Anistia Internacional ao Favela 247: Ferguson é aqui
"O assassinato de Michael Brown em agosto ocorreu num subúrbio negro e pobre. O mesmo acontece todos os dias no Brasil", disse ao Favela 247 o diretor executivo da Anistia Internacional Brasil Átila Roque, sobre a tragédia de Ferguson, nos EUA, que levou milhares de americanos às ruas; ele fala sobre a campanha "Jovem Negro Vivo", que divulga números absurdos da violência no Brasil; "Nós estamos falando num patamar que é quase de extermínio em massa, são 30 mil jovens entre 14 e 24 anos que morrem todos os anos, e destes 77% são negros"; ele ressalta que temos números e informações conhecidos há pelo menos três décadas, mas "é como se o Brasil escolhesse entre quais mortes se importar" 6 de Novembro de 2014 às 19:18No dia 9 deste mês a Anistia Internacional lançou a campanha "Jovem Negro Vivo", com o objetivo de alertar a sociedade dos números absurdos da violência no Brasil. Segundo a pesquisa "Mapa da Violência: Os jovens do Brasil", divulgada este ano, foram contabilizados 56 mil homicídios em 2012, dos quais mais de 50% das vítimas eram jovens com idade entre 15 e 29 anos. 77% dos assassinados eram negros, jovens, e em sua maioria, pobres. O Favela 247 conversou com Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil, sobre esses dados e sobre a comoção social nos Estados Unidos, antes, em agosto, pelo assassinato do jovem negro Michael Brown pela polícia de Ferguson, no estado do Missouri; e agora, pela absolvição do policial que efetuou o disparo. Leia abaixo na íntegra.
O policial estadunidense que assassinou o jovem negro Michael Brown foi absolvido pelo júri. Isso causou uma grande revolta popular, e há protestos em centenas de cidades. Há algum paralelo entro o que acontece nos EUA e no Brasil?
O assassinato de Michael Brown em agosto ocorreu num subúrbio negro e pobre. O mesmo acontece todos os dias no Brasil. Os jovens negros são os mais afetados pela violência e sabemos que uma parte destes homicídios é decorrente de intervenção policial. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil há uma herança de exclusão social e discriminação associada à juventude negra, que deve ser amplamente discutida e repudiada. A diferença é que no caso dos Estados Unidos, a morte desse jovem pela polícia provocou comoção e revolta, enquanto no Brasil raramente chega sequer às páginas secundárias dos jornais e a sociedade convive com isso como se a morte violenta fosse o destino inevitável desses jovens.
Quando mortes como a de Amarildo (que desapareceu no Rio depois de ser detido por policiais), de Claudia (atingida por tiros de PMs e depois arrastada por um carro da polícia) e do dançarino DG causarão a mesma comoção nacional no Brasil que a de Brown nos EUA?
É preciso romper com uma espécie de pacto de silêncio que se estabeleceu em relação a essas mortes, com raras exceções. A indiferença da sociedade com tantas vidas perdidas é uma das nossas maiores vergonhas. Todas as mortes representam uma tragédia e uma perda irreversível. A sociedade tem um papel estratégico na pressão para que esta realidade mude.
No Brasil temos uma cultura de naturalização dos absurdos. O racismo, a desigualdade social, e também esse número inaceitável de jovens negros mortos anualmente. Essa naturalização é uma especificidade da cultura brasileira?
Não diria que é uma especificidade brasileira, mas no Brasil ela se revela de uma forma muito dramática, pois estamos falando de números, informações e dados que são conhecidos há pelo menos três décadas. Nós temos dados sobre homicídios desde 1981, dados recolhidos pelo Sistema Nacional de Saúde, o Datasus.
O que acontece hoje é como se o Brasil escolhesse seletivamente entre quais mortes se importar. Se importa com algumas e não se importa com outras. Mas nós estamos falando num patamar que é quase de extermínio em massa, são 30 mil jovens entre 15 e 29 anos que morrem todos os anos, e destes 77% são negros. Só pra você ter uma ideia, é como se caísse um avião cheio de adolescentes e jovens, de 14 a 24 anos, a cada dois dias. Você imagina cair um avião, da TAM, da GOL, a cada dois dias, lotado de jovens e ninguém falar nada?
Esse números me parecem comparáveis com os de Estados em guerra
A soma dos dados de 2007 das mortes na guerras no Iraque com os da guerra no Afeganistão é menor do que o número de mortes em homicídios no Brasil durante o mesmo ano. Vivemos uma situação que coloca em questão isso que você chamou de naturalização, que coloca em questão: Qual sociedade nós estamos construindo? Um sociedade que uma parte enorme da população é vista como “matável”, como pessoas que nós podemos suspender seus direitos e achar que podem morrer, que estão destinadas a morrer. Essa ação da Anistia está querendo antes de mais nada tentar romper com essa muralha de indiferença, com essa barreira de silêncio que se constituiu ao longo do tempo em torno desse tema. Porque eu não acredito que as pessoas de fato estão confortáveis com isso. Acho que elas estão anestesiadas.
Qual é o papel da imprensa nisso tudo?
A imprensa tem um papel fundamental porque, de certa maneira, participa da invisibilização. Quando deixa de ser notícia o extermínio de jovens quase crianças, quando isso passa a ser um pé de página no noticiário da grande imprensa, é um sinal de que nós estamos, como sociedade, doentes. Acho que não se trata de responsabilizar apenas a imprensa em relação a isso, a sociedade não está cobrando isso daqueles que têm poder, entre eles a imprensa. É isso o que precisamos romper: esse sentimento de indiferença.
Mesmo dentro do aparelho repressor do Estado, a polícia, há jovens negros e pobres que participam ativamente dessa estrutura de morte.
Infelizmente nossa estrutura de segurança pública está voltada a combater um inimigo interno. É como se nós tivéssemos vivendo uma situação de guerra, em que os territórios – objeto dessa guerra –, são onde vivem a maior parte dessa população pobre, negra e jovem. E é uma tragédia isso, porque nós acabamos trabalhando o tema da segurança como se fosse um sistema voltado pro controle e repressão, e não um sistema que deveria estar voltado para a garantia e afirmação dos Direitos, e antes de mais nada do Direito à Vida. É preciso que se diga: se olharmos de uma forma integral, a polícia acaba sendo algoz dessa vitimização de jovens negros, mas de certa maneira também vítima, porque o número de policiais que morrem nessa guerra é muito alto. E são policiais jovens, são policiais em sua grande maioria negros. São meninos e tem algumas meninas que estão também perdendo sua vida numa guerra sem sentido.
Isso não seria um resultado da guerra às drogas?
Exatamente, o que é um absurdo. Acredito que temos de repensar o lugar da polícia, repensar o tema da militarização. Por que nós temos uma polícia com um grau de militarização tão alto? Isso é um resquício de um modo de ver a segurança pública que transforma o cidadão em inimigo.
É uma lógica da Polícia Militar, mas que contamina toda a estrutura da polícia. Mesmo a Polícia Civil tem uma lógica de combate ao crime que é ancorada na ideia da guerra. A militarização transcende a forma institucional da Polícia Militar.
Já na história da criação da Polícia Militar há uma lógica de proteger uma classe e segregar a outra.
Isso está arraigado na história do Brasil, nas nossas instituições, e polícia não é exceção. Elas estão organizadas para proteger quem tem a propriedade, e no caso da polícia, ela presta mais atenção a isso do que à defesa da vida.
Isso faz parte de uma arquitetura da exclusão do negro e do pobre?
Arquitetura da exclusão, do silenciamento, da invisibilidade, e da impunidade, que talvez seja o que está por detrás disso tudo. O grau de impunidade que perpassa a Justiça brasileira é muito alto, e essa impunidade é seletiva, ela não é uma impunidade que atinge a todos da mesma maneira. Ela é impune em relação a alguns crimes e não a outros.
A Anistia Internacional está fazendo a campanha “Jovem Negro Vivo”, para tentar mostrar o absurdo desses números. Quais ações que a sociedade deveria fazer para mudar esse quadro?
Uma forma de pensar a situação que estamos vivendo hoje, em especial ao homicídio de jovens, é pensar o que nós fizemos na década de 1990 com a fome e a miséria. Nós transformamos a fome e a miséria em um campanha. Nós tínhamos um herói civil, o Betinho de Souza, que colocou na agenda pública o tema da fome. E o Brasil saiu do mapa da fome. O que nós queremos de fato é que agora o Brasil saia do mapa dos homicídios.
Já no início do governo Lula houve o programa Fome Zero, que posteriormente cresceu o virou o Bolsa Família. Para eles existirem foi necessário vontade política. Há hoje vontade política para reduzir o número de jovens negros e pobres assassinados?
Teve um vontade política que foi primeiro um impulso vindo da sociedade, que forçou o governo a priorizar políticas com extensão efetiva à questão da fome, a questão da miséria e a questão da pobreza. O que nós queremos é ver a mesma coisa em relação aos homicídios. Precisamos de uma política de redução de homicídios que seja efetivamente prioridade nacional, que integre as diferentes instâncias do poder público federal, estadual e municipal. Que invista recursos. Eu acho que necessariamente começa com o poder central. O poder federal precisa sinalizar que isso é prioridade efetiva. Mas não é só o poder federal, envolve a Esplanada dos Ministérios e toda a sociedade. E as outras instâncias do poder público que se mobilizem pra isso.
Hoje nós até temos políticas pontuais que são exemplares, mesmo na esfera federal, se você pensar um programa como o Juventude Viva. Ele, no seu desenho, é um programa meritório, é um programa bonito, que pensa o tema da redução de homicídios a partir de umas perspectiva interessante. Mas ele não tem escala, não tem recurso, não tem priorização. É isso o que queremos: que isso vire o objetivo nº 1. O nosso objetivo nº 1 não é controlar a inflação, é reduzir a morte dos nossos jovens, acho que essa é a prioridade. É isso que deveria estar todos os dias na primeira página de todos os jornais. De novo, você pensa um avião caindo a cada dois dias. Você imagina se cai um avião a cada dois dias e não é notícia? E é isso o que está acontecendo: cai um avião a cada dois dias lotado de adolescentes e jovens, de 15 a 29 anos, e isso está acontecendo hoje, nesse momento em que estamos conversando. Por isso que eu não consigo ver outra prioridade pro Brasil que não seja a redução dessa tragédia social.
Você acredita que há espaço político para pressionar o Governo e o Congresso?
Acredito que o Brasil viva um momento muito instigante do ponto de vista da vitalidade cívica. As pessoas estão buscando alternativas, estão buscando outros espaços de participação, estão questionando as instituições, todas elas. Os partidos políticos, as ONGs, os movimentos organizados. Há uma fome por novas formas de intervenção. É uma oportunidade para enfrentarmos esses temas que foram silenciados. Eu sou um otimista, acredito muito no ser humano, na capacidade de nos indignar, de criar apatia, de sentir, de desenvolver um sentimento de solidariedade com o outro. É isso que estamos precisando: sair da nossa inércia, acordar de um estado de anestesia, para qual nós fomos de certa forma levados, e dizer que não em nosso nome. Isso não é possível de continuar.
O Projeto de Lei 4471/12, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), prevê a instauração de inquérito em todos os casos de mortes cometidas por policias, o que acabaria com os autos de resistência. O senhor acredita que se aprovado, esse PL ajudaria a reduzir o número de jovens assassinados no Brasil?
Sim, a Anistia Internacional se posiciona a favor deste PL. Os chamados “auto de resistência” funcionam quase como uma carta branca para matar, já que parte do pressuposto de que a morte foi resultado de um confronto. Sabemos que isso não corresponde à realidade. As taxas de homicídios da polícia no Brasil estão entre as mais elevadas do mundo. Isto é resultado de uma força policial militarizada, que vê os jovens, em especial os negros, como potenciais inimigos numa política de “guerra às drogas” que vem sendo questionada e abandonada em várias partes do mundo. A polícia brasileira mata muito, amparada por procedimentos legais que perpetuam a impunidade e a falta de controle externo e responsabilização. Cabe dizer que policiais – em serviço e fora dele – também são vítimas frequentes da violência letal. E isso também faz parte desse quadro trágico.
copiado http://www.brasil247.com
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