"Nem tem vagina": tão comum quanto ruivos, bebê intersexo pena em hospital "Nem tem vagina": tão comum quanto ruivos, bebê intersexo pena em hospital.


"Nem tem vagina": tão comum quanto ruivos, bebê intersexo pena em hospital

Arquivo pessoal
Thaís com o marido e seu filho JacobyImagem: Arquivo pessoal


Luiza Souto
Da Universa
27/06/2019 04h00 Erramos: este conteúdo foi alterado

Até a filha única da cabeleireira e maquiadora Eliane Garcia da Rosa, 35, nascer sem a vagina, com metade dos testículos e dois úteros, a gaúcha nunca tinha ouvido falar no que seria uma pessoa intersexual. E seguiu por um bom tempo nesses três últimos anos sem saber direito o significado dessa condição: um urologista que atendeu a menina optou por retirar seus testículos sem ao menos explicar para a mãe o que estava acontecendo.
Assim que a Manuelly nasceu, foi encaminhada para a UTI sem que Eliane pudesse compreender o que estava ocorrendo no primeiro momento. Ela conta à Universa que nada de errado fora constatado no pré-natal. Horas depois, a explicação: a menina tem extrofia vesical, uma malformação congênita em que a bexiga fica para fora do abdômen. Ninguém falou nada sobre o fato de a criança ter ou não vagina ou testículos. Encaminhada para especialistas, a criança passou por duas cirurgias de reconstrução do aparelho urinário e, nas palavras dela, o urologista "aproveitou para tirar o saco".
Ela pede reparação na Justiça contra o médico e o hospital, que é referência no Rio Grande do Sul, mas não quer identificá-lo na matéria. Alega medo.
"Nada falaram sobre seus órgãos. Hoje, nem vagina minha filha tem. O médico fez uma fenda, um buraco. E ainda não tirou um dos úteros", descreve.
Todos esses procedimentos para tentar corrigir a extrofia, acusa Eliane, renderam graves sequelas à menina, como infecções e incontinência urinária e fecal. Hoje, ela está em tratamento no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Manuelly usa cerca de 700 fraldas por mês, um gasto de cerca de mil reais. Abandonada pelo pai da criança, e sem poder trabalhar, a mãe sustenta a casa e paga os insumos e medicamentos com bazares beneficentes e doações.
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A maquiadora Eliane com sua filha Manuelly, de 3 anosImagem: Arquivo pessoal

Como é a pessoa intersexual

Até os dois meses de vida intrauterina, a genitália e as gônadas (glândulas sexuais) são idênticas. A partir da oitava semana de gestação, se o feto possuir testículo, ele produzirá hormônio masculino, e consequentemente desenvolverá pênis, uretra e bolsa escrotal. Mas se esse feto não produzir o hormônio masculino ou esse hormônio não agir como deveria, ele nascerá com a genitália incompleta. Então, desta forma, ele é identificado, na medicina, com "Anomalia da diferenciação sexual 46 XY" -- os homens são identificados como cariótipo XY e as mulheres, XX.
Agora um resumo menos técnico: por não serem exclusivamente masculinas ou femininas, essas pessoas são consideradas intersexuais. Elas podem ter, por exemplo, pênis e útero. Pesquisas apontam que há cerca de 1,7% pessoas intersexuais no mundo. Seria o mesmo número de pessoas ruivas no mundo. Ou seja: se você conhece alguém com cabelos vermelhos, provavelmente já topou com pessoa intersexual.

Como proceder

A orientação do CFM (Conselho Federal de Medicina) para pessoas com essa condição é que se reúna uma equipe multidisciplinar em torno da família -- psicólogo, geneticista, endocrinologista e cirurgião -- para uma investigação logo nos primeiros dias de vida, "com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil". Até essa definição, a criança não pode ser registrada. Por isso, a urgência.
Essa investigação inclui uma bateria de exames como os de imagem, para ver se a pessoa tem ou não útero, e o cariótipo, que é a leitura dos cromossomos (XX para mulher e XY para homem). A endocrinologista Berenice Bilharinho de Mendonça, do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), indica que esses exames podem durar semanas, e devem ser feitos em unidades hospitalares especializadas. Em São Paulo, os centros preparados são o HC, a Santa Casa, a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e USP de Ribeirão Preto.
Após os exames, explica Berenice, recomenda-se a cirurgia reparadora, que nada tem a ver com a de redesignação sexual, feita em pessoas transexuais:
"O transexual se identifica com o sexo diferente daquele que nasce. No caso das pessoas intersexuais, são alterações biológicas,
Há 40 anos trabalhando sobre o tema, a profissional defende a cirurgia o quanto antes, para evitar, por exemplo, que o paciente tenha dificuldades durante a relação sexual, quando adulto. Por ano, o HC atende, em média, 700 pessoas com estas características (100 casos novos por ano), e faz duas cirurgias por semana, seja inicial ou de retoque.

"Criança não faz sexo"

Mas não é consenso que se faça intervenções nesses casos. Há pais e médicos que defendem que se deixe a pessoa intersexual escolher o que ela quer para seu corpo, e brigam contra qualquer tipo de tratamento.
Caso da psicopedagoga e sexóloga Thaís Emília de Campos, 41. Ela descobriu a intersexualidade do filho numa ressonância fetal, em 2016 -- ele não tinha os testículos. Na época, o menino também foi diagnosticado com malformação cardíaca e cerebral.
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Jacoby, filho de Thaís, nasceu em 2016Imagem: Arquivo pessoal
Nada explicaram, porém, sobre a condição intersexual da criança, nem encaminharam a família para um serviço especializado. Thaís, no entanto, é atuante na educação inclusiva e sexual, e por conta própria levou a sua questão para debate com amigos pesquisadores e nas redes sociais. A partir desta atitude, ela conheceu ativistas intersexuais e, com base em leituras e relatos, confrontou os médicos:
"O urologista nos falou que ia fazer uma vagina no nosso filho, e pensamos que essa atitude estava ferindo o princípio da integridade física e psíquica dele, quando o certo seria esperar até sua puberdade para que ele decidisse sobre o seu corpo. Entendemos que, se a correção for só por estética, essa cirurgia pode até provocar danos à saúde, além de não respeitar a natureza da criança".
"Criança não faz sexo, então não precisa mexer na genitália do bebê. Isso pode ser feito mais tarde".
Por causa disso, Jacoby não foi registrado no cartório de imediato. Para que isso seja feito, o hospital deve emitir a declaração de nascido vivo. Um dos campos a serem preenchidos, porém, é o do sexo biológico. Sem saber como proceder, a unidade não disponibilizou esse documento:
"Entregaram um papel onde estava escrito que tive um bebê naquela maternidade, e que em 60 dias me dariam a documentação com o sexo que eles achavam que era o dele. Não dava para fazer a certidão de nascimento. Procurei a promotoria, mas o pessoal da área jurídica também não tem preparo para lidar com esse tema".
Em seu manual de instruções para o preenchimento da declaração de nascido vivo, o Ministério da Saúde determina: assinalar a alternativa "ignorado" em casos especiais como genitália indefinida ou anomalia congênita. Sem a certidão de nascimento, a pessoa fica sem direitos como cartão do SUS (documento necessário para vacinação, por exemplo) e auxílio-maternidade.
exame cariótipo realizado na criança ficou pronto em dois meses, e deu 46 XY, um menino. "Mas a gente deixou bem claro que a nossa decisão era a de que ele cresceria com esse corpo, independentemente do cariótipo".
Jacoby foi criado com brinquedos e roupas neutras. Ele faleceu em 2018, em decorrência de problemas cardíacos. Com a experiência, Thaís fundou a Abrai (Associação Brasileira de Intersexos), e atua também com as famílias atendidas na Unifesp.
Em 2015, a ONU se pronunciou em defesa das pessoas intersexuais e considerou intervenções e tratamentos médicos forçados, como hormonioterapias ou terapias de conversão, uma grave violação dos direitos humanos. Elas seriam consideradas análogas à tortura e aos maus-tratos.

"Achei a cara de menino"

Em alguns países como Canadá, Austrália e Nova Zelândia, o intersexo é considerado uma terceira opção de sexo biológico em certidões de nascimento. Por aqui, há um projeto de lei (PL 5255/2016) propondo o registro civil do recém-nascido como indefinido ou intersexo.
A Justiça vem recebendo alguns casos de troca de nome de crianças que nascem nessas condições. Ano passado, o advogado Charles Brasil saiu vitorioso de uma ação em que a acreana Maria Barbosa Lima, 47, pediu mudanças na certidão do filho Samuel Ravi, hoje com 4 anos.
A moradora do bairro Conquista passou toda a primeira e única gestação se preparando para receber uma menina, já que foi essa a imagem vista na ultrassonografia. Ouviu ainda do obstetra: "é uma menina grande", antes de ver a criança indo para a UTI. Mas aconteceu de novo: ninguém explicou o que estava acontecendo. Era fevereiro de 2015.
"Quando segurei meu filho, achei a cara de menino, mas não falei nada", ela conta.
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O filho de Maria: ela recorreu à Justiça para mudar o nome da criançaImagem: Arquivo pessoal
O bebê passou alguns dias em observação, sem que Maria pudesse trocar sua fralda. Quatro dias após seu nascimento, e com a declaração do hospital dizendo que ela era uma menina, a dona de casa registrou a criança como Luara Melissa.
Logo após esse dia, porém, Maria trocou a fralda do filho, e ali enxergou um pequeno pênis coberto pelos grandes lábios.
"Eu fui babá por 30 anos. Não tem como confundir com clitóris. Quando perguntei ao médico, ele falou que a vagina estava inchada. Mas eu insisti que era um menino e foi aí que ele usou a palavra 'hermafrodita' (esse termo está em desuso e é mencionado apenas para se referir aos animais e plantas). Contou também que estava esperando um geneticista para fazer exames nele", lembra Maria.
Numa ultrassonografia, foi constatada a ausência de útero, e a presença de próstata no bebê. Meses depois, o cariótipo constatou o cromossomo masculino. Maria não quis fazer intervenção cirúrgica na criança, mas pediu à Justiça a mudança do registro do filho. Segundo ela, o menino comportava-se de acordo com o seu sexo biológico. Mas enquanto aguardava a decisão, continuava chamando o garoto de Melissa ou Mel, e usava roupas identificadas como femininas para, na opinião dela, evitar constrangimentos em locais públicos.
"Quando meu filho fez dois anos, vivia dizendo: 'mamãe, não quero ser mulher'. E expliquei que ele era um homenzinho, mas que a mamãe foi enganada pelo médico. O registro novo chegou em 12 de junho de 2018, e ele pulou de alegria. Adorou o novo nome", conta Maria.
Charles Brasil, que é presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/AC, também apoia que a escolha pela cirurgia deva ser feita pela pessoa intersexual.
"Quando a medicina fala que tem que escolher o sexo biológico da criança, parece que as pessoas são um papel em branco, e não é assim. Fazer a cirurgia, seja para qualquer lado, não garante que essa criança vá se desenvolver dentro dessa realidade. Por isso, defendemos que se faça a intervenção somente se a criança correr o risco de morrer".
 Errata: o texto foi atualizado
Diferentemente do informado anteriormente, a proporção de pessoas intersexuais no mundo é de 2%, não de 1 em cada 16 mil ou 1 em cada 25 mil.

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