A mulher que livrou a si mesma e a centenas de pessoas do corredor da morte
Questionada se confessou o assassinato de seu parceiro - como relatou a mídia local - ela responde calmamente.
"Não, querida." Ela ouviu essa pergunta vezes demais para ficar ofendida. "Vou te contar minha verdade."
Kigula nasceu na região central de Uganda, onde a atividade principal é a criação de gado.
"Eu cresci sendo a filhinha do papai", conta ela. "Eu dizia para ele que queria trabalhar em um banco, porque me parecia um bom trabalho. E eu seria forte e independente se tivesse um trabalho. Eu sonhava muito com o futuro, porque meus pais me fizeram acreditar que todos os meus sonhos poderiam se tornam realidade."
Kigula e seus três irmãos tiveram uma infância segura de classe média, em uma comunidade religiosa pequena e muito unida. As crianças brincavam no campo à tarde e jantavam com os pais à noite.
"Minha infância feliz não me preparou para o que viria na vida adulta", conta.
Kigula trabalhava em uma lojinha de presentes em Kampala, na capital no país, quando conheceu Constantine Sseremba. Aos 28 anos, ele era dez anos mais velho que ela.
Os dois começaram a namorar e foram morar juntos. A casa era pequena, de dois cômodos, mas Kigula diz que era ideal para a família. Sseremba tinha um filho de outro relacionamento e logo o casal teve uma filha.
"Nós nos amávamos muito", diz ela. "As pessoas brincavam que éramos gêmeos, porque estávamos sempre em sintonia. Não éramos ricos, mas éramos felizes por termos um ao outro."
Em 9 de julho de 2000, a vida da Kigula mudaria para sempre.
A família jantou junto, como fazia todas as noites. Kigula, Sseremba e as duas crianças foram para a cama. Todos dormiam no único quarto do apartamento. A empregada da família, Patience Nansamba, dormia em um colchão na sala.
Kigula diz que acordou de madrugada ao sentir a nuca ser perfurada por um golpe rápido.
"Senti sangue quente saindo de uma ferida na nuca. Os lençóis estavam ensopados de sangue, que não era só meu."
"As luzes estavam apagadas, então eu não consegui ver o que estava acontecendo imediatamente."
Kigula conta que sentou na cama, confusa, ao mesmo tempo em que uma luz das lanternas de segurança acendiam do lado de fora e iluminavam parte do quarto.
"As crianças não tinham sido machucadas. Estavam acordadas e chorando. Constantine estava no chão, gemendo. Seu pescoço estava cortado", diz ela.
"Tudo estava acontecendo muito rápido. A empregada, Patience, entrou no quarto dizendo que viu duas pessoas saírem correndo do apartamento segundos antes."
"Minha visão estava turva e eu não conseguia andar direito, mas consegui sair e pedir ajuda aos vizinhos. Me enrolaram em um cobertor - eu não tinha percebido que saí da casa nua."
Kigula ainda estava sangrando pelo pescoço e acabou desmaiando.
Ela acordou horas depois, em um hospital. A ferida em seu pescoço ainda doía quando lhe contaram que seu parceiro havia morrido. Sua família estava cuidando de sua filha de um ano, Namata, e os pais de Sseremba - com quem ela tinha uma relação fria e distante - tinham levado o filho dele, de três anos, para a casa deles.
Ela percebeu que até aquele momento, tinha vivido uma vida feliz: uma infância alegre, um relacionamento bem sucedido, um bom trabalho. Agora tudo isso estava perdido, ela pensou.
O pai de Kigula a avisou que as famílias tinham organizado o funeral de Sseremba para o dia seguinda.
"Eu não conseguia entender o que tinha acontecido ou o porquê. Quem quer que tivesse nos atacado tinha ambos como alvo. Quem poderia querer ver eu e Constantine mortos? Pensei muito sobre isso. Ainda me incomoda", conta ela.
Não havia uma motivo óbvio para o ataque. Nada havia sido roubado.
Depois do funeral, Kigula estava voltando do hospital quando ouviu uma notícia no rádio que a fez congelar. O locutor anunciava que Constantine Sseremba e sua mulher de 21 anos, Susan Kigula, tinham sido assassinados em uma tentativa de roubo.
"Eu pensei: 'Meu Deus, a pessoa que tentou nos matar já tinha encomendado um obituário duplo, assumindo que nós dois estaríamos mortos'."
Então, três dias depois, Kigula, recebeu uma visita da polícia. Ela ainda estava recebendo tratamento por conta do machucado no pescoço. Para sua surpresa, eles a acusaram de homicídio e a levaram para uma prisão de segurança máxima próximo a Kampala, para esperar o julgamento.
A família de Sseremba disse que o filho dele tinha visto Kigula e a empregada matando o seu pai.
"Eu fui ingênua naquele momento", diz ela. "Eu pensei que era óbvio que tudo aquilo era um engano. O menino estava traumatizado e confuso. Eu era inocente e me parecia claro que as pessoas iriam ver isso. Não tinha ideia de como o sistema jurídico funcionava."
Ela não contratou um advogado. Não tinha condições de pagar por um e, de qualquer forma, confiava na Justiça.
Dois anos depois, Susan Kigula and Patience Nansamba foram condenadas pelo assassinato de Constantine Sseremba - com base na testemunha do filho de Sseremba, então com cinco anos. A polícia também disse que um facão ensaguentado encontrado no apartamento pertencia a Kigula.
A condenação veio com uma sentença de pena de morte. As mulheres foram avisadas que o método seria enforcamento.
Kigula olhou para sua filha, então com três anos, sentada junto a seus pais, e caiu no choro.
Encontro
Depois de três anos no corredor da morte, em 2005, Susan Kigula conheceu o jovem estudante britânico Alexander McLean.
McLean tinha fundado o projeto African Prisons (Prisões Africanas), por meio do qual arrecadou dinheiro para criar instalações médicas para uso de prisioneiros em Uganda.
Kigula começou a trabalhar como sua tradutora e o impressionou desde o início.
Nessa época, Kigula já estava presa há 5 anos.
"Eu acordava todos os dias pensando: 'É hoje que serei enforcada'", diz ela.
Questionada sobre as condições no presídio, sua resposta é pouco emotiva.
"Prisão é prisão", diz ela, sem explicar.
A jovem dividia uma cela construída para uma pessoa com outras três mulheres. Elas usavam um balde como banheiro.
Um relatório sobre prisões ugandenses de 2011, feito pela organização internacional Human Rights Watch, dizia que os prisioneiros dormiam de lado, tão próximos que não conseguiam mudar de posição. Eles eram confinados em solitárias, frequentemente nus, algemados, e às vezes passavam fome. As celas às vezes ficavam alagadas, com águas na altura do calcanhar.
Kigula não gosta de falar sobre essas coisas. Mas é ávida para contar a história de como obteve sua liberdade.
Tomar uma atitude
Nas primeiras semanas na prisão, Kigula, então com 24 anos, e as outras 50 mulheres em sua seção conversavam umas com as outras sobre a morte iminente e sobre quem cuidaria de seus filhos.
"Conforme conhecia as mulheres, percebi que muitas, como eu, tinham sido falsamente acusadas. Algumas eram culpadas, mas nenhuma delas merecia pena de morte pelos crimes que cometeram. Alguns eram resultado de anos de abuso físico e sexual que sofriam dos parceiros", conta Kigula.
"Me tornei uma liderança entre as prisioneiras. Precisávamos fazer alguma coisa. Eu comecei perdoando as pessoas que me colocaram na prisão. E depois comecei a por a mão na massa."
Kigula criou um coral, escreveu músicas, começou a fazer esportes e criou um grupo de dança na prisão. Para manter-se animada, passava mais tempo com as prisioneiras que tinham menos pensamentos negativos.
Ela descobriu que os prisioneiros homens tinham acesso à educação, enquanto as mulheres, não. Ela pediu à administração para que um pequeno grupo delas pudesse ter aulas de História, Economia, Teologia e Administração. Os responsáveis pela prisão questionaram como ela iria viabilizar uma escola sem professores.
"Vou começar sendo a professora", ela respondeu.
Elas usavam material didático doado e recebiam notas de estudo da ala masculina. Tinham as aulas sob a copa de árvores.
Quando os carcereiros viram que a jovem era dedicada, eles ampliaram os recursos e permitiram um número maior de aulas. Kigula e algumas de suas amigas eram as professoras.
Ela diz que uma das pessoas que mais a incentiveram foi Alexander McLean, do projeto African Prisons.
"Eu vi o quanto Susan era dinâmica. Ela mobilizava e motivava as pessoas", diz McLean.
O jovem britânico vinha trabalhando com autoridades em Uganda para tentar melhorar as condições não apenas da enfermaria, mas das prisões como um todo. Sua ONG patrocionou atividades esportivas, organizou grupos de leitura para mães e bebês e instituiu aulas de alfabetização de adultos.
Kigula começou a agir como intermediária entre a entidade e administração da prisão em um projeto para criar uma biblioteca no presídio.
Em 2011, ela e um grupo de outras prisioneiras, com apoio do African Prisons, se tornaram as primeiras prisioneiras ugandenses a fazer um curso por correspondência na Universidade de Londres, estudando Direito.
O projeto foi um grande sucesso. Com o passar do tempo, até os carcereiros passaram a pedir conselhos legais a Kigula.
Ela então começou a tocar uma espécie de escritório de advocacia informal na prisão - ajudava prisioneiras com pedidos de fiança, escrevia pedidos de recursos e as ensinava como representarem a si mesmas na corte - caso não pudessem pagar por um advogado. Ela ajudou dezenas de colegas a sair da prisão.
Mudar o país todo
Encorajada por seu sucesso acadêmico, ela decidiu, mesmo sem ainda ter o diploma, organizar pessoas para entrar com um pedido questionando a pena de morte obrigatória para certos crimes.
"A população de Uganda normalmente é muito conservadora e relutante ao que pode ser visto como um 'afrouxamento' da lei", diz McLean.
O caso coletivo de Susan Kigula e outras 417 pessoas contra a União é um caso emblemático. O objetivo do processo era acabar com a pena de morte, declarando-a inconstitucional.
Quando a Suprema Corte de Uganda chegou a uma decisão, em janeiro de 2009, a pena de morte não foi abolida. No entanto, a Corte determinou que a pena não deveria ser obrigatória em casos de homicídio, e que uma pessoa condenada não deveria ficar no corredor da morte indefinidamente. Se uma pessoa condenada não fosse executada em três anos, a sentença automaticamente se transformaria em prisão perpétua.
E, diante das mudanças, a corte determinou que pessoas no corredor da morte poderiam ter direito a um novo julgamento.
Nova sentença
Kigula teve um novo julgamento em novembro de 2011.
Dianta da corte pela segunda vez, ela também reencontrou o enteado, agora com 14 anos. Sentindo todo o peso de 11 anos no corredor da morte desabar de uma vez sobre sua cabeça, ela começou a chorar e disse a ele: "Você não sabe que eu te amo? Sou sua mãe!".
E, se voltando para a família de seu falecido companheiro, ela disse: "Sinto muito".
A imprensa local descreveu o episódio como se fosse uma cena de novela - uma confissão de um crime horrível. No entanto, diz Kigula, não era isso que ela queria dizer.
"Os jornais mentiram", diz ela.
Segundo ela, foi uma expressão de tristeza por tudo o que seu enteado havia passado. Kigula se declarou inocente pela segunda vez, mas a corte - e a mídia - não estavam convencidos.
A Suprema Corte reduziu a senteça de Kigula para 20 anos. Descontado o tempo em que ela ficou presa preventivamente, sua pena terminou em 2016 e ela foi solta.
Liberdade
Ela diz que foi como estar em um mundo novo, completamente diferente.
"Foi como ir à Lua! Eu não podia acreditar no que estava acontecendo comigo", diz ela
Seu pai tinha morrido enquanto ela estava na prisão e sua mãe foi morta em um acidente de carro apenas dois meses antes de sua libertação.
Kigula começou a traçar novos objetivos. Ela queria que as autoridades reduzissem a sentença das outras 417 pessoas que fizeram o pedido para a mudança de legislação no país. Embora dezenas tenham sido libertadas, como ela, algumas ainda estão atrás das grades.
Trabalhando com Alexander McLean no African Prisons, Kigula quer criar a primeira escola de Direito do mundo funcionando em uma prisão - e o primeiro escritório de advocacia. A ideia é que prisioneiros formados ajudem os colegas que não podem pagar por representação legal.
"A esperança é criar uma nova geração de advogados que siga os passos de Susan", diz McLean.
"A Justiça em Uganda não é igual à do Reino Unido", afirma ele. "As pessoas podem ser presas por serem gays. Mulheres estão no corredor da morte por não conseguirem ajuda médica para os filhos em áreas rurais, ou porque seus maridos cometeram crimes e não podem ser encontrados."
"Claro que há pessoas culpadas na prisão. Mas nós acreditamos que todo mundo tem o direito a um julgamento justo. E de uma segunda chance de ser útil à sociedade. Susan sempre se declarou inocente e quer uma chance de servir a sociedade."
Depois de libertada, Kigula foi morar com a irmã e com a filha, hoje com 19 anos.
"Minha filha diz que eu sou uma heroína. Era tudo o que eu precisava ouvir depois de 16 anos longe dela."
A vida voltou a ser boa, diz ela.
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