Repressão aos negros
Documentos mostram como a ditadura espionou movimento contra o racismo, com agentes infiltrados e perseguições
A ditadura militar instaurada há exatos 55 anos no Brasil espionou, perseguiu e minou a luta de movimentos raciais no Brasil na segunda metade da década de 1970 e início de 1980. Documentos confidenciais obtidos pelo UOL junto ao Arquivo Nacional revelam que militares se infiltraram nos grupos, ficharam os líderes e tentaram a todo custo impedir que a luta dos negros crescesse.
Segundo os documentos, o movimento negro se configurava um problema porque repudiava o regime, contestava a propaganda oficial de um país sem racismo e encampava a necessidade do restabelecimento da democracia.
Para a ditadura, o racismo servia ainda como "desculpa" para a criação de grupos que visavam prejudicar a "ordem social" do país. Além disso, os relatórios viam ligação estreita entre muitos desses líderes e movimentos de esquerda que lutavam contra o governo militar.
Durante o regime, 41 líderes negros morreram ou desapareceram após supostas ações militares, segundo dados da Comissão da Verdade de São Paulo. Há ainda relatos por todo o país de centenas de prisões políticas e casos de tortura envolvendo integrantes de lutas contra o racismo. Nos anos 1970, a luta
ressurge
A percepção dos militares de que haveria risco com o movimento negro
teve início em meados da década de 1970. No dia 7 de fevereiro de 1975, um
primeiro informe expedido pelo Exército foi encaminhado ao SNI (Serviço
Nacional de Informações) e ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social)
com informações de um grupo no Rio de Janeiro "liderado por jovens negros
de nível intelectual acima da média".
O documento cita que havia influência norte-americana para os jovens,
que, inspirados, estariam "com pretensões de criar no Brasil um clima de
luta racial entre brancos e pretos". O movimento negro dos Estados Unidos
é citado em vários desses documentos como responsável por "inspirar"
negros no país. A partir dali, a ditadura abriu os olhos e passou a espionar possíveis
grupos.
Em um extenso relatório assinado pelo SNI em 25 de julho de 1978, o
órgão do governo afirma que a observação começou de fato em 1976, quando
"os órgãos de informações tiveram suas atenções despertadas para a
proliferação, nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, de associações
culturais destinadas à propagação da cultura negra no Brasil".
O documento pede uma observação especial para evitar a adesão de mais
pessoas. "Embora não se constitua, no momento, em um 'movimento de massa',
o nível alcançado lhe confere evidente importância, com possibilidades de
evoluir com proporções prejudiciais à ordem política e social."
Em agosto de 1978, um documento da Polícia Federal do Rio Grande do Sul
mostra como os órgãos de investigação da ditadura tiveram preocupação.
"Esses movimentos revelam o incremento das tentativas subversivas de
exploração de antagonismos raciais em nosso país, merecendo uma observação
acurada das infiltrações no movimento 'black', tendo em vista que, se
porventura houver incitação de ódio ou racismo entre o povo, caberá a Lei de
Segurança Nacional", dizia num trecho (reproduzido abaixo).
Movimento espionado
Secreto por muitos anos, um outro documento do Ministério do Exército de
outubro de 1979 mostra como os militares infiltraram pessoas dentro do
recém-criado MNU (Movimento Negro Unificado). "O método utilizado foi a
infiltração em entidades dedicadas ao estudo da cultura negra, por meio de
palestras em reuniões e simpósios", informou.
A investigação espiã deixou clara uma preocupação específica com a
Bahia, que estaria liderando o movimento com a temática negra no país. Da
espionagem saíram nomes de líderes que deveriam ser acompanhados. Muitos deles
viriam a ser presos numa tentativa de enfraquecer o movimento.
"Esta foi mais uma manifestação do MNS [Movimento Negro de
Salvador], que vem elaborando uma campanha artificial contra a discriminação
racial no BRASIL e, em particular, na BAHIA", diz um trecho do texto,
citando um evento realizado pela organização.
"Ficou delineado que, em SALVADOR, os 'centros de luta' têm por
função 'mobilizar, organizar e conscientizar a população negra nas favelas, nas
invasões (de terras urbanas), nos alagados, nos conjuntos habitacionais, nas
escolas, nos bairros e nos locais de trabalho, visando a formar uma consciência
dos valores da raça'", completa o documento.
Há registro de que a perseguição continuou até o início de abertura
política, com a entrada de João Figueiredo (1979-1985) no poder. Em documento
de 7 de junho de 1981, o SNI faria um informe de "propaganda adversa"
do jornal "O Trabalho". À época, a publicação abordava, entre outros
pontos, que "o negro, na medida em que se organiza, passa a ser
considerado um perigo".
O serviço pediu atuação para impedir a circulação. "Da análise
empreendida, verifica-se que o jornal 'O TRABALHO', em seu exemplar n° 9 106,
de 20 a 26 de maio de 1981, volta a infringir dispositivos que permitem o seu
enquadramento legal."
Segundo
país mais negro do mundo
Para o professor da USP (Universidade de são Paulo)
Ricardo Alexino Ferreira, a ideia central da ditadura era "ter controle
sobre tudo e todos", por isso a criação de movimentos sociais sempre foi
vista com temor.
"Qualquer movimento social seria uma
temeridade para esse projeto autoritário", diz. No caso racial, Ferreira
lembra que o Brasil é o segundo país mais negro do mundo, e a união de pessoas
pela raça poderia apresentar riscos ao regime.
"O
racismo ira causar um movimento gigante. Ainda mais que o negro brasileiro
começava a observar a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos.
Nomes como os de Rosa Parks, Martin Luther King, Malcom X e os Panteras Negras
já eram inspiração para muitos negros brasileiros", afirma.
Um dos
nomes mais citados nos documentos confidenciais da ditadura era o do ativista
Abdias do Nascimento, visto como uma liderança intelectual. "Naquela
época, Abdias do Nascimento já trazia para o Brasil o 'Teatro Experimental do
Negro', que criou a cultura negra norte-americana de resistência", diz Alexino
Ferreira.
Alto poder de contestação
A professora Flávia Rios, da UFF (Universidade Federal Fluminense),
afirma que o temor dos militares aos movimentos negros tem vários fatores de
influência.
"Um deles é que muitos integrantes do movimento negro também eram
integrantes de outras organizações semiclandestinas, ou mesmo clandestinas, de
esquerdas políticas organizadas, marxistas, trotskistas, comunistas e outras
denominações. Isso os colocava em um circuito já de constante observação da
ditadura", afirma.
Outra questão geradora de incômodo aos militares era que os movimentos
traziam ao debate o racismo e a discriminação no Brasil. "Isso ia de
encontro ao discurso oficial de democracia racial no país. Enquanto isso, o
Estado se representava nacionalmente e internacionalmente como um país que não
tinha conflitos, desigualdade nem discriminação", aponta ela.
Um terceiro fator notado pela professora foi a influência do movimento
negro norte-americano e movimentos de libertação dos países africanos. "A
questão racial no mundo era bastante emblemática, bastante significativa e de
um alto poder mobilizatório de contestação. Em particular, por exemplo, temos
os panteras negras, de quem as ideias chegavam às lideranças negras e ativistas
negros brasileiros. Havia um temor da ditadura em relação a essas ideias, que
eram revolucionárias", diz.
Na época, a organização cultural de bailes, por exemplo, também era
vista com grande preocupação. "No Rio, em São Paulo e na Bahia, os bailes
'black' eram recepção das ideias de orgulho negro americano e aglomeravam a
juventude negra. Eram grandes salões com espaço para mais de 2.000, 3.000
pessoas reunidas. E esses negros jovens eram tidos como um temor pelo
aglomerado, sobretudo das periferias", afirma a professora.
Uso de 'arapongas'
O professor Andersen Figueiredo, mestre em história pela UFRB
(Universidade Federal do Recôncavo Baiano), fez sua dissertação com base nos
ataques aos movimentos negros da Bahia no regime militar. Ele conta que havia
constante perseguição aos líderes.
"Sempre que eles deixavam as reuniões, eram rotineiramente
vigiados, seguidos pelos agentes da polícia. Foi um momento tenso para todos
que militaram na década de 1970 e início de 1980", afirma.
Muitas dessas perseguições, diz, vinham de informações adquiridas pelo
monitoramento oficial, seja com pessoas infiltradas, seja por fotografias ou
mesmo acesso a conteúdo de encontros.
"Uma das pautas era como o negro poderia se inserir na política
para retomada da democracia. As reuniões eram clandestinas, podiam ocorrer em
vários bairros, sem prévia convocação. Isso foi ganhando espaço, e não havia
locais para esses militantes se reunirem por causa da perseguição da polícia à
época. Os 'arapongas' iam para ver o que estava sendo discutido", afirma.
Por conta do monitoramento dos movimentos, quem participava das reuniões
sofria constantes abusos. "Além de perseguidos, muitos ativistas foram
presos, outros perderam seus empregos por frequentar as reuniões do movimento
negro. Também houve uma perseguição psicológica", lembra.
Mortos ou desaparecidos foram 41 durante o regime. O último
documento disponível no Arquivo Nacional sobre espionagem aos movimentos negros
data de 1981 -quatro anos antes do fim da ditadura militar.
Foram 41 mortos ou desaparecidos durante o regime. A pesquisa feita pela
reportagem aponta que as perseguições e espionagem oficiais, segundo documentos
do Arquivo Nacional, perduraram ao menos até 1981 -quatro anos antes do fim da
ditadura militar.
Arte/UOL
Publicado em 31 de março de 2019.
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