Na rotina de triagem de uma emergência hospitalar, a regra é clara, o paciente em estado mais grave passa à frente dos outros. O procedimento virou polêmica a partir de uma enquete do programa Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo, na última quinta-feira: “Quem salvar primeiro? O traficante em estado grave ou o policial levemente ferido?”
A pergunta, que profissionais de saúde são obrigados a  interpretar do ponto de vista ético, ganhou grandes proporções nas redes sociais e se transformou na campanha #EuEscolhoSalvarOPolicial . Os julgadores do tribunal das redes sociais levaram o debate a outro patamar. A ética foi deixada de lado e deu lugar a uma ode à cultura do justiçamento.
Além de textões e montagens com discursos de ódio, a apresentadora sofreu e continua sofrendo ataques pessoais. Grupos promovem boicotes ao seu programa e a marcas que ela divulga. Em vídeo postado na rede, policiais chegam a colocar Fátima Bernardes na situação de uma vítima de estupro. “A gente não quer que aconteça, mas pode acontecer”, chegou a afirmar um PM.

O deputado federal Jair Bolsonaro, para variar, resolveu usar o debate como palanque político. Se aproveitando da comoção gerada pela morte de quatro policiais militares na queda de um helicóptero – a perícia não encontrou marcas de tiros na aeronave  – na Cidade de Deus, gravou um vídeo contra a apresentadora durante o velório. Na filmagem, ele culpa a mídia e Fátima Bernardes por mortes de policiais. Além de convocar seus seguidores a combater os direitos humanos e o politicamente correto.  

Na polêmica edição do programa, os convidados debatiam um dos dilemas da trama do filme “Sob Pressão”, que se passa em uma emergência de hospital público onde os profissionais precisam lidar com o tipo de situação que a enquete se refere. Seguindo o padrão médico, os participantes do programa decidiram que o traficante deveria ser atendido, afinal correria risco de morte e o policial, não.
Para profissionais de saúde, tanto o policial quanto o traficante são pacientes. O artigo 1 do código ética médico dá conta que a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de nenhuma natureza. Caso o profissional passe por cima disso, é aberto um precedente para que ele se recuse a atender por conta da cor da pele, religião ou posicionamento político em outros casos de emergência.
“A discussão destacou que as questões éticas da profissão de médico devem prevalecer sobre os julgamentos de valor, concluindo que todos devem ser atendidos, sem distinção, e de acordo com a gravidade de seu caso. No debate deste ou de qualquer outro tema, o programa preza sempre pelo respeito a todos”, diz nota divulgada pela emissora após a perseguição à apresentadora.
Todos têm direito constitucional a atendimento médico
No entanto, talvez pela pressão de ter tido os filhos citados por policiais,  Fátima Bernardes acabou pedindo desculpas no programa desta terça-feira, dia 22. Ao lado de um porta-voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a apresentadora decidiu clarificar que ela e o programa estão sempre do lado da lei e afirmou que “quero deixar claro que entre o traficante e o policial, eu escolheria o policial”.
Porém, a lei diz justamente que não deve haver distinção no atendimento. Todos têm direito constitucional a atendimento médico. Da mesma forma que o justiçamento, defendido pelos participantes da campanha inflados por Bolsonaro ao levantarem a bandeira do “bandido bom é bandido morto”, é crime. Fazer justiça com as próprias mãos, seja ela de que maneira for, se por meio de um linchamento ou por deixar de atender um paciente, não é estar do lado da lei.
Fátima Bernardes perdeu a oportunidade de conduzir um debate mais amplo sobre os acontecimentos dos últimos dias. Sobre ética, direitos humanos e justiçamento. A tal da crise ética parece mesmo ser epidêmica. Defender a ética parece ter virado crime para parte da população.