ONU e EUA. A relação agitada que Trump pode piorar
ONU e EUA. A relação agitada que Trump pode piorar
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Passaram
duas semanas e, ao contrário de outras administrações, ainda é cedo
para sabermos, afinal, quais vão ser as linhas mestras da política
externa dos Estados Unidos durante os anos Trump. Se há algo que temos
como garantido, por estes dias, é a incerteza.
Depois
de um ano de campanha eleitoral em que criticou abertamente o rumo da
diplomacia do presidente Obama - anunciando que iria ser um forte aliado
de Israel, defendendo uma aproximação com a Rússia de Putin e afirmando
que o acordo com o Irão era um péssimo negócio -, a administração Trump
surpreendeu o mundo há dias. Na madrugada de sexta-feira, o porta-voz
da Casa Branca emitiu um comunicado em que avisa Telavive que a
construção de novos colonatos não é um passo seguro rumo à paz no Médio
Oriente; a embaixadora americana nas Nações Unidas, Nikki Haley, afirmou
que os EUA não vão levantar as sanções contra a Rússia até que Moscovo
pare de desestabilizar a Ucrânia e retire as tropas da Crimeia; e, por
último, em resposta ao teste de um míssil balístico, foi lançado novo
pacote de sanções contra Teerão, na linha da política da anterior
administração, não havendo qualquer sinal de que o novo presidente se
prepare para rasgar o acordo com o Irão, que tanto criticou.
Esta
e outras inflexões de rota ao longo destes primeiros dias de
presidência tornam legítima a pergunta: que relação vai existir entre a
América e as Nações Unidas? António Monteiro, antigo ministro dos
Negócios Estrangeiros, mas também antigo embaixador junto das Nações
Unidas e que chegou a presidir o Conselho de Segurança, acredita que
pouco vai mudar. "Não creio que vá haver uma grande inflexão no
relacionamento entre os Estados Unidos e as Nações Unidas. A nova
administração terá preocupações semelhantes às anteriores." O diplomata
lembra que os Estados Unidos encararam as Nações Unidas como uma
organização particularmente útil durante as primeiras décadas de
existência, mas depois, durante a Guerra Fria e com a crescente força do
movimento dos países não alinhados, começaram a desprezar a ONU.
António Monteiro recorda um episódio, durante a administração Reagan.
"Lembro-me da embaixadora dos Estados Unidos junto das Nações Unidas,
Jeane Kirkpatrick, a dizer que se isto é um movimento alinhado com a
União Soviética, o melhor é as Nações Unidas partirem para Moscovo e
instalarem lá a sua sede. Eu serei a primeira a ir para o cais, com um
lenço branco, a despedir-me dela." Desde esses dias que a tensão se
mantém, sobretudo quando chega a hora de falar de dinheiro.
Os
Estados Unidos são o principal contribuinte líquido para os diversos
orçamentos das Nações Unidas, e de muitas das suas agências autónomas. A
cada orçamento bianual, ao todo, Washington desembolsa cerca de oito
mil milhões de dólares. Os EUA são responsáveis por uma quota de 22% do
orçamento geral da ONU - cerca de 600 milhões de dólares -, e outra de
28,6% do orçamento para missões de paz - cerca de 2,3 mil milhões;
nestas duas parcelas têm uma responsabilidade de perto de 3 mil milhões,
a que é preciso juntar muito mais em contribuições voluntárias para
diversas agências e programas da ONU. Do outro lado da balança, os
Estados Unidos, ou empresas norte-americanas, são igualmente o principal
fornecedor de bens e serviços às Nações Unidas, com um total de vendas
acima dos 1,6 mil milhões de dólares em 2015, data do último relatório
(ver gráficos). O balanço final é desequilibrado para o lado da despesa,
mas será uma conta muito alta, será demasiado dinheiro? Depende de como
olhamos para os números.
Nova ordem mundial?
Voltemos
a olhar o futuro e os sinais. Com a chegada de Donald Trump à Casa
Branca, têm-se multiplicado os rumores de cortes no financiamento
americano às Nações Unidas, surgiu mesmo uma proposta de lei de um grupo
de congressistas republicanos, que sugere a saída dos Estados Unidos da
ONU - o diploma tem um nome curioso: Lei da Restauração da Soberania
Americana de 2017 - e, no Twitter, o presidente referiu-se às Nações
Unidas como "apenas um clube onde as pessoas se juntam, conversam e
divertem". Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul e escolha de
Trump para embaixadora dos Estados Unidos na ONU, mal chegou a Nova
Iorque disse que a América ia começar a "apontar os nomes" dos países
que discordassem das suas posições na ONU.
Luís
Amado diz ao DN que "esta liderança americana é muito diferente de
todas as outras lideranças com que, pelo menos no espaço das nossas
vidas, foi possível conviver. Não podemos ainda perceber, com rigor, o
impacto desta nova liderança americana no sistema internacional, e em
particular no sistema multilateral". O antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros olha para a entrada em cena de Donald Trump como uma
"mudança de regime", e considera que "é difícil perceber exatamente os
contornos da nova política americana, desde logo da nova política
económica, da nova política social, e do impacto na política externa de
um conjunto de orientações que estão totalmente fora do que é a tradição
da relação dos Estados Unidos com os seus aliados, nomeadamente a
Europa e os seus vizinhos". Francisco Seixas da Costa, antigo secretário
de Estado dos Assuntos Europeus, e ex-embaixador nas Nações Unidas,
lembra a tradicional tensão entre os Estados Unidos e a ONU, mas afirma
que "nunca se tinha visto uma administração que, desde o início e de uma
forma tão flagrante e quase provocatória, enviasse uma mensagem para as
Nações Unidas, no sentido de que só lhes interessa a ONU apenas e se o
seu funcionamento corresponder aos interesses americanos". O antigo
diplomata adivinha uma relação de absoluta conveniência nos próximos
anos: "O que vai acontecer é um pick and choose, os Estados Unidos
olharão para aquilo em que as Nações Unidas possam ser úteis à sua
política externa, seja ela qual for porque até agora só temos sinais
ligeiramente caricaturais do que poderá constituir essa política
externa, e vamos assistir a um momento de grandes restrições na vontade
americana de colaborar com as Nações Unidas."
António
Monteiro lembra que "os três pilares das Nações Unidas - paz,
desenvolvimento e direitos humanos - tiveram um grande contributo dos
Estados Unidos, e devem preocupar sobretudo quem tem mais
responsabilidades na organização, quem tem direito de veto, e aliás esse
direito de veto também os obriga a pagar mais". O antigo embaixador na
ONU tem uma esperança, que "da parte americana haja uma reflexão sobre o
que significam as Nações Unidas em termos de equilíbrio e bem-estar
para o mundo atual. É uma reflexão que não pode apenas considerar
interesses nacionais, mas interesses globais". Luís Amado vê um fenómeno
novo a nascer em Washington. "A perspetiva é muito isolacionista, muito
protecionista e, mais do que isso, ultranacionalista. Sendo o
isolacionismo um fenómeno recorrente na política americana, de facto
esta corrente ultranacionalista, o ensimesmamento no interesse nacional
muito egoísta, sem o equilíbrio dos interesses dos vizinhos e dos
aliados, é um fenómeno novo." O antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros insiste que "é prematuro avaliar", mas admite que "é um
facto que os Estados Unidos vão privilegiar o unilateralismo e o
bilateralismo no desenho e na implementação da sua política sob esta
liderança, isto parece claro. Como negociador de interesses económicos,
Trump acha que os EUA perdem sempre numa relação multilateral. Mas,
vamos ver até que ponto o Congresso e as instituições americanas vão
reagir para repor algum equilíbrio que, apesar de tudo, depende, na
ordem mundial, da força do poder americano". É um dos fatores de
instabilidade e incerteza, "saber até que ponto o establishment vai
impor alguma correção no rumo um pouco caótico que o novo presidente
americano tem indiciado querer imprimir à relação dos Estados Unidos com
o mundo".
E Guterres?
Luís
Amado não tem dúvidas de que a agenda do novo secretário-geral das
Nações Unidas já não vai ser a mesma, "já está perturbada
inevitavelmente pela mudança muito brusca que a principal potência
mundial introduziu na vida internacional. Estes primeiros cem dias
adivinham-se como de grande perturbação na ordem mundial, e nessa
perspetiva a agenda do secretário-geral das Nações Unidas não deixará de
sofrer as suas consequências".
O
antigo embaixador António Monteiro tem um olhar mais otimista. "As
agendas dos Estados Unidos e do próprio secretário-geral poderão ter
algumas diferenças, que necessitam de afinação. Isso é normal. Não vejo
que, a prazo, não possa haver uma aproximação, e para isso é preciso boa
vontade." No fundo, o antigo diplomata espera bom senso da nova
administração. "Há um novo secretário-geral, e espero que a nova
administração acabe por entender que é uma nova oportunidade para todos.
Tenho esperanças de que, depois da habitual - porque já se tornou
habitual - discussão sobre o nível de contribuições, sobre o que é que
cada um dá, os Estados Unidos reconheçam o grande potencial das Nações
Unidas."
Francisco Seixas da Costa não
hesita em considerar que a nova administração americana não é o cenário
ideal para o trabalho do novo secretário-geral da ONU, e afirma que
"temos de olhar para o futuro de António Guterres com um cenário de
fundo mais preocupante do que aquele que todo o ambiente eufórico à
partida tinha feito presumir". O antigo embaixador sublinha ainda assim a
coragem de Guterres nos últimos dias. "Guterres teve a coragem de dizer
aquilo que devia ser dito nesta questão do fecho de fronteiras
temporário a cidadãos de determinados países. Claramente, está numa
potencial rota de colisão com a atitude americana, mas não podia fazer
de outra maneira, porque funcionar de outra forma seria anular todas as
esperanças que foram colocadas sobre ele aquando da sua eleição." Apesar
deste diagnóstico, Seixas da Costa sublinhas as características de
António Guterres, "uma pessoa extremamente dialogante e que consegue ir
tão longe quanto possível no estabelecimento de pontes", e deixa um
cenário de esperança: "Temos de perceber em que medida é que o bloqueio
tradicional e ritual dentro do Conselho de Segurança, entre Moscovo e
Washington, não pode, de um momento para o outro e devido a um
circunstancialismo estranho, vir a dar origem a um entendimento que
possa transformar o secretário-geral numa figura de natureza operativa.
Pode ser que haja aqui um espaço de manobra para dar visibilidade às
Nações Unidas. Mas, isto vai ser uma navegação à vista."
copiado http://www.dn.pt/
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