entrevista
"Rússia é hoje um ator que não se compara com China ou EUA"
Oliver
Stuenkel, especialista em Relações Internacionais brasileiro, esteve em
Lisboa a convite do ISCTE-IUL para falar da nova ordem mundial, com a
China a assumir um estatuto de grande potência graças à força da sua
economia, já a segunda do planeta
No
seu último livro, fala de uma nova ordem mundial, que já não é dominada
pelos Estados Unidos. É dominada por outra potência ou é, simplesmente,
multipolar?
É uma ordem
multipolar, porque a gente vem de uma ordem mais unipolar, na qual a
maior concentração de poder esteve nos Estados Unidos. Agora temos
outras potências emergindo mas, dessas, eu diria que a China é o
principal ator. Então, apesar de ser uma ordem multipolar, ela tem
características bipolares, na verdade, porque as duas grandes potências
serão, por um lado, os Estados Unidos, que se mantêm como grande
potência, mas, por outro lado, a China que, em breve, superará os
Estados Unidos como principal economia do mundo.
Mas não é uma ordem bipolar como a que existia na Guerra Fria: Estados Unidos versus União Soviética?
Não.
Não haverá um embate ideológico, porque a China não tem como objetivo
promover a sua própria ideologia. Acima de tudo, a ordem mudará porque o
centro económico estará na Ásia, já está na Ásia na verdade, e, com
isso, também o poder político, a capacidade da China e de outras
potências asiáticas influenciarem os outros politicamente aumentará
muito.
A China é claramente,
dos BRICS originais, um dos que mantém o fulgor. A Índia também.
Continua a fazer sentido falar dos BRIC? O próprio Jim O"Neill disse
que, um dia, devíamos falar só de IC, Índia e China, deixando cair os
outros.
É, a economia chinesa é
maior que a economia dos outros BRICS em conjunto. Então, claramente,
existe lá a China como a principal potência emergente. Os outros não se
comparam ainda, apesar de a Índia estar em torno de 20 anos atrás da
China, ou seja, daqui a 20 anos a gente terá outra grande potência. O
que prova também o quão grande será a Ásia, porque temos duas grandes
potências lá junto. O grupo faz muito sentido do ponto de vista
político, porque os outros querem ter acesso direto à China. Mas é
verdade que o fenómeno de deslocação de poder, acima de tudo, é
simbolizado pela Índia e pela China. Isso, sem dúvida.
A Rússia e o Brasil estão nos BRICS mas não têm o mesmo potencial que têm a Índia e a China?
Não,
certamente que não, também por questões demográficas, não é? Temos
praticamente metade da população mundial morando ou perto ou dentro da
Índia e da China - nessa região vive metade da população e, portanto, é
essa região de facto que será o novo centro económico do mundo. Devido
ao seu tamanho menor, a Rússia, a África do Sul e o Brasil certamente
não terão o mesmo potencial.
No
caso do Rússia, fala-se muito de voltar a ter ambições de
superpotência, nomeadamente com a forma como atua na Ucrânia, a
intervenção que faz na Síria, mas do ponto de vista de ordem mundial,
isto é significativo ou não?
Bom,
a Rússia, em si, é hoje um ator que não se compara com a China ou os
Estados Unidos em termos de importância. Mas eu acho que a Rússia
percebeu que, nesse processo de declínio relativo dos Estados Unidos,
abre-se um espaço para outras potências também, porque os Estados Unidos
claramente não têm mais a disposição para lidar com todos os desafios,
nem a capacidade de fazê-lo, não é? A gente vê a Síria, a Ucrânia,
vários outros desafios ao redor do mundo e, devido ao processo de
multipolarização, uma potência só não consegue mais lidar com os
desafios. É preciso incluir a China, inclusive, ou outras grandes
potências. Então, vejo a atuação russa mais como um sintoma de uma nova
estrutura que está emergindo agora. E ainda não está muito claro quem
vai cuidar de quais desafios, mas certamente o G7 - que antigamente
solucionava ou tentava solucionar grandes desafios - não consegue mais
fazer esse trabalho?
Falou do
declínio dos Estados Unidos. É relativo porque continuam a ter o maior
PIB e um orçamento militar muito superior mesmo ao da China. Acha que
estas eleições presidenciais podem acentuar esse declínio relativo, com
Donald Trump a ter até dúvidas sobre a NATO?
É
um sintoma também disso, porque o principal desafio dos Estados Unidos
agora é lidar com essa realidade de que dificilmente terão os
privilégios que tinham ao longo das últimas décadas. É impossível porque
há outras potências, como a China, que também vão querer isso e vão
disputar o lugar privilegiado dos Estados Unidos na ordem internacional.
Então, dificilmente os Estados Unidos conseguiriam, por exemplo,
invadir hoje o Iraque, sem de facto sofrerem sanções, sem ser criticados
duramente nas instituições. Ninguém, na época, pediu para se tirar os
Estados Unidos do G7, porque tinham uma posição central no sistema. Mas
agora, com a sua ascensão, a China vai também querer esses privilégios. A
gente viu isso quando a ONU condenou as atividades no mar do Sul da
China e a China não se importou muito.
Comportou-se como se comportavam os Estados Unidos antes.
Exatamente.
Está começando a pedir os mesmos privilégios e isso é extremamente
difícil. E é o grande desafio do próximo presidente americano: gerir a
ascensão de um outro ator que pede os mesmos direitos que os Estados
Unidos tinham e, até hoje, têm. Isso a gente percebe com uma certa
naturalidade, porque os Estados Unidos têm tido um papel de ordenar a
ordem internacional, com todo o custo que isso envolve. Há um quarto de
milhão de soldados americanos em bases militares mundo fora, mantendo
uma certa estabilidade, mas isso também dava direitos a, quando preciso,
violar algumas regras. E isso agora não é mais possível, porque o
primeiro lugar onde a gente vai ver isso é na vizinhança da China, onde
esta cada vez menos aceitará uma presença hegemónica dos Estados Unidos.
E há possibilidade de haver confronto, se isso for mal gerido?
Sim,
se for mal gerido, certamente. Mas a China não é uma potência
revolucionária no sentido de querer mudar as regras. Os políticos em
Pequim têm uma noção muito clara de que as regras atuais beneficiam
muito a economia chinesa - a abertura comercial, etc. Então há pouco o
desejo de alterar isso. O que, sim, a China quer é ter um status mais
privilegiado, que, por exemplo, lhe daria o papel de potência hegemónica
na Ásia. A grande questão, para o próximo presidente dos Estados
Unidos, é até que ponto vai ceder a vizinhança da China a Pequim.
Obviamente, vai haver resistência no Japão e no Vietname, que são
aliados dos Estados Unidos. Um ponto importante nisso tudo é que há uma
tensão, porque, do ponto de vista dos Estados Unidos, a China é uma
potência emergente, mas, do ponto de vista chinês, a China apenas volta
ao lugar que lhe pertence. A China só deixou de ser a principal economia
do mundo em 1870. Então, para ela, ela apenas está superando uma
aberração histórica que ocorreu devido à ascensão precoce do Ocidente.
Então, aí, eu acho que a gente vai ter uma tensão de como estas duas
potências se acomodam, visto que cada um deles se enxerga como única e
especial.
Esta nova ordem
mundial passa pela disputa da Ásia. Isso, significa, por exemplo, que a
União Europeia, apesar de ser um bloco com grandes potências, é um ator
menor na ordem internacional?
Bom,
é interessante porque hoje mais de 130 países do mundo têm a China como
principal parceiro comercial. Cada vez menos os Estados Unidos se
apresentam como o parceiro principal. É o caso do Brasil, por exemplo.
Porém, se a gente pegar a União Europeia como uma economia só, ela seria
o principal parceiro comercial de muitos países, incluindo o Brasil.
Isso depende muito da capacidade da União Europeia de se integrar.
Porque se a União Europeia pudesse, em algum momento, no futuro, atuar
como um bloco e ter uma política externa coesa, aí, sim, seria um ator,
por muitos anos, de destaque internacional, inclusive com a capacidade
de se comparar com a China ou os Estados Unidos. Hoje isso não funciona
porque, no fundo, não é um ator só; são muitos atores que, inclusive, se
contradizem e há muita briga interna.
E a saída do Reino Unido mostra como essa coesão é mínima.
Enfraquece,
obviamente, essa capacidade. Então, nesse sentido, do jeito que está
hoje, certamente a União Europeia será um ator menor nessa briga dos
grandes.
No tempo de Lula o
Brasil era visto como uma grande potência emergente; no último ano de
presidência de Lula da Silva, o crescimento económico foi 7,5%; depois
veio Dilma Rousseff e a economia começou a desacelerar e o país está em
recessão e até destituiu a presidente. O Brasil tem capacidade, com
Michel Temer ou quem quer que seja que venha em 2018, de dar a volta por
cima?
Um elemento importante
que explica a ascensão brasileira na época de Lula foi, precisamente, a
procura chinesa por commodities brasileiras. O Brasil não iniciou ou
implementou as reformas necessárias, à época, porque era uma época de
crescimento e, então, ninguém queria saber de se preparar para os anos
de vacas magras. E a procura chinesa mudou - agora há uma procura menor,
o que é fundamental para entender a crise brasileira atual. Acho que
também representa, um pouco, esse novo mundo atual, no qual a situação
económica na China determina o bem-estar não só económico, mas político
de outros países. É que a crise brasileira política, explica-se pela
crise económica, acima de tudo. O novo governo tem pouquíssimo tempo. No
fundo, tem menos de 12 meses para governar de verdade porque, vários
meses antes da eleição de outubro de 2018, os principais atores deixarão
o governo para concorrer já como candidatos. Então é um tempo
brevíssimo. Não conseguirá, certamente, consertar todos problemas que
existem e vai-se concentrar em alguns problemas, como o teto de gastos,
que está sendo discutido atualmente. Eu não acredito que a gente vá ver
grandes reformas, como, por exemplo, a reforma do sistema político, a
reforma da previdência, que provavelmente ficarão para o próximo
governo. Então, Temer, se for um sucesso, tirará o "paciente" dos
cuidados intensivos mas continuará no hospital, ou seja, continuará
sendo um caso problemático. Acredito que o próximo presidente que vai se
eleger em 2018 terá de lidar, ainda, com as sequelas que essa crise
deixou.
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