ONU e EUA. A relação agitada que Trump pode piorar A nova administração americana dá sinais contraditórios e preocupantes na política externa. A relação de Washington com a ONU não é tranquila há décadas, mas é cedo para saber se a rutura é o caminho. António Guterres não vai ter o


A nova administração americana dá sinais contraditórios e preocupantes na política externa. A relação de Washington com a ONU não é tranquila há décadas, mas é cedo para saber se a rutura é o caminho. António Guterres não vai ter o

ONU e EUA. A relação agitada que Trump pode piorar

Passaram duas semanas e, ao contrário de outras administrações, ainda é cedo para sabermos, afinal, quais vão ser as linhas mestras da política externa dos Estados Unidos durante os anos Trump. Se há algo que temos como garantido, por estes dias, é a incerteza.
Depois de um ano de campanha eleitoral em que criticou abertamente o rumo da diplomacia do presidente Obama - anunciando que iria ser um forte aliado de Israel, defendendo uma aproximação com a Rússia de Putin e afirmando que o acordo com o Irão era um péssimo negócio -, a administração Trump surpreendeu o mundo há dias. Na madrugada de sexta-feira, o porta-voz da Casa Branca emitiu um comunicado em que avisa Telavive que a construção de novos colonatos não é um passo seguro rumo à paz no Médio Oriente; a embaixadora americana nas Nações Unidas, Nikki Haley, afirmou que os EUA não vão levantar as sanções contra a Rússia até que Moscovo pare de desestabilizar a Ucrânia e retire as tropas da Crimeia; e, por último, em resposta ao teste de um míssil balístico, foi lançado novo pacote de sanções contra Teerão, na linha da política da anterior administração, não havendo qualquer sinal de que o novo presidente se prepare para rasgar o acordo com o Irão, que tanto criticou.
Esta e outras inflexões de rota ao longo destes primeiros dias de presidência tornam legítima a pergunta: que relação vai existir entre a América e as Nações Unidas? António Monteiro, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, mas também antigo embaixador junto das Nações Unidas e que chegou a presidir o Conselho de Segurança, acredita que pouco vai mudar. "Não creio que vá haver uma grande inflexão no relacionamento entre os Estados Unidos e as Nações Unidas. A nova administração terá preocupações semelhantes às anteriores." O diplomata lembra que os Estados Unidos encararam as Nações Unidas como uma organização particularmente útil durante as primeiras décadas de existência, mas depois, durante a Guerra Fria e com a crescente força do movimento dos países não alinhados, começaram a desprezar a ONU. António Monteiro recorda um episódio, durante a administração Reagan. "Lembro-me da embaixadora dos Estados Unidos junto das Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick, a dizer que se isto é um movimento alinhado com a União Soviética, o melhor é as Nações Unidas partirem para Moscovo e instalarem lá a sua sede. Eu serei a primeira a ir para o cais, com um lenço branco, a despedir-me dela." Desde esses dias que a tensão se mantém, sobretudo quando chega a hora de falar de dinheiro.
Os Estados Unidos são o principal contribuinte líquido para os diversos orçamentos das Nações Unidas, e de muitas das suas agências autónomas. A cada orçamento bianual, ao todo, Washington desembolsa cerca de oito mil milhões de dólares. Os EUA são responsáveis por uma quota de 22% do orçamento geral da ONU - cerca de 600 milhões de dólares -, e outra de 28,6% do orçamento para missões de paz - cerca de 2,3 mil milhões; nestas duas parcelas têm uma responsabilidade de perto de 3 mil milhões, a que é preciso juntar muito mais em contribuições voluntárias para diversas agências e programas da ONU. Do outro lado da balança, os Estados Unidos, ou empresas norte-americanas, são igualmente o principal fornecedor de bens e serviços às Nações Unidas, com um total de vendas acima dos 1,6 mil milhões de dólares em 2015, data do último relatório (ver gráficos). O balanço final é desequilibrado para o lado da despesa, mas será uma conta muito alta, será demasiado dinheiro? Depende de como olhamos para os números.
Nova ordem mundial?
Voltemos a olhar o futuro e os sinais. Com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, têm-se multiplicado os rumores de cortes no financiamento americano às Nações Unidas, surgiu mesmo uma proposta de lei de um grupo de congressistas republicanos, que sugere a saída dos Estados Unidos da ONU - o diploma tem um nome curioso: Lei da Restauração da Soberania Americana de 2017 - e, no Twitter, o presidente referiu-se às Nações Unidas como "apenas um clube onde as pessoas se juntam, conversam e divertem". Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul e escolha de Trump para embaixadora dos Estados Unidos na ONU, mal chegou a Nova Iorque disse que a América ia começar a "apontar os nomes" dos países que discordassem das suas posições na ONU.
Luís Amado diz ao DN que "esta liderança americana é muito diferente de todas as outras lideranças com que, pelo menos no espaço das nossas vidas, foi possível conviver. Não podemos ainda perceber, com rigor, o impacto desta nova liderança americana no sistema internacional, e em particular no sistema multilateral". O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros olha para a entrada em cena de Donald Trump como uma "mudança de regime", e considera que "é difícil perceber exatamente os contornos da nova política americana, desde logo da nova política económica, da nova política social, e do impacto na política externa de um conjunto de orientações que estão totalmente fora do que é a tradição da relação dos Estados Unidos com os seus aliados, nomeadamente a Europa e os seus vizinhos". Francisco Seixas da Costa, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, e ex-embaixador nas Nações Unidas, lembra a tradicional tensão entre os Estados Unidos e a ONU, mas afirma que "nunca se tinha visto uma administração que, desde o início e de uma forma tão flagrante e quase provocatória, enviasse uma mensagem para as Nações Unidas, no sentido de que só lhes interessa a ONU apenas e se o seu funcionamento corresponder aos interesses americanos". O antigo diplomata adivinha uma relação de absoluta conveniência nos próximos anos: "O que vai acontecer é um pick and choose, os Estados Unidos olharão para aquilo em que as Nações Unidas possam ser úteis à sua política externa, seja ela qual for porque até agora só temos sinais ligeiramente caricaturais do que poderá constituir essa política externa, e vamos assistir a um momento de grandes restrições na vontade americana de colaborar com as Nações Unidas."
António Monteiro lembra que "os três pilares das Nações Unidas - paz, desenvolvimento e direitos humanos - tiveram um grande contributo dos Estados Unidos, e devem preocupar sobretudo quem tem mais responsabilidades na organização, quem tem direito de veto, e aliás esse direito de veto também os obriga a pagar mais". O antigo embaixador na ONU tem uma esperança, que "da parte americana haja uma reflexão sobre o que significam as Nações Unidas em termos de equilíbrio e bem-estar para o mundo atual. É uma reflexão que não pode apenas considerar interesses nacionais, mas interesses globais". Luís Amado vê um fenómeno novo a nascer em Washington. "A perspetiva é muito isolacionista, muito protecionista e, mais do que isso, ultranacionalista. Sendo o isolacionismo um fenómeno recorrente na política americana, de facto esta corrente ultranacionalista, o ensimesmamento no interesse nacional muito egoísta, sem o equilíbrio dos interesses dos vizinhos e dos aliados, é um fenómeno novo." O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros insiste que "é prematuro avaliar", mas admite que "é um facto que os Estados Unidos vão privilegiar o unilateralismo e o bilateralismo no desenho e na implementação da sua política sob esta liderança, isto parece claro. Como negociador de interesses económicos, Trump acha que os EUA perdem sempre numa relação multilateral. Mas, vamos ver até que ponto o Congresso e as instituições americanas vão reagir para repor algum equilíbrio que, apesar de tudo, depende, na ordem mundial, da força do poder americano". É um dos fatores de instabilidade e incerteza, "saber até que ponto o establishment vai impor alguma correção no rumo um pouco caótico que o novo presidente americano tem indiciado querer imprimir à relação dos Estados Unidos com o mundo".
E Guterres?
Luís Amado não tem dúvidas de que a agenda do novo secretário-geral das Nações Unidas já não vai ser a mesma, "já está perturbada inevitavelmente pela mudança muito brusca que a principal potência mundial introduziu na vida internacional. Estes primeiros cem dias adivinham-se como de grande perturbação na ordem mundial, e nessa perspetiva a agenda do secretário-geral das Nações Unidas não deixará de sofrer as suas consequências".
O antigo embaixador António Monteiro tem um olhar mais otimista. "As agendas dos Estados Unidos e do próprio secretário-geral poderão ter algumas diferenças, que necessitam de afinação. Isso é normal. Não vejo que, a prazo, não possa haver uma aproximação, e para isso é preciso boa vontade." No fundo, o antigo diplomata espera bom senso da nova administração. "Há um novo secretário-geral, e espero que a nova administração acabe por entender que é uma nova oportunidade para todos. Tenho esperanças de que, depois da habitual - porque já se tornou habitual - discussão sobre o nível de contribuições, sobre o que é que cada um dá, os Estados Unidos reconheçam o grande potencial das Nações Unidas."
Francisco Seixas da Costa não hesita em considerar que a nova administração americana não é o cenário ideal para o trabalho do novo secretário-geral da ONU, e afirma que "temos de olhar para o futuro de António Guterres com um cenário de fundo mais preocupante do que aquele que todo o ambiente eufórico à partida tinha feito presumir". O antigo embaixador sublinha ainda assim a coragem de Guterres nos últimos dias. "Guterres teve a coragem de dizer aquilo que devia ser dito nesta questão do fecho de fronteiras temporário a cidadãos de determinados países. Claramente, está numa potencial rota de colisão com a atitude americana, mas não podia fazer de outra maneira, porque funcionar de outra forma seria anular todas as esperanças que foram colocadas sobre ele aquando da sua eleição." Apesar deste diagnóstico, Seixas da Costa sublinhas as características de António Guterres, "uma pessoa extremamente dialogante e que consegue ir tão longe quanto possível no estabelecimento de pontes", e deixa um cenário de esperança: "Temos de perceber em que medida é que o bloqueio tradicional e ritual dentro do Conselho de Segurança, entre Moscovo e Washington, não pode, de um momento para o outro e devido a um circunstancialismo estranho, vir a dar origem a um entendimento que possa transformar o secretário-geral numa figura de natureza operativa. Pode ser que haja aqui um espaço de manobra para dar visibilidade às Nações Unidas. Mas, isto vai ser uma navegação à vista."
copiado  http://www.dn.pt/

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