PARA ELAS, A DOR CONTINUA 'Colocaram um jacaré no meu corpo': as mulheres brutalizadas pela ditadura


Cecília Coimbra em foto no ano 200. Foto: Zulmair Rocha/Folhapress
PARA ELAS, A DOR CONTINUA

'Colocaram um jacaré no meu corpo': as mulheres brutalizadas pela ditadura




A história de Marcia

"Fui presa grávida, torturada e abortei"

"Ai, não tô bem. Acabei de saber que policiais com metralhadoras entraram na USP hoje para prender um aluno. Falaram que ele havia cometido um crime muito grave, não disseram qual. Olha, só de imaginar essa cena, meu estômago fica embrulhado. O mesmo acontece quando ouço o Bolsonaro querendo comemorar o aniversário da ditadura. Meu coração até dispara", diz a jornalista Marcia Basseto, de 63 anos, andando apressada até a cozinha para pegar café. Rapidamente, ela se senta. "Podemos começar?".
Marcia fala com sobriedade sobre quando foi presa e levada ao Dops em abril de 1977. Ela trabalhava em uma metalúrgica e, de madrugada, panfletava no local reclamando dos baixos salários. Era contra a guerrilha, mas viveu cinco meses em uma cela de mais ou menos dois metros quadrados, foi agredida até perder a consciência mais de uma vez, afogada e recebeu choques elétricos. Transferida para a penitenciária do Carandiru, também em São Paulo, descobriu que estava grávida. Mas, logo, perdeu o filho.
"Eu não comia na prisão, meu corpo era pele e osso. A comida que chegava era intragável. O arroz e o feijão cheiravam mal, normalmente estavam estragados, e a gente lavava a carne antes de colocar na boca para tentar amenizar o gosto. Dividia uma cela com duas mulheres.
Lá dentro, vivi todos os tipos de tortura: fui para o pau de arara, afogada em baldes com água e tomei choques na cadeira do dragão (uma espécie de trono de ferro, onde as pessoas eram eletrocultadas). Eles mandavam que eu sentasse nua e jogavam água em mim. Os choques aconteciam por todo o corpo. Me deitavam e jogavam baratas pelo meu corpo. Era um desespero.
Uma vez, dois policiais me tiraram da cela e me colocaram em um Fusca azul, vendada e deitada no banco de trás. Viajamos por horas, até que chegamos a um lugar ermo. Eles me tiraram do carro e me espancaram. Bateram tanto em mim, que achei que não sairia viva. Até que eles receberam uma chamada no rádio, que dizia: 'Tragam o peixe vivo'. Me colocaram no carro e me levaram de volta. Parecia que tinham quebrado todo o meu corpo.
A cela era muito pequena e não tinha vaso sanitário, só uma vala. Nós tínhamos que urinar e defecar ali. Aquilo ficava exposto e muitos ratos circulavam por ali. O cheiro era horrível. Eu não sabia, mas estava grávida quando fui presa. Eu namorava meu atual marido, que foi capturado pouco depois. Tínhamos 19 anos. Passei cinco meses no Dops, até ser transferida para o presídio do Carandiru.
Aos três meses de gravidez, tive uma hemorragia e muitas dores abdominais. Pensei que fosse uma consequência da tortura, mas eu estava tendo um princípio de aborto. Meu corpo conseguiu manter o bebê até os cinco meses. No Carandiru, o aborto aconteceu. Nossa, foi a pior sensação da minha vida, a de maior tristeza. Foi um baque que eu ainda não superei, tanto que ainda tenho dificuldade de falar disso. Olha, é difícil, mas preciso dizer que o aborto foi pior que a tortura.
Depois de ter sido solta e absolvida, tentei engravidar de novo, algumas vezes. Tive uma sequência de abortos. Isso construiu uma relação difícil entre mim e a maternidade, que veio depois, quando decidi adotar minha filha. Ela chegou em casa com dois dias de vida. Quando me ligaram e disseram que havia um bebê disponível, eu não perguntei nada. Queria aquele bebê de qualquer jeito, mesmo sem conhecê-lo. Minha filha é trans e estuda design. Somos amigas, mas brigamos, como toda mãe filha.

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