Traição. – Me dediquei tanto nas eleições que deu ladrão lá em casa – choramingou. Mais uma vez o doutor tentou contemporizar: – Calma, o Bolsonaro vai matar todos os ladrões. Triste, tristíssimo, o Zé tentou explicar: – Doutor, o ladrão levou minha companheira (esposa, no dialeto dele). E lacrimejou de novo.


Traição


O Zig Zag é um bar que reúne a síntese da humanidade. Por lá circulam o que os estatísticos denominam segmentos representativos da espécie humana. Pense num tipo, numa etnia, num gênero, numa ideologia. Pense, há. O bar andou animado por causa das eleições. Todas as teorias foram analisadas. Até as fake news, que ganharam o exótico nome de boatos, estiveram em pauta. O lugar virou ponto de discussões rebuscadas, canhestras, empolgadas, rasas e até inteligentes. Nessa confusão toda, esqueceram-se do Zé Bronquinha, que merece um capítulo à parte.
Na realidade, o nome de pia é José das Chagas da Graça de Jesus da Silva. Piauiense que migrou para Brasília, é vítima da escola com partido, onde foi obrigado a ler. Revolucionário desde os 4 anos, quando armado quis combater o golpe militar, acha que, por causa do Silva, é primo, mesmo que distante, do Lula; daí uma devoção cega. Pois bem, passadas as eleições, eis que ressurge o valente Zé Bronquinha. O apelido é autoexplicativo, o cara é revoltado, contra tudo e contra todos. Abre duas exceções: às narrativas do Lula e à atuação dos árbitros da base da Gávea.
Voltando de volta ao nosso personagem do bar: ele chegou amarfanhado, torto, capenga e ressentido. Calado, sentou na mesa reservada aos desajustados sociais. O semblante de tristeza era tão grande que o doutor Alexandre, um advogado do bem, quebrou uma regra inquebrantável do bar e foi perturbar a solidão do Bronquinha. Com delicadeza e educação, perguntou ao revolucionário o motivo de tanta tristeza. Sem pestanejar, ele respondeu:
– Perdi tudo nessas eleições. E, agora, o que dizia está acontecendo. Claro e óbvio como a fábula do escorpião. É impossível contrariar a própria natureza. Há gente que acredita que sim. Lembro que, quando Collor assumiu, logo surgiram defensores dizendo que ele tinha evoluído, que o cargo abafaria a cleptomania que forjara o caráter dele. Deu no que deu! Não tenham dúvidas, tudo o que o Bolsonaro sempre disse que era, é. Não vai mudar – vaticinou, com os olhos marejados.
Com a delicadeza que lhe é característica, o doutor tentou consolar o amigo:
– Calma, a democracia é assim mesmo. Nas próximas eleições, o seu candidato pode ganhar. Não desista e pare de chorar.
Um longo suspiro pontuou o conselho amigo. Emocionado, Bronquinha abriu o coração:
– Me dediquei tanto nas eleições que deu ladrão lá em casa – choramingou.
Mais uma vez o doutor tentou contemporizar:
– Calma, o Bolsonaro vai matar todos os ladrões.
Triste, tristíssimo, o Zé tentou explicar:
– Doutor, o ladrão levou minha companheira (esposa, no dialeto dele).
E lacrimejou de novo.
Coube ao doutor dar por encerrada a prosopopeia botequeira:
– Bronquinha, meu querido, chifre é igual a consórcio: um dia, você vai ser contemplado.
Um silêncio reflexivo calou o bar. E o mais velho, Otávio, o soba, único com cadeira cativa, bradou:
– Somos todos cornos.
Vida que segue.
“De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo”.
Do sempre atual Apparício Torelly, o Barão de Itararé.
COPIADO  https://osdivergentes.com.br/

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