Balcãs
"Liderança do partido bósnio defendia a instauração de um Estado islâmico"
O major-general Carlos Branco fala da experiência na antiga Jugoslávia que serve de base ao livro "A Guerra nos Balcãs"
O
major-general Carlos Branco exerceu funções na NATO e na ONU e esteve
também no Afeganistão, mas é a sua experiência na antiga Jugoslávia que
serve de base ao livro A Guerra nos Balcãs - Jihadismo, Geopolítica e Desinformação, lançado quinta-feira às 18.00 na Comissão Portuguesa de História Militar
No
seu livro sobre as guerras nos Balcãs fala várias vezes de casais
mistos, por exemplo um sérvio e uma croata. Foram estes os jugoslavos
que mais sofreram?
É difícil
dizer quem sofreu mais com a guerra. Certamente que os casais mistos
sofreram, mas não necessariamente mais do que os outros. Sofreram de
outra maneira. Sofreram a perda da sua identidade, da identidade
jugoslava, tendo agora de fazer escolhas dilacerantes. É impossível
estabelecer uma métrica para o sofrimento. O sofrimento não está
diretamente relacionado com etnicidade ou com o género. Eventualmente
uns terão sofrido mais do que outros. A explicação prende-se mais com as
especificidades locais dos sítios onde se encontravam. A intensidade da
guerra variou de local para local e ao longo do tempo.
Conta
o caso da alemã que recusou ser vista como nazi e até acabou agredida. A
memória das alianças locais na Segunda Guerra Mundial estava bem
presente nas guerras balcânicas de 1991-1995?
A
memória dessas alianças estava bem presente, sobretudo para os sérvios
da Krajina. Era frequente encontrar pessoas, sobretudo as mais idosas,
com familiares próximos mortos pelas forças croatas Ustaše durante a
Segunda Guerra Mundial. As feridas da Segunda Guerra Mundial tinham sido
insuficientemente saradas. A subida de Tudjman ao poder e a narrativa
fascizante e antissemita do novo regime croata vieram avivar essas
memórias. As purgas e as perseguições feitas aos sérvios da Croácia, a
não consagração na nova Constituição croata do estatuto de nação,
passando a ser considerados cidadãos de segunda classe, a recuperação de
símbolos do Estado fascista croata como a bandeira e a moeda fizeram o
resto. Os intelectuais também deram o seu contributo. A disputa sobre o
número de mortos no campo de concentração de Jasenovac e as tentativas
revisionistas da história ajudaram ao desenlace fatal. Estava instalado o
medo. Isso explica o levantamento sérvio na Croácia.
Considera que os sérvios foram diabolizados num conflito com vários culpados?
Preferia
utilizar a expressão responsabilidade em vez de culpa. Todos os grupos
étnicos, ou antes, as elites, sobretudo as políticas, têm a sua
quota-parte de responsabilidade no desenrolar dos acontecimentos.
Naquele conflito, como em quase todos os conflitos desta natureza, não
há santos de um lado e pecadores do outro. Em última análise, cada grupo
via o oponente como uma ameaça à sua sobrevivência. A diabolização do
oponente faz parte da guerra. Contudo, o que aconteceu nos Balcãs foi
mais do que isso e envolveu a participação direta das grandes potências.
A tarefa estava facilitada porque os interesses de certos grupos
coincidiam com os interesses das grandes potências. Por isso, tanto os
croatas como os muçulmanos da Bósnia tiveram empresas de relações
públicas a trabalhar para si, pagas pelos seus mentores. O tratamento
desigual dado aos diferentes grupos foi a consequência do discurso
imposto pelos mais fortes na defesa dos seus patrocinados e, por
conseguinte, dos próprios interesses. É nesta lógica que se deve
entender a diabolização dos sérvios. A pouca clarividência das
lideranças sérvias da Croácia e da Bósnia também ajudou.
Com a religião a definir nacionalidades era inevitável que os bósnios muçulmanos pedissem ajuda a extremistas estrangeiros?
Não
necessariamente. Muçulmano não é sinónimo de extremismo. O problema é
que a liderança do partido bósnio era extremista e defendia a
instauração de um Estado islâmico teocrático. A esmagadora maioria dos
elementos seculares foram expulsos do partido logo em 1992. É neste
contexto e não noutro que se explica o recurso ao apoio da Al-Qaeda e
dos países que defendiam o proselitismo religioso radical. É
absolutamente indesculpável a complacência ou, se quisermos, a distração
tida com o facto de a Bósnia se ter tornado durante a guerra uma frente
da jihad global promovida pela Al-Qaeda.
Como classifica então a ação da comunidade internacional na ex-Jugoslávia?
É
difícil falar da comunidade internacional como uma entidade homogénea.
Poderia associar comunidade internacional com as Nações Unidas ou com o
Conselho de Segurança. Fazê-lo seria, no entanto, redutor. Diferentes
atores, nomeadamente as grandes potências, apoiaram os seus
patrocinados. Os países islâmicos, por exemplo, apoiaram um dos grupos
em presença. Na realidade, o que estava em jogo tinha implicações de
natureza geopolítica traduzida no controlo dos Balcãs. Foi com base
nesta premissa que se comportaram e atuaram os grandes atores da cena
internacional.
As tropas portuguesas tiveram uma missão eficaz e pacificadora?
Enquanto
estive na Jugoslávia não havia contingentes militares nacionais nas
forças da ONU. Esse tipo de participação ocorre após a assinatura do
acordo de Dayton e no âmbito da operação da NATO. As forças nacionais
participaram num esforço coletivo que envolveu muitos países. Revelaram
ser um poderoso instrumento de política externa do Estado português; dos
mais importantes, talvez mesmo o mais importante, no pós-guerra fria.
Os militares portugueses prestigiaram o país, e foram considerados e
estimados pelos seus pares.
Qual a memória mais forte de um episódio vivido na ex-Jugoslávia?
É
difícil isolar um episódio e dizer que foi o mais marcante. Pelo menos
três serão difíceis de esquecer: as patrulhas que fiz na Krajina a
seguir à operação militar do Exército croata, em agosto de 1995. O
cenário dantesco de corpos de civis mortos nas bermas das estradas, das
habitações ainda a arder e a evidência da partida apressada ficará
gravada na memória para sempre; o acionamento de uma mina na zona de
confrontação, na Krajina Sul; e o "desconforto" de estar na zona de
morte de uma barragem de artilharia, na região de Bihac, felizmente sem
consequências físicas.
Porquê escrever este livro?
São
vários os motivos que me levaram a escrever este livro. Com base
naquilo que vivenciei percebi que havia outras leituras possíveis dos
acontecimentos, nalguns casos dissonantes daquelas consideradas
oficialmente. Julguei importante partilhá-las e desse modo contribuir
para a sua melhor compreensão. O conflito na Bósnia é talvez um dos
conflitos dos tempos modernos mais mal explicados. Por exemplo, poucos
analistas ocidentais consideraram a Bósnia uma frente da jihad global
promovida pela Al-Qaeda. Este livro é, de certo modo, um ajuste de
contas com a minha consciência e com a verdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário