Entrevista
"Não poderíamos ouvir uma afronta calados"
Criado em parceria pelos governos do Brasil e de Portugal em 1988, o Prêmio Camões é a maior honraria literária da língua portuguesa. Cada premiado recebe 100 mil euros (cerca de R$ 360 mil), pagos em partes iguais pelos dois países. Jorge Amado, José Saramago, Raquel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto e Mia Couto estão entre os já agraciados. Ao receber o prêmio no dia 17, em São Paulo, o escritor Raduan Nassar, 81 anos, aproveitou a cerimônia para classificar o governo Michel Temer de ilegítimo e defender a ex-presidente Dilma Rousseff. As palavras do autor de “Lavoura Arcaica” e “Um Copo de Cólera” constrangeram o ministro da Cultura, Roberto Freire, 74. “Querer transformar em panfleto político um evento tão importante é algo descabido”, disse o ministro à reportagem de ISTOÉ. Na entrevista a seguir, o ex-militante do Partido Comunista Brasileiro e atual presidente nacional do PPS falou ainda sobre o que tem feito para melhorar a relação do atual governo com a classe artística, da CPI da Lei Rouanet e até dos desafios da esquerda para reconquistar a representatividade nas próximas eleições.
Depois do discurso de Raduan Nassar sobre a iletimidade do governo Temer, o senhor disse que ele não deveria aceitar o Prêmio Camões “em sua integralidade”…
Não é bem isso. Embora eu não tenha falado na hora, eu me lembrei de (Jean-Paul) Sartre se recusando a receber o Prêmio Nobel. Não era um prêmio dado por um governo, mas como ele achava que havia um caráter político, se recusou a receber. Pura e simplesmente. Se ele (Raduan Nassar) quisesse protestar com muita força, o evento sequer deveria ter existido, até por ser patrocinado pelo Ministério da Cultura do governo Temer.
Chegou a falar com o presidente Michel Temer sobre esse episódio? Ele ficou chateado?
Falei por telefone, posteriormente. Esse é um fato da política, que não tem de trazer chateações. Tem de trazer consequências. E fomos consequentes. Não podíamos ouvir calados a uma afronta. O episódio era de tal forma agressivo que tive de me impor para dizer o que precisava ser dito.
A classe artística tem demonstrado resistência ao governo Temer. O senhor vem procurando ampliar o diálogo?
Eu não generalizaria dessa maneira. Uma das coisas que nós aqui já conseguimos foi uma aproximacão com os cineastas, que estavam muito afastados do ministério da Cultura. No Conselho Superior de Cinema não havia um só cineasta. Hoje eles têm participação significativa e o Conselho deixou de ser um mero órgão homologatório da política oficial da Ancine (Agência Nacional do Cinema). No nosso governo, o Conselho delibera sobre a política do audiovisual e do cinema brasileiro, com representantes da sociedade e de pessoas atuantes nessa atividade cultural.
E nas outras áreas? Qual a estratégia de aproximação?
Isso está acontecendo não só com os cineastas, mas com todas as linguagens artísticas. Na Funarte (Fundação Nacional das Artes, órgão do Ministério da Cultura) temos como presidente o ator Stepan Nercessian, uma figura muito respeitada por suas atitudes no meio teatral, inclusive por seu programa de solidariedade como dirigente do Retiro dos Artistas.
Mas muitos continuam se manifestando contra o governo, como ocorreu recentemente no Festival de Berlim.
Artista sempre fez manifesto e eles devem continuar se manifestando. Isso é uma demonstração do regime democrático em que estamos vivendo. Eu lutei muito tempo durante a ditadura para que os brasileiros pudessem exercer na plenitude esses direitos.
Seu antecessor no ministério da Cultura, Marcelo Calero, caiu após um atrito com outro ministro, Geddel Vieira Filho. Esse é um campo minado?
Eu não diria que seja um campo minado. Após o impeachment houve problemas em todos os ministérios. O partido que saiu do governo havia aparelhado todo o Estado brasileiro. O que acontece no Ministério da Cultura é que aqui você tem pessoas de grande expressão na sociedade, celebridades, e isso tem uma maior repercussão. Mas havia dentro do ministério áreas em que a partidarização foi mais evidente.
Por exemplo?
Os pontos de cultura, cujas prestações de conta eram desastrosas. Estamos regularizando, corrigindo distorções. Foram recursos para, vamos supor, 200, quando apenas 20 haviam sido construídos ou conveniados. Existem alguns que são importantes, que devem continuar, mas não vamos mais admitir essa frouxidão com os recursos transferidos, porque é dinheiro público, tem que ser bem fiscalizado. Estamos conversando sobre como vamos superar esses problemas.
Qual sua opinião sobre a CPI da Lei Rouanet, principal fonte de recursos para o fomento à cultura?
Como parlamentar, entendo a importância da CPI enquanto instrumento do Poder Legislativo para fiscalizar o Executivo. A Comissão Parlamentar de Inquérito pode contribuir inclusive para aprimorar a legislação, uma vez que hoje o papel de investigar e indiciar cabe ao Ministério Público e à Polícia Federal, que criou a operação Boca Livre para averiguar desvios no âmbito da Lei Rouanet.
Em que aspectos a lei poderia ser aperfeiçoada?
Neste momento estamos fazendo uma mudança que não altera a lei, mas sim a tramitação dos projetos que buscam se beneficiar da renúncia fiscal. O que estamos discutindo é a criação de alguns mecanismos de análise desses projetos, que visam coibir distorções. Por exemplo, evitar a concentração de recursos da renúncia fiscal tanto nos projetos quanto em certas regiões do País. Isso irá tornar a aplicação da lei mais democrática, transparente, com maior controle e de modo que não sofra só a influência do mercado. A lei existe para ser aplicada em todo o País. Se há problemas para que ela se aplique em algumas as regiões, vamos criar mecanismos para a superação desses obstáculos.
Como isso será feito?
Com a fixação de tetos por projeto e por patrocinador — exceto nos casos em que a lei determina que os valores sejam mais altos em virtude da natureza do que é proposto, caso da reforma de um teatro, por exemplo. Se eu fixo um teto, estimulo que outros projetos sejam beneficiados. O patrocinador que quiser investir além desses limites poderá fazê-lo, desde que em outras regiões.
O que está sendo feito quanto às contas cuja prestação ainda está em aberto?
Temos quase 20 mil projetos sem prestação de contas, uma situação que eu considero que cria insegurança jurídica não só para o patrocinador como para os artistas. Criamos uma força-tarefa e o Ministério do Planejamento autorizou a contratação temporária de 148 servidores para darem conta desse estoque.
O senhor participou dos governos de dois vice-presidentes que assumiram após processos de impeachment: Itamar Franco e Michel Temer. Quais as semelhanças e diferenças entre os dois?
Curiosamente, ambos governos de transição, ambos reformistas. Itamar fez muito bem para o Brasil. Ele assumiu após dois anos de um governo que não tinha a menor base de sustentação. Collor era um “outsider” na campanha e continuou assim na presidência. O impeachment da presidente Dilma Rousseff se deu após o partido ter permanecido por pelo menos 12 anos no governo e com representatividade. Outra diferença que talvez não fique muito evidente é que a crise deflagrada no governo Collor, tanto econômica quanto no que se refere à corrupção, foi incomparavelmente menor do que a que nos foi legada por Lula, Dilma e o PT. Temer assumiu em um momento no qual a sociedade não permitiria aumento de impostos. Como o ajuste fiscal era necessário, o caminho foi cortar despesas, limitando o teto de gastos para promover o crescimento econômico. Temer está enfrentando questões que todos os governos anteriores tentaram e não conseguiram.
Mas a aprovação do governo Temer se mantém baixa.
Temer assumiu sem nenhuma grande aprovação, em plena crise. Havendo sinais positivos na economia, saindo da recessão e retomando o crescimento, o governo poderá ter ao final uma boa avaliação, mesmo adotando medidas duras. Lembre que o governo Temer é fruto do impeachment, veio por força constitucional, em respeito à continuidade do processo democrático.
Nesse contexto de corte de despesas, quais os projetos prioritários para o MinC?
Além de manter funcionando o que é preciso, como os museus e as bibliotecas, nós vamos retomar dois projetos que haviam sido descontinuados: o Pixinguinha, de incentivo à música popular, e o Mambembão, voltado para as artes cênicas, o que contempla teatro, dança e circo.
Como o senhor avalia a esquerda no Brasil hoje?
Está em profunda crise, por ter perdido a sua utopia. A derrota da experiência do socialismo real atingiu toda a esquerda. Algumas se recuperaram, mas sem grande consistência. Onde a esquerda passou a ser mais forte? No mundo mais atrasado. Grande parte da esquerda continua prisioneira do passado, não entendeu sua derrota. É o caso da Venezuela, de Cuba. Aquilo não tem futuro, a história já demonstrou. O que não significa dizer que a esquerda não tenha futuro. Claro que tem.
Qual o futuro da esquerda?
Estou tentando fazer com que ela continue existindo. Uma esquerda democrática, que não se envolva com corrupção, que tenha espírito público, republicano — que nós não tivemos. A gente pode ter cometido todos os erros, mas nunca nos envolvemos com a corrupção. Essa pelo menos é a história do velho Partidão (Partido Comunista Brasileiro).
Alguma chance de reverter essa percepção até 2018?
Estamos trabalhando para construir uma alternativa. Na minha longa experiência de luta política eu vi em poucas oportunidades uma exacerbação anticomunista tão grande — o que não faz muito sentido, porque chamam de comunista gente que nunca foi. A sociedade não pode imaginar que a esquerda é o que foi o governo do PT. Esse foi um governo que desde o começo não respeitou o relacionamento democrático, tentando cooptar adesões na base do dinheiro e tratando o estado como se fosse a Cosa Nostra.
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