Um estudo sobre audiências de custódia realizadas na cidade de São
Paulo mostra que juízes e promotores de Justiça dificultam a
investigação de casos suspeitos de tortura e maus-tratos praticados
contra pessoas detidas pela polícia. Responsável pela pesquisa, a
organização não governamental Conectas Direitos Humanos cobrará nesta
segunda-feira (20) providências do Tribunal de Justiça e do Ministério
Público de São Paulo a respeito dessas audiências.
O estudo da Conectas, a que o
UOL
teve acesso com exclusividade, é decorrente do acompanhamento
presencial da atuação dos órgãos do sistema de Justiça de São Paulo em
393 audiências de custódia realizadas entre julho e novembro de 2015.
Como funcionam as audiências e o que é considerado tortura
Elas são consideradas instrumentos de combate e prevenção à tortura e
aos maus-tratos em casos de prisões em flagrante. Os detidos têm de ser
apresentados a um juiz até 24 horas depois da prisão. O juiz analisa a
legalidade da prisão, decide se ela dever ser mantida ou não e verifica
se o detido foi vítima de violência.
A realização dessas
audiências no país é uma iniciativa do CNJ (Conselho Nacional de
Justiça). Elas estão previstas em pactos e tratados internacionais
assinados pelo Brasil. Na cidade de São Paulo, as audiências acontecem
desde fevereiro de 2015, graças a uma parceria do conselho com o
Tribunal de Justiça. Em todos os casos analisados, havia, de acordo com a
Conectas, indícios de violência cometida no período entre a prisão e a
apresentação ao juiz.
Responsável pela condução dos trabalhos, o
juiz é o primeiro a ter a palavra na audiência. Depois, é a vez de o
promotor de Justiça se pronunciar. Por último, fala o defensor público
ou o advogado do detido.
Uma resolução de dezembro de 2015 do
CNJ determina que o juiz pergunte ao detido sobre o "tratamento recebido
em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência,
questionando sobre a ocorrência de tortura e maus-tratos e adotando as
providências cabíveis".
A interpretação do crime de tortura
feita pelo conselho inclui atos voltados para a obtenção de informações
ou confissões, a aplicação de castigo, intimidação ou coação, além da
"aflição deliberada de dor ou sofrimentos físicos e mentais".
A
Constituição prevê reclusão de dois a oito anos para quem comete tortura
e detenção de um a quatro anos para quem "se omite em face dessas
condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las".
Ausência de perguntas e desqualificação das denúncias
No universo das audiências acompanhadas pela Conectas, a maioria dos
detidos relatou ter sofrido algum tipo de violência --na maioria dos
casos relatados (91%), a violência teria sido praticada por policiais.
No entanto, parte dos juízes não tomou a iniciativa de introduzir o tema
fazendo perguntas sobre ele. Esta omissão foi verificada em um terço
das audiências.
A pesquisa também mostrou que uma parcela dos
juízes tratou com desconfiança o relato do detido quando o assunto veio à
tona na audiência. O estudo mostrou que os magistrados insinuaram que o
preso estava mentindo em 18% dos casos analisados. Em outras
audiências, os juízes relativizaram a violência ou a trataram com
naturalidade. "Tapa na cara só?", perguntou um juiz ao detido.
De acordo com o relatório, o combate e a prevenção à tortura acabam
dependendo "muito mais da convicção pessoal do juiz do que de um
protocolo de atuação institucional da Magistratura".
O relatório
também aponta que as audiências desperdiçam informações fundamentais
para as investigações. "Raras vezes são feitas perguntas que (...)
tragam elementos de prova relevantes para a apuração da tortura. Quando
se narra que há testemunhas da agressão, isto é ignorado, não tendo sido
observado um único caso em que os dados destas testemunhas passassem a
constar dos autos", diz o estudo.
"Da mesma forma, imagens de
câmeras próximas, ou até mesmo o GPS presente nas viaturas, também não
costumam ser considerados ou especificados nos procedimentos. A maioria
dos (as) juízes (as) sequer pergunta se o acusado-vítima saberia
reconhecer os (as) agressores (as), e poucos perguntaram características
dos (as) policiais."
"Promotores referendaram a violência do Estado"
A Conectas não revelou os nomes de juízes e promotores cujas atuações
foram analisadas. O estudo indica que entre os promotores a omissão
diante de casos suspeitos de tortura é maior do que entre os
magistrados.
Os promotores deixaram de perguntar sobre tortura
na grande maioria (91%) das audiências em que receberam a palavra antes
que o tema fosse abordado. O promotor de Justiça representa o Ministério
Público Estadual, órgão responsável pelo controle externo das
atividades das polícias Militar e Civil.
A pesquisa revelou que,
além de evitarem o tema, os promotores "contestavam os testemunhos,
(...) dando mais peso à palavra dos policiais". "Em alguns casos,
promotores referendaram claramente a violência do Estado", diz a
Conectas no estudo.
"Ficamos muito impressionados,
principalmente com a atuação dos promotores, que abrem mão desse dever
constitucional [de investigar a polícia] e passam a agir como advogados
do policial acusado", afirmou Rafael Custódio, advogado e coordenador do
programa de Justiça da Conectas.
"As forças de segurança estão
produzindo um grau de violência que é inaceitável. Quando isso é
mostrado ao sistema de Justiça, não há um grande enfrentamento. Isso é
tão grave quanto a violência física que as pessoas estão sofrendo nas
ruas. Se o policial vê que nada acontece [se não é punido], ele vai
continuar a praticar violência", disse Custódio.
Marcelo Pereira/UOL
Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste, onde são realizadas as audiências de custódia
Juiz cita "ritmo ensandecido" e vê falhas ocasionais
Coordenador das audiências de custódia realizadas pelo Tribunal de
Justiça na capital paulista, o juiz Antonio Maria Patiño Zorz reconheceu
que o juiz tem o dever de verificar se os agentes das forças de
segurança policiais cometeram abusos contra os detidos. "Questionar
sobre tortura faz parte do espírito da audiência de custódia."
Zorz classificou como falhas ocasionais os casos em que os juízes
deixaram de perguntar sobre eventuais violências cometidas por
policiais. Ele atribui essas falhas à "diminuta estrutura" para a
realização de uma grande quantidade de audiências.
"Estamos em
um ritmo ensandecido. Começamos do zero. Não havia qualquer tipo de
modelo. A gente tem uma rotina de realizar em média cem audiências com
presos por dia. E já chegamos a ter 170 em um só dia. Passamos de 36 mil
audiências em dois anos", disse o magistrado. "Não tivemos, em dois
anos, nenhuma reclamação formal contra juízes em nossa corregedoria."
O Ministério Público de São Paulo, por sua vez, afirmou em nota que "os
promotores tratam o tema da violência policial da mesma forma que
tratam de qualquer conduta que infrinja a lei, atuando no sentido de que
se observe o que estabelecem a legislação brasileira e os pactos
internacionais".
Pedidos de mudança de conduta
A Conectas enviará nesta segunda-feira (20) representações ao
corregedor-geral de Justiça, desembargador Manoel de Queiroz, e ao
procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, para exigir mais rigor
nas audiências de custódia em São Paulo.
A organização pede que
os órgãos questionem juízes e promotores de Justiça sobre as
providências tomadas em casos de tortura e maus-tratos. Além disso,
cobra o cumprimento, durante as audiências, das recomendações e
protocolos do CNJ.
A Conectas também pede que o Tribunal e o
Ministério Público criem bancos de dados para analisar os relatos de
tortura "a fim de identificar eventual sistematicidade na prática,
conforme determinada região, distrito policial e/ou agentes públicos". A
ONG também cobra do Tribunal que disponibilize um espaço privado para
que os presos possam conversar com o defensor ou o advogado antes da
audiência.
Fundada no Brasil em 2001, a Conectas atua na defesa dos direitos humanos na América do Sul, na África e na Ásia.
* Colaborou Flavio Costa.
copiado https://noticias.uol.com.br/
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