econômico-financeira, incluída a tributação. Com efeito, um mandato parlamentar ou executivo envolve uma quantidade significativa de decisões na área dos negócios públicos. As várias assessorias institucionais são extremamente relevantes, mas não substituem (ou não devem substituir) a compreensão mínima das matérias pelo mandatário;e) como pretende exercer o mandato, notadamente quanto aos mecanismos de consulta e audiência dos eleitores, dos segmentos sociais e movimentos organizados em entidades ou não. Nesse campo, as experiências de constituição de conselhos políticos de acompanhamento do mandato são extremamente interessantes.Ademais, o centro de gravidade da política não está (ou não deve estar) no eleito ou mesmo no voto (pura e simplesmente). As grandes e profundas transformações requeridas pela realidade brasileira, sobretudo para enfrentar as gigantescas desigualdades socioeconômicas, passam necessariamente por um processo consistente e duradouro de mobilização e conscientização populares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário