O Reino Unido precisa se redimir pela divisão da Irlanda para dar seguimento às negociações do Brexit
READ IN ENGLISH
O FUNDAMENTO EMOCIONAL da política conhecida como Brexit – abreviação de “Britain Exit”, a saída do Reino Unido da União Europeia – não é uma obsessão nacional por detalhes de política comercial. Não há debates apaixonados nos bares por toda parte sobre as tarifas aduaneiras.
Para a maior parte das pessoas, o Brexit diz respeito a algo muito mais visceral: a identidade nacional. A percepção de uma necessidade de “retomar o controle” sobre as fronteiras do Reino Unido e limitar drasticamente o volume de estrangeiros com permissão para residir e trabalhar no país foi referendada por uma pequena maioria dos eleitores na votação de 2016. Para os nacionalistas, o Brexit é uma escolha simples de se retirar de um bloco econômico que efetivamente elimina as fronteiras entre os estados-membros ao exigir a livre movimentação de pessoas, bens e serviços.
O que poucos apoiadores do Brexit na ilha da Grã-Bretanha perceberam naquele momento, porém, é que seu país, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, só tem uma fronteira terrestre com a União Europeia, e é uma fronteira altamente contestada: a linha que divide a Irlanda e foi imposta pelo Império Britânico há um século. Nos últimos vinte anos, foi fácil esquecer o caos e a destruição que a imposição dessa fronteira causou, pois a participação conjunta na UE facilitou a celebração de um acordo de paz que interrompeu o derramamento de sangue na Irlanda do Norte e eliminou a necessidade de controle alfandegário e imigratório ao longo da “linha da maldade”, como apelidou um escritor irlandês.
A despeito de toda a discussão sobre a saída do Reino Unido, porém, é importante compreender que o Brexit foi uma decisão preponderantemente da Inglaterra: 87% dos votos a favor da saída foramobtidos na Inglaterra, e dois terços das pessoas que se consideram mais inglesas que britânicas votaram pela saída.
Enquanto os ingleses faziam uma campanha baseada na nostalgia do Império Britânico que outrora foi seu domínio, a maioria dos eleitores em dois outros integrantes do Reino Unido – Escócia e Irlanda do Norte – votou contra o Brexit, abrindo espaço para que um deles, ou ambos, em algum momento decidissem abandonar a união.
O principal apoio ao Brexit – assim como o apoio ao Partido Conservador do Reino Unido – vem da Inglaterra, o que ajuda a explicar por que as negociações com a UE sobre a saída do Reino Unido chegaram a um impasse a respeito de uma questão que até recentemente os nacionalistas ingleses pareciam ter esquecido: o conflito suspenso, mas ainda em aberto, na primeira colônia inglesa, a Irlanda.
Se os governantes ingleses não tivessem embarcado no processo centenário de colonização da Irlanda, ou não tivessem imposto a divisão da ilha em 1921, para criar um enclave leal onde os colonizadores protestantes britânicos prevalecessem sobre os nativos católicos irlandeses, a saída do Reino Unido da UE, envolvendo apenas Inglaterra, Escócia e País de Gales, seria uma questão relativamente simples.
Na situação atual, porém, a primeira-ministra Theresa May está encurralada em negociações complexas sobre a forma de retirar todo o Reino Unido da união aduaneira e de mercado único da Europa sem comprometer a frágil paz existente na Irlanda. Os postos alfandegários e de imigração, que os nacionalistas ingleses consideram apenas uma inconveniência que vale a pena tolerar para viver em uma sociedade menos multicultural, exigiriam uma infraestrutura de fronteira na antiga linha divisória da Irlanda. Isso causaria uma avalanche de dores de cabeça para as pessoas e empresas na Irlanda, e praticamente asseguraria o retorno da violência.
No Seminário Anual sobre Crime Organizado Internacional, realizado no ano passado na Irlanda, chefes de polícia de ambos os lados do país alertaram que “quanto mais infraestrutura na fronteira, mais oportunidades são criadas” para a violência praticada por dissidentes políticos e ex-paramilitares já envolvidos em contrabando.
Ao contrário de vários entusiastas do Brexit em seu partido, a primeira-ministra parece ao menos ter consciência de que o Reino Unido tem uma responsabilidade legal e moral, nos termos do acordo de paz de 1998, de evitar a carnificina que provavelmente decorreria de qualquer tentativa de dividir novamente a Irlanda e reinstaurar a fronteira.
Theresa May também está de mãos atadas porque a União Europeia, que leva a sério seu papel na prevenção de conflitos no continente, reiterou que sequer iniciará a discussão sobre uma futura relação comercial com o Reino Unido até que a primeira-ministra assine um acordo de saída assegurando que a fronteira com a Irlanda permanecerá aberta.
Esse acordo, porém, é mais simples na teoria que na prática, porque a lógica do Brexit e da União Europeia exige uma fronteira externa fechada.
Há ainda o problema de que a íngreme linha divisória de quase 500km, definida pelo governo britânico em 1921 como fronteira da nova província da Irlanda do Norte, não é de forma alguma uma fronteira natural. Não existe cadeia de montanhas ou curso d’água que divida a Irlanda em duas partes: há apenas uma linha em um mapa, desenhada às pressas pela retirada de funcionários públicos coloniais. Essa estratégia foi posteriormente denominada “dividir e abandonar” por Penderel Moon, um agente colonial britânico envolvido na divisão igualmente mal planejada da Índia, feita pelo império em 1947. (Quatro décadas depois, o vice-rei britânico que supervisionou a sangrenta divisão da Índia, Louis Mountbatten, foi morto pelo IRA enquanto passava férias na Irlanda.)
A linha divisória de 1921, que criou a nova província da Irlanda do Norte, controlada pela Grã-Bretanha, ao longo de antigas fronteiras de condado que atualmente passam sobre campos, cidades e casas, também foi desenhada a serviço de uma descarada trapaça eleitoral em grande escala. Era uma nova linha traçada no mapa-múndi para dividir ao meio uma nação insular, de tal forma que o poder colonial em retirada pudesse assegurar que os descendentes dos colonizadores controlariam o enclave onde se tornariam maioria.
Essa divisão deu origem a décadas de violência política e terrorismo na Irlanda do Norte e na Grã-Bretanha, período que ficou conhecido, num eufemismo tipicamente irlandês, como “the Troubles” [os Problemas]. Durante esse período, mais de 3.500 pessoas foram mortas, direitos civis básicos e o devido processo legal foram suspensos, e o Exército Britânico construiu torres de vigilância e pontos de controle e destruiu centenas de estradas, pontes e vias rurais para controlar o fluxo de pessoas e bens entre as duas parte da Irlanda.
É impossível para qualquer um que tenha crescido à sombra daquela fronteira – eu passava as férias de verão na infância visitando a família da minha mãe em ambos os lados – esquecer o impacto emocional das horas desperdiçadas na espera em um dos poucos pontos de travessia autorizados, os encontros tensos com soldados armados nos pontos de controle altamente fortificados do Exército Britânico. E no entanto, nas duas últimas décadas, sob os auspícios da UE, os pontos de controle alfandegários e de segurança foram removidos, e a fronteira entre as duas jurisdições da ilha se tornou tão pouco perceptível quanto a linha divisória entre dois estados da federação. É como o desaparecimento de uma cicatriz.
Observando da Irlanda as discussões sobre o Brexit, Denis Bradley, jornalista e ex-vice-presidente do conselho de polícia do Serviço Policial da Irlanda do Norte, comentou que o Reino Unido e a UE subestimaram a determinação do povo irlandês que sofreu anos de violência para tolerar uma fronteira. “A Fronteira não precisa de solução, porque já está resolvida”, escreveu Bradley no jornal Irish Times.
“Vinte e pouco anos atrás a fronteira da Irlanda desapareceu”, ele explicou. “Os antigos postos alfandegários já tinham desaparecido há muito tempo, e então, um belo dia, o Exército Britânico levantou acampamento e voltou para casa. A maior parte das pessoas sentiu que um peso saía dos ombros – pessoas que haviam vivido na sombra daquela presença estavam, pela primeira vez, livres da inconveniência e da cicatriz na paisagem. Desde então elas vivem com essa liberdade, que consideram boa e justa, e não têm qualquer intenção de abrir mão dela.”
“A questão da fronteira da Irlanda precisa ser separada da esfera econômica e analisada no contexto dos direitos fundamentais”, escreveu no ano passado Eoin McNamee, roteirista e romancista que cresceu atravessando a fronteira para chegar à escola. “Theresa May pode insistir que seu país irá deixar a União Europeia. A UE pode determinar as condições que desejar. Mas nenhuma delas pode determinar ou insistir que uma linha da maldade seja novamente traçada sobre esta ilha.”
A realidade daquela época, lembrou McNamee a seus leitores, eram “estradas esburacadas, corpos despejados em sacos plásticos pretos, torres de vigilância, igrejas cravejadas de balas, casas cravejadas de balas. Era à noite que se sentia completamente o impacto, ao dirigir por estradas desertas atravessando regiões misteriosas, onde não havia nada além da vigilância e das más intenções.”
Conversei com McNamee em Londres na semana passada. “A economia não é a questão-chave”, ele me disse. A divisão, segundo ele, era “um equívoco moral, no mesmo sentido em que o Muro de Berlim era um equívoco moral, uma afronta à civilização”. Uma década depois da remoção da infraestrutura de fronteira, na sequência do acordo de paz, quando o tecido da cicatriz já havia começado a se recuperar, McNamee se recorda da súbita pergunta de seu irmão: “Aquilo tudo foi um sonho?”
A insistência do Reino Unido ou da UE na divisão da Irlanda, diz hoje McNamee, seria como dizer aos alemães que é preciso reconstruir o Muro de Berlim. “O que acontece não é só que as pessoas não querem – e elas não querem – mas elas não podem mais voltar a isso.”
Ou, como definiu recentemente o comediante irlandês Andrew Maxwell, ao ser indagado sobre uma solução para a questão da fronteira irlandesa: “Não é a fronteira irlandesa – é a fronteira britânica na Irlanda. A fronteira irlandesa é a praia.”
Em dissonância com os nacionalistas pró-Brexit do partido Conservador a que pertence, May parece estar desesperada para obter algum tipo de acordo que permita a todo o Reino Unido se manter o mais perto possível da UE, não apenas para evitar a volta do derramamento de sangue na Irlanda do Norte, mas também para proteger a indústria britânica. Por essa razão, no começo das negociações sobre os termos da saída do Reino Unido, May parecia disposta a aceitar uma oferta da UE para proteger a paz na Irlanda do Norte concedendo à região um status especial depois do Brexit, que permitiria que permanecesse tanto no Reino Unido quanto na união aduaneira e de mercado único da Europa. Isso tornaria desnecessário estabelecer pontos de controle de bens e pessoas para a travessia de ida ou de volta para a Irlanda.
Embora May tenha concordado em princípio com essa alternativa no final do ano passado – pelo menos como um “anteparo” que entraria em vigor apenas caso o Reino Unido não consiga negociar uma futura relação comercial com a UE estreita o suficiente para tornar desnecessários os controles de fronteira – ela agora não tem mais força política para convencer o restante de seu partido a acompanhá-la.
Talvez seja ainda mais relevante que, sem maioria parlamentar desde sua desastrosa decisão de convocar eleições gerais antecipadas no ano passado, a primeira-ministra também precise do apoio de 10 parlamentares norte-irlandeses do Partido Unionista Democrático (DUP), um grupo de fundamentalistas cristãos que fez campanha a favor do Brexit, mas contra o acordo de paz de 1998. Embora o DUP concorde da boca para fora com a ideia de manter a fronteira aberta, eles ameaçaram derrubar o governo de Theresa May caso ela tome qualquer iniciativa para aceitar o status especial da região, que possa envolver controle alfandegário sobre os bens que entram e saem da Grã-Bretanha. A líder do partido, Arlene Foster, descreveu recentemente sua oposição a uma tal concessão como um alerta “vermelho-sangue“.
As discussões intermitentes e arrastadas sobre o Brexit criaram uma profunda exasperação, compartilhada por apoiadores e oponentes da política. No final de junho, quando se completaram dois anos desde que o Reino Unido votou pela saída da União Europeia, e ainda sem sinal do que isso representaria na prática, um ator inglês de novelas manifestou seu descontentamento. “Quem sabe alguma coisa do Brexit? Ninguém tem a menor ideia do que seja o Brexit”, disse o ator Danny Dyer ao estupefato anfitrião Piers Morgan, durante um programa de entrevistas na televisão.
“Ninguém sabe o que é”, acrescentou Dyer, e a câmera cortou para os outros convidados, Pamela Anderson e Jeremy Corbyn. “É uma charada louca que ninguém sabe do que se trata”.
James Felton: “Caramba, a única pessoa dizendo algo com sentido sobre o Brexit é (apertando os olhos) o maldito Danny Dyer”.
O clipe viralizou em grande parte porque Dyer, em seguida, chamou o ex-primeiro-ministro David Cameron de “idiota” por ter convocado o plebiscito e “dado o fora” para aproveitar sua aposentadoria “na Europa, em Nice, de pernas para o ar” depois que seu lado restou vencido. Mas o ator também manifestou uma frustração compartilhada pelos milhões de britânicos que votaram pela decisão de deixar a UE, e então descobriram que seus líderes não tinham nenhum plano sobre a forma de fazê-lo.
A razão para a demora é que Theresa May, a sucessora de Cameron, vem tentando solucionar uma charada que pode não ter resposta. Permanece, no entanto, o fato de que, mais de dois anos depois de assumir o poder com a vaga promessa de que “Brexit significa Brexit”, a primeira-ministra ainda não demonstrou exatamente que tipo de relação futura ela deseja ter com a UE, ou como pretende ao mesmo tempo ter o completo controle das fronteiras do país e não ameaçar a paz na Irlanda.
Ela havia inicialmente prometido realizar duas coisas. Em primeiro lugar, a ruptura completa com a Europa que a extrema direita anti-imigração de seu partido exige – uma saída tanto da união aduaneira quanto do mercado único europeu. Em segundo lugar, prometeu negociar uma futura relação comercial com os membros remanescentes da UE, para satisfazer a ala moderada dos Conservadores, que se preocupam com a possibilidade de que a saída da união aduaneira e do mercado único possa destruir a economia do país, profundamente entrelaçada à do restante da Europa.
Mas é uma terceira questão que está se mostrando a mais problemática: Theresa May está presa à sua promessa de encontrar uma forma de remover o Reino Unido integralmente da UE sem colocar em xeque a frágil situação de paz ao longo da fronteira anteriormente contestada e militarizada.
Em um recente tweet endereçado ao líder da campanha do Brexit, Boris Johnson, Patrick Kielty, um comediante da Irlanda do Norte cujo pai foi morto por atiradores paramilitares durante o período de conflito, explicouque a UE era um componente essencial da “magia oculta” do acordo de paz por meio do qual se assegurou ao grupo majoritariamente protestante dos “Unionistas que a Irlanda do Norte permaneceria parte do Reino Unido até que a maioria votasse em contrário”, e no qual “a fronteira foi removida e a ilha foi religada”, de tal forma que os irlandeses católicos “Nacionalistas poderiam fingir que já viviam numa Irlanda Unificada”.
“Alguns desses nacionalistas aceitaram então fazer parte do Reino Unido, uma vez que sua vida no dia a dia era essencialmente irlandesa”, prosseguiu Kielty. “Esse plano astucioso foi apresentado para nós sob o argumento de que todos éramos parte da UE, e que a obsessão pela nacionalidade era coisa do tempo da última Guerra Mundial”.
Ao remover a UE desse feitiço, os políticos pró-Brexit “abriram uma caixa de Pandora para a Irlanda do Norte”, ele acrescentou. “É uma das razões pelas quais a maioria das pessoas [na Irlanda do Norte] votou por permanecer na UE”.
Especialistas como R. Daniel Kelemen, professor de Direito e Ciência Política na Universidade Rutgers, tentaram alertar Theresa May para o fato de que só há uma forma de manter todas as suas três promessas: “pensamento mágico”.
Theresa May: “O caminho que estou seguindo é o caminho para dar ao povo o Brexit pelo qual votaram. Precisarei de seu auxílio e suporte para chegar até lá. E o que prometo em troca é simples: não irei desapontá-los”.Daniel Kelemen: “Você realmente precisa abrir os olhos para isso. É impossível cumprir todas as três promessas que você fez. Aceite a realidade e escolha.”Círculo rosa: Promessa 1: Sair da União Aduaneira e Mercado ÚnicoCírculo verde: Promessa 2: Sem fronteira entre Irlanda do Norte e Grã-BretanhaCírculo roxo: Promessa 3: Sem fronteira entre Irlanda e Irlanda do NorteOpção A: Descumpre a promessa ao DUP. Fronteira no Mar da Irlanda. Reunificação irlandesa a longo prazo.Opção B: Descumpre a promessa à Irlanda/UE. Violar o Acordo de Belfast com fronteira na Irlanda. Irlanda veta o Acordo de Saída, possibilidade de desastre do Brexit.Opção C: Descumpre as promessas aos ultra-Brexit do gabinete. Brexit Leve. Brexiteers se revoltam. May é removida.Opção D: Totalmente impossível. Pensamento mágico, Unicórnios, etc.Fonte: R. Daniel Kelemen, Universidade Rutgers
Determinada a prosseguir a despeito de tudo, Theresa May continuou a apresentar propostas que não satisfazem ninguém e que despertam o receio de que o Reino Unido possa esgotar o prazo para obter um acordo antes que sua qualidade de membro da UE chegue ao fim, às 23h do dia 29 de março de 2019. Caso isso aconteça, o chamado Brexit Sem Acordo poderia perturbar tudo, do fluxo de alimentos e medicamentos para dentro do país às viagens aéreas para fora.
Robert Peston: “Um gabinete em choque foi informado hoje de que um Brexit sem acordo poderia forçar o governo a deter a propriedade ou operar barcas, porque a travessia por Dover ou pelo Túnel do Canal poderia cair 85%, e ficaríamos sem bens essenciais, comida e medicamentos.”
David Lammy: “O Brexit se tornou uma espécie de declaração de guerra a nós mesmos. Navios de emergência precisarão ser afretados para transportar comida e medicamentos se sairmos da UE sem um acordo. Mas pelo menos, quando estivermos fazendo contabilidade de racionamento e ficando sem remédios, teremos de volta o controle.”
Isso levou a pedidos da UE para que a primeira-ministra simplesmente adotasse o plano de emergência com o qual havia concordado no ano passado, que daria status especial à Irlanda do Norte depois do Brexit. Sofrendo pressão para atender à linha dura dentro de seu próprio partido e ao DUP, Theresa May rejeitou agressivamente, como uma tentativa de dividir seu país ao meio, o mesmo plano que havia aceitado em dezembro, ignorando o fato de que a Irlanda do Norte só existe porque a Grã-Bretanha dividiu a Irlanda ao meio em 1921.
Como apontou o ex-assessor de May, Matthew O’Toole, na revista The Spectator do mês passado, o que a primeira-ministra não reconhece é que o acordo de paz assinado em Belfast, na Sexta-Feira Santa, em 1998 já deu aos cidadãos norte-irlandeses direitos especiais que os manterão mais próximos da UE depois do Brexit. Em decorrência do acordo de paz, todos os cidadãos da Irlanda do Norte têm direito a passaportes irlandeses e do Reino Unido, o que significa que, depois do Brexit, essa poderá ser uma região de um país não membro inteiramente povoada por cidadãos da UE. O Acordo da Sexta-Feira Santa (ou Acordo de Belfast) também deu à região permissão para se separar do Reino Unido e se reunir à República da Irlanda, caso uma maioria de eleitores aprove a mudança em um plebiscito. O’Toole conclui que, então, “é a única parte do Reino Unido onde os cidadãos têm, ao mesmo tempo, direito permanente à cidadania da UE e um caminho formal de retorno à participação na UE por meio de um futuro plebiscito sobre a união da Irlanda”.
Independentemente de qual seja o resultado das negociações, muitos observadores irlandeses têm demonstrado espanto diante da tranquilidade com que suas preocupações sobre os impactos de uma nova divisão da Irlanda vêm sendo desprezadas pelo governo de Theresa May e pelos representantes da linha dura, autodenominados “Brexiteers”, que empurram seu partido para a direita.
Karl Whelan: “May conduzindo o Titantic (sic) diretamente para o iceberg. Discurso quase totalmente dissociado da realidade.”
Kevin O’Rourke: “Você tem a sensação de que HMG [o governo britânico, “Her Majesty’s Government”] nunca levou a Irlanda a sério, e que essa condescendência, que já foi disseminada, mas hoje é anacrônica no Reino Unido, pode ser o erro fatal que empurrará o país para o abismo sem acordo.”Simon Usherwood: “Macron chuta cachorro morto depois do equívoco de May no café da manhã do Brexit”
A Fronteira Irlandesa: “Oh, desculpe… Com licença… perdão… estou no seu caminho?… ops, eu… mas… pensando bem… você me colocou aqui para ficar no caminho… desculpe e agora… que estou no seu caminho… você tem que admitir… que é meio engraçado… não, você está certo, não é… desculpe, não consigo”
Um dos líderes da facção arquiconservadora, Jacob Rees-Mogg, vem consistentemente minimizando o risco de caos caso o Reino Unido despenque para fora da UE sem obter um acordo. Ele atraiu indignação especialmente na Irlanda do Norte, onde a maioria votou contra o Brexit, por dizer que não via necessidade de visitar a fronteira irlandesa de quase 500km, que poderá ser fechada depois do Brexit para evitar que os produtos britânicos sejam contrabandeados para a UE.
Rees-Mogg defendeu que recebe dos membros do DUP, cujo objetivo é manter a Irlanda do Norte dentro do Reino Unido, todas as informações de que precisa sobre a fronteira. Nenhum desses parlamentares norte-irlandeses, no entanto, efetivamente representa as comunidades na linha da fronteira com a Irlanda, que votaram decididamente contra o Brexit no plebiscito de 2016.
Robert Mackey: “O DUP (cujas 10 cadeiras no Parlamento do Reino Unido, com apenas 36% dos votos, estão em vermelho) age como se tivesse poder de veto sobre todas as propostas de manter aberta a fronteira da Irlanda, mas não representa um único eleitor que efetivamente resida na fronteira. (As áreas em verde votaram no Sinn Fein)”
“Ele é um ótimo exemplo do casulo onde vivem os fervorosos Brexiteers – ele não sabe nada a respeito da fronteira com a Irlanda, ele não está interessado nisso”, declarou recentemente Deirdre Heenan, professora de ciência política na Universidade de Ulster, referindo-se a Rees-Mogg. “O sujeito vive em negação; vive em algum tipo de terra dos sonhos onde, depois do Brexit, vamos retornar a um Reino Unido grandioso e imperialista.”
Em meados desse ano, começou a circular um vídeo onde Rees-Mogg admitia, de forma indireta, que o Brexit poderia exigir a retomada dos controles de fronteira praticados durante os 30 anos da guerra civil na Irlanda do Norte.
“Haveria a possibilidade, como existiu durante o período “the Troubles”, de inspecionarmos as pessoas”, disse Rees-Mogg em um seminário. “Não se trata de uma fronteira que todo mundo precisa atravessar todos os dias, mas é claro que, por razões de segurança, durante o período de conflito nós mantivemos bastante vigilância sobre a fronteira, para tentar impedir o tráfico de armas e coisas assim”.
O parlamentar Conservador – que parecia preocupado apenas com a prevenção contra a entrada de imigrantes europeus no Reino Unido pela Irlanda do Norte – aparentemente não tinha ciência do quanto essas buscas eram intrusivas e irritantes. Ao longo das três décadas que antecederam o acordo de paz de 1998 na Irlanda do Norte, que deu a todos os residentes o direito de portar tanto o passaporte irlandês quanto o do Reino Unido, a maior parte das estradas que atravessam a fronteira foram fechadas pelo Exército Britânico, e todos os carros que atravessavam eram inspecionados nos pontos de controle altamente fortificados, primeiro por soldados armados, depois por agentes alfandegários.
O ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Simon Coveney, reagiu horrorizado à ignorância do político Conservador sobre o traumático e sangrento passado recente da Irlanda do Norte. “É difícil acreditar que um político de alto escalão esteja tão mal informado sobre a Irlanda e sobre os aspectos políticos da questão da fronteira irlandesa no Brexit a ponto de fazer tais comentários”, observou Coveney no Twitter. “Deixamos o período ‘the Troubles’ para trás, por meio dos esforços sinceros de muitos, e é assim que pretendemos permanecer.”
No mês passado, houve uma resposta mais poética, mas igualmente contundente a Rees-Mogg e a outros que minimizaram o perigo de restaurar a fronteira fechada, por parte do roteirista norte-irlandês Clare Dwyer Hogg e do ator natural de Belfast Stephen Rea, em um poético artigo de opinião para o jornal Financial Times, filmado na fronteira.
“Jacob Rees-Mogg, você está certo. Você não precisa visitar o Norte da Irlanda para compreender a fronteira – você precisa ter vivido aqui”, diz Rea, de pé sobre a fronteira. “Nós vivemos aqui, e estamos segurando a respiração de novo.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário