Publicação exclusiva no UOL Consultor revela bastidor de convívio com Dantas Dono do banco Opportunity foi primeiro cliente de Mário Rosa
?TRAFICANTE!?, ?PEDÓFILO!", ?SONEGADOR!?
Um
tempo desses, um amigo que tinha saído das redações veio me pedir
conselhos sobre como trabalhar “do lado de cá”. O lado "de lá” é o
jornalismo. Quando deixamos a profissão, mudamos de lado. Segundo essa
visão, bastante incrustada na cultura jornalística, atuamos em lados
opostos. Não acho que seja bem assim, mas é assim que os atores desse
jogo veem a partida.
Meu amigo veio me procurar porque, àquela altura, já havia me consolidado na atividade. Disse a ele o que realmente penso: como as pessoas avaliam as outras muito pelos resultados, tendem a acreditar que aqueles que prosperaram profissionalmente tenham alguma coisa para ensinar.
No meu caso, lembrei a ele, tinha tomado inúmeras decisões erradas. Deixei a profissão sem saber exatamente porquê. Comecei uma profissão nova que não sabia qual era. Não fazia ideia se seria promissora. Ou seja, fiz escolhas sem pensar e acabei “acertando” meio sem querer. Vejo hoje que, ao sair das zonas de conforto, flertei com o desastre, mas, ao mesmo tempo, isso abriu para mim novas oportunidades para as quais o destino se encarregou de me guiar. Não era exatamente um exemplo de modelo decisório, mas uma casualidade estatística. Felizmente, acabou dando certo, fui feliz pra burro, mas à minha revelia. Minha autobiografia facilmente se chamaria “Apesar de mim”.
- Olha, não acho que sei algo a mais do que você, sinceramente. Se puder compartilhar apenas uma coisa, que só percebi bem depois, é que sempre me joguei inteiro no que vivi. Fui jornalista e adorava. Quando perdi o encanto, saí, entrei nesse troço aqui de coração. Olhando hoje, se posso enxergar uma característica, acho que fiz as coisas que realmente queria fazer e não fiz o que não queria. Quando a gente dá o melhor que tem, pode até não ser o suficiente, mas estamos fazendo o máximo que podemos. E, quando fazemos o nosso máximo, as chances de acertar são maiores do que quando estamos apenas parcialmente. É a única coisa que acho que eu sei.
E realmente eu abracei totalmente a profissão que eu estava aprendendo a conhecer. Um dos meus primeiros casos de crise foi o de um bingo eletrônico que,lá pelo ano 2000, estava provocando um enorme bafafá. Era o Poupa Ganha. Seu dono era um empresário piauiense, Paulo Guimarães. O negócio consistia em comprar espaços de publicidade na TV aberta, fazer as promoções e muita propaganda. Estava espalhado pelo país e rendia um dinheirão com as apostas.
Só que o dono era também proprietário de uma grande distribuidora de medicamentos e, àquela altura, havia sido instalada uma CPI para investigar o narcotráfico. Veja só que encrenca: certa vez, um lote de medicamentos de tarja preta havia sido extraviado. Tecnicamente, remédios são drogas. E a tal CPI queria vincular o pobre coitado (talvez rico coitado) ao tráfico de drogas, veja só!
A internet ainda estava dando seus primeiros passos. E o Piauí era ainda um lugar remoto, sobretudo para a mídia do centro-sul. De repente, aparece um empresário piauiense “suspeito” de tráfico de drogas (o extravio de um lote de remédios) e pronto: ele era tratado por alguns membros da CPI como traficante, e a mídia, sempre sedenta nessas horas, podia embarcar facilmente nessa viagem, sobretudo porque era secundada por suspeitas vazadas “em off”, ou seja, sem autoria, por um parlamentar empoderado pela força de uma CPI. Claro, isso seria mortal para o bingo. Quem é que aposta no jogo de um traficante?
Para piorar, era vazado no zum-zum-zum da CPI, aqui e ali, que o “traficante” operava uma “pista clandestina” numa cidade do “interior do Maranhão”, a 600 quilômetros da capital maranhense, SãoLuís.
Na verdade, a tal pista no interior do Maranhão era homologada pelas autoridades aeronáuticas e operada pela distribuidora. O “interior do Maranhão” -- uma descrição maldosa e distorcida que servia apenas para sugerir um lugar remoto e obviamente suspeito -- estava situada na cidade de Timon. Quem já foi a Teresina, capital do Piauí, sabe que Timoné uma espécie de bairro da capital piauiense. Geograficamente, fica no Maranhão, mas, na prática, faz parte da Grande Teresina.
Logo no começo, para mim, ser consultor de crise era atuar como uma espécie de assessor de imprensa de porta de CPI. Interagia diretamente com os repórteres escalados para a cobertura da comissão. O negócio deles era emplacar matérias. E a suspeita era realmente apetitosa, embora inspirada por interesses nada republicanos de alguns parlamentares que, de um lado, queriam aparecer na imprensa, enquanto nos bastidores mandavam recados e mais recados para o “investigado”, empresário de sucesso. Para piorar, os concorrentes festejavam o infortúnio do adversário. E alguns veículos de comunicação, que pretendiam disputar o mercado do Poupa Ganha, estavam predispostos a veicular a suspeita nos seus noticiários.
Enfim, um nó difícil de desatar e com o qual convivi durante meses.
Lembro que um dia procurei um repórter que cobria a CPI e expliquei a ele o que estava acontecendo. Protocolarmente, ele disse que ia registrar “o outro lado”. Eu reagi: como assim o outro lado? Não existem dois lados. O fato é um só: a pista não é clandestina e extravio de remédios não étráfico de drogas.
Ele ouviu e, secamente, respondeu: “Tudo bem. Vou colocar na matéria como o outro lado, como argumento da defesa".
Ou seja, primeiro vinha a “suspeita da CPI”, como fato principal, e a explicação era apenas um detalhe no pé da matéria. Quem é que pode ganhar uma batalha desigual como essa? Simplesmente não pode. Até porque a cobertura de CPIs é feita de Brasília e ninguém sai de lá para averiguar in loco uma “pista clandestina a 600 quilômetros de São Luís”.
Nesse diálogo de surdos, decidimos tirar uma foto da pista num enquadramento que mostrasse a pista do aeroporto de Teresina. As duas estavam situadas a uns três quilômetros de distância. Alugamos um helicóptero. Era possível ver perfeitamente que a pista em questão era até maior e apta para receber aeronaves como Boeings. Passamos a mostrar a foto para os repórteres, assim como o boletim de ocorrência da VigilânciaSanitária que atestava o extravio dos medicamentos.
Com o tempo e as suspeitas crescentes quanto aos algozes parlamentares de credibilidade duvidosa, o tema foi perdendo força. O “traficante” era um empresáriopragmático e, quando percebeu que um canal de televisão queria competir no mercado de bingos eletrônicos, achou que chegara a hora de acabar com o negócio. Fechou o bingo, pagou todos os fornecedores e apostadores e a polêmica desapareceu.
(Curioso registrar que naquele Brasil não tão distante assim recebi meu pagamento à vista. Era como lidava com esse perfil de clientes para evitar calotes. Recebia o equivalente a seis meses de trabalho antecipadamente assim que me incorporava à causa. Cerca de US$ 50 mil,pagos em reais. No dia em que fui receber, fiquei um tanto surpreso: o encarregado de me pagar apareceu com uma caixa enorme lacrada. Dentro, o valor estava dividido em notas de pequeno valor, amassadas, formando um grande volume. Daí me dei conta de que era dinheiro de bingo, com cédulas de um, cinco e dez reais bem amassadas. Parecia dinheiro de igreja. Era dinheiro do povo, arrecadado no Poupa Ganha. Levei a caixa para casa e, no dia seguinte, depositei em minha conta. Emiti a nota e a vida seguiu. Com o passar dos anos, esse país primitivo iria desaparecer do meu dia a dia. À medida que fosse trabalhando para corporações mais sofisticadas, o relacionamento bancário seria todo eletrônico. Ao longo de minha carreira, pude sentir que os avanços em termos de boas práticas bancárias realmente chegavam para ficar. Lembro o caixote de notas com uma certa nostalgia do que era trabalhar na minha nova profissão nos seus primórdios).
O “pedófilo” veio logo depois. Era assim que era retratado Carlos Santiago, paulista, dono da maior rede de combustíveis do estado de São Paulo, a Aster Petróleo. Naquela virada do milênio, a Aster aparecia como um fenômeno que incomodava as cinco grandes multinacionais de combustível que, havia décadas, dominavam o setor no pais. A Aster possuía quase 300 postos no coração estratégico do sistema, a cidade e o interior de São Paulo. Havia crescido graças a um lance ousado do seu criador: ele conseguiu algumas decisões judiciais que dispensavam o pagamento de certos impostos dos combustíveis. Essa vantagem econômica ele usava para lubrificar e expandir rapidamente sua rede.
O cartel das empresas internacionais, espertamente, decidiu lançar uma campanha institucional com publicidade e amplo apoio de veículos de comunicação, alertando para o perigo dos postos que vendiam gasolina adulterada. Era uma campanha de utilidade pública, mas com o propósito econômico de tirar do mercado os postos que se utilizavam dessa artimanha.
Acontece que, no caso da Aster, não havia gasolina adulterada. Ela crescera vendendo bons produtos, turbinada pelas liminares que garantiam a ela margem maior e, portanto, maior capacidade de expansão, sobretudo no território do maior mercado consumidor do país. Então o que fizeram os concorrentes? Descobriram que o dono da Aster estava respondendo por algo ligado à prostituição infantil. Nada tinha a ver com a qualidade da gasolina, mas um “pedófilo” bem que vinha a calhar.
A história era realmente delicada. Certa vez, ele estava no mesmo lugar que uma garota de programa, que aparentava ser maior de idade. Mas a cafetina da moça estava com problemas com polícia e armou-se um flagrante contra Carlos, que foi até preso. Atenção: Carlos foi inocentado ao fim dessa história toda, anos depois, mas, naqueles dias, a chapa dele estava assando.
O caso não era dos mais fáceis. Mas nosso esforço era demonstrar que a gasolina dos postos era de primeira e que eventuais questionamentos sobre o dono da distribuidora em nada prejudicavam os consumidores.
Eu achava o máximo viver essas complicações, confesso.
Logo depois dos postos, surgiu em minha vida um típico empreendedor brasileiro. Seu nome era Paulo Panarello, dono da Panarello, a maior distribuidora de medicamentos do país na época. Sua base de operações era Goiás, estado que havia atraído inúmeras empresas através de incentivos fiscais.
Eis que, de repente, surge uma CPI dos medicamentos e era preciso encontrar um vilão. Como os laboratórios farmacêuticos eram entidades internacionais, desde logo o governo decidiu que eles não poderiam ser molestados. Para não prejudicar a imagem do país no exterior. Sobrou então para as distribuidoras nacionais, Panarello à frente. Por ser a maior, era o maior alvo. As menores automaticamente se associaram aos deputados, oferecendo inclusive munição para demonizar a distribuidora líder.
Daí a distribuidora, convertida agora em “sonegadora", acabou se tornando o foco de atenção dos investigadores parlamentares. Quanto mais batessem nela, mais faziam o jogo das outras, que queriam se apropriar do espólio que estava em jogo.
Paulo Panarello, um goiano simples, com tino raro para o comércio, abrira a distribuidora na marra. Vivia totalmente dedicado à empresa e à família. Passamos por aquela tempestade, com muita dificuldade. Lembro do jatinho que ele tinha: o carpete tinha uma capa plástica. Um jatinho particular e plástico para proteger o carpete da cabine? Esse era o Paulo.
Ele foi depor na CPI. Não era nenhum tribuno. Falava como caipira e era tímido. A empresa estava tão mobilizada que os funcionários passaram o depoimento todo, transmitido pela TV, rezando, alguns de joelho.
O dono havia contratado um ex-secretário da Receita Federal que produziu bastante conteúdo que inocentava a empresa. O desgaste foi, aos poucos, diminuindo. Essa era uma guerra midiática de guerrilha. A empresa não era tão importante a ponto de ganhar muito destaque negativo,mas qualquer arranhãozinhodoía pra burro.
Fizemos algumas alianças, naquele momento, com veículos de comunicação. Fizemos campanhas institucionais, propaganda. E, de vez em quando, uma matéria boa aqui ou ali começou a sair. Era o suficiente.
No auge da CPI, fizemos road shows em redações. O âncora Boris Casoy nos recebeu com grande gentileza e generosidade.
Anos depois, Panarello vendeu a empresa para uma multinacional. De hábitos simples, não ficou muito confortável com a fortuna. Gostava mesmo era de circular freneticamente pelas filiais, rodar o país em seu jatinho de carpete plastificado, negociar, comprar equipamentos. Com a aposentadoria milionária que conquistou, foi entrando em depressão. Até que um dia se suicidou de madrugada, jogando-se da varanda de seu apartamento de altíssimo padrão, em Goiânia.
Vivi muitos dramas de perto.
Eu os chamava de “cases”, até um deles acontecer comigo. Passei a ver que aquilo era vida, a minha e a dos outros. Seja como for, essas experiências ajudaram a definir meu modelo de atendimento. E ainda tinha muita coisa para acontecer.
Meu amigo veio me procurar porque, àquela altura, já havia me consolidado na atividade. Disse a ele o que realmente penso: como as pessoas avaliam as outras muito pelos resultados, tendem a acreditar que aqueles que prosperaram profissionalmente tenham alguma coisa para ensinar.
No meu caso, lembrei a ele, tinha tomado inúmeras decisões erradas. Deixei a profissão sem saber exatamente porquê. Comecei uma profissão nova que não sabia qual era. Não fazia ideia se seria promissora. Ou seja, fiz escolhas sem pensar e acabei “acertando” meio sem querer. Vejo hoje que, ao sair das zonas de conforto, flertei com o desastre, mas, ao mesmo tempo, isso abriu para mim novas oportunidades para as quais o destino se encarregou de me guiar. Não era exatamente um exemplo de modelo decisório, mas uma casualidade estatística. Felizmente, acabou dando certo, fui feliz pra burro, mas à minha revelia. Minha autobiografia facilmente se chamaria “Apesar de mim”.
- Olha, não acho que sei algo a mais do que você, sinceramente. Se puder compartilhar apenas uma coisa, que só percebi bem depois, é que sempre me joguei inteiro no que vivi. Fui jornalista e adorava. Quando perdi o encanto, saí, entrei nesse troço aqui de coração. Olhando hoje, se posso enxergar uma característica, acho que fiz as coisas que realmente queria fazer e não fiz o que não queria. Quando a gente dá o melhor que tem, pode até não ser o suficiente, mas estamos fazendo o máximo que podemos. E, quando fazemos o nosso máximo, as chances de acertar são maiores do que quando estamos apenas parcialmente. É a única coisa que acho que eu sei.
E realmente eu abracei totalmente a profissão que eu estava aprendendo a conhecer. Um dos meus primeiros casos de crise foi o de um bingo eletrônico que,lá pelo ano 2000, estava provocando um enorme bafafá. Era o Poupa Ganha. Seu dono era um empresário piauiense, Paulo Guimarães. O negócio consistia em comprar espaços de publicidade na TV aberta, fazer as promoções e muita propaganda. Estava espalhado pelo país e rendia um dinheirão com as apostas.
Só que o dono era também proprietário de uma grande distribuidora de medicamentos e, àquela altura, havia sido instalada uma CPI para investigar o narcotráfico. Veja só que encrenca: certa vez, um lote de medicamentos de tarja preta havia sido extraviado. Tecnicamente, remédios são drogas. E a tal CPI queria vincular o pobre coitado (talvez rico coitado) ao tráfico de drogas, veja só!
A internet ainda estava dando seus primeiros passos. E o Piauí era ainda um lugar remoto, sobretudo para a mídia do centro-sul. De repente, aparece um empresário piauiense “suspeito” de tráfico de drogas (o extravio de um lote de remédios) e pronto: ele era tratado por alguns membros da CPI como traficante, e a mídia, sempre sedenta nessas horas, podia embarcar facilmente nessa viagem, sobretudo porque era secundada por suspeitas vazadas “em off”, ou seja, sem autoria, por um parlamentar empoderado pela força de uma CPI. Claro, isso seria mortal para o bingo. Quem é que aposta no jogo de um traficante?
Para piorar, era vazado no zum-zum-zum da CPI, aqui e ali, que o “traficante” operava uma “pista clandestina” numa cidade do “interior do Maranhão”, a 600 quilômetros da capital maranhense, SãoLuís.
Na verdade, a tal pista no interior do Maranhão era homologada pelas autoridades aeronáuticas e operada pela distribuidora. O “interior do Maranhão” -- uma descrição maldosa e distorcida que servia apenas para sugerir um lugar remoto e obviamente suspeito -- estava situada na cidade de Timon. Quem já foi a Teresina, capital do Piauí, sabe que Timoné uma espécie de bairro da capital piauiense. Geograficamente, fica no Maranhão, mas, na prática, faz parte da Grande Teresina.
Logo no começo, para mim, ser consultor de crise era atuar como uma espécie de assessor de imprensa de porta de CPI. Interagia diretamente com os repórteres escalados para a cobertura da comissão. O negócio deles era emplacar matérias. E a suspeita era realmente apetitosa, embora inspirada por interesses nada republicanos de alguns parlamentares que, de um lado, queriam aparecer na imprensa, enquanto nos bastidores mandavam recados e mais recados para o “investigado”, empresário de sucesso. Para piorar, os concorrentes festejavam o infortúnio do adversário. E alguns veículos de comunicação, que pretendiam disputar o mercado do Poupa Ganha, estavam predispostos a veicular a suspeita nos seus noticiários.
Enfim, um nó difícil de desatar e com o qual convivi durante meses.
Lembro que um dia procurei um repórter que cobria a CPI e expliquei a ele o que estava acontecendo. Protocolarmente, ele disse que ia registrar “o outro lado”. Eu reagi: como assim o outro lado? Não existem dois lados. O fato é um só: a pista não é clandestina e extravio de remédios não étráfico de drogas.
Ele ouviu e, secamente, respondeu: “Tudo bem. Vou colocar na matéria como o outro lado, como argumento da defesa".
Ou seja, primeiro vinha a “suspeita da CPI”, como fato principal, e a explicação era apenas um detalhe no pé da matéria. Quem é que pode ganhar uma batalha desigual como essa? Simplesmente não pode. Até porque a cobertura de CPIs é feita de Brasília e ninguém sai de lá para averiguar in loco uma “pista clandestina a 600 quilômetros de São Luís”.
Nesse diálogo de surdos, decidimos tirar uma foto da pista num enquadramento que mostrasse a pista do aeroporto de Teresina. As duas estavam situadas a uns três quilômetros de distância. Alugamos um helicóptero. Era possível ver perfeitamente que a pista em questão era até maior e apta para receber aeronaves como Boeings. Passamos a mostrar a foto para os repórteres, assim como o boletim de ocorrência da VigilânciaSanitária que atestava o extravio dos medicamentos.
Com o tempo e as suspeitas crescentes quanto aos algozes parlamentares de credibilidade duvidosa, o tema foi perdendo força. O “traficante” era um empresáriopragmático e, quando percebeu que um canal de televisão queria competir no mercado de bingos eletrônicos, achou que chegara a hora de acabar com o negócio. Fechou o bingo, pagou todos os fornecedores e apostadores e a polêmica desapareceu.
(Curioso registrar que naquele Brasil não tão distante assim recebi meu pagamento à vista. Era como lidava com esse perfil de clientes para evitar calotes. Recebia o equivalente a seis meses de trabalho antecipadamente assim que me incorporava à causa. Cerca de US$ 50 mil,pagos em reais. No dia em que fui receber, fiquei um tanto surpreso: o encarregado de me pagar apareceu com uma caixa enorme lacrada. Dentro, o valor estava dividido em notas de pequeno valor, amassadas, formando um grande volume. Daí me dei conta de que era dinheiro de bingo, com cédulas de um, cinco e dez reais bem amassadas. Parecia dinheiro de igreja. Era dinheiro do povo, arrecadado no Poupa Ganha. Levei a caixa para casa e, no dia seguinte, depositei em minha conta. Emiti a nota e a vida seguiu. Com o passar dos anos, esse país primitivo iria desaparecer do meu dia a dia. À medida que fosse trabalhando para corporações mais sofisticadas, o relacionamento bancário seria todo eletrônico. Ao longo de minha carreira, pude sentir que os avanços em termos de boas práticas bancárias realmente chegavam para ficar. Lembro o caixote de notas com uma certa nostalgia do que era trabalhar na minha nova profissão nos seus primórdios).
O “pedófilo” veio logo depois. Era assim que era retratado Carlos Santiago, paulista, dono da maior rede de combustíveis do estado de São Paulo, a Aster Petróleo. Naquela virada do milênio, a Aster aparecia como um fenômeno que incomodava as cinco grandes multinacionais de combustível que, havia décadas, dominavam o setor no pais. A Aster possuía quase 300 postos no coração estratégico do sistema, a cidade e o interior de São Paulo. Havia crescido graças a um lance ousado do seu criador: ele conseguiu algumas decisões judiciais que dispensavam o pagamento de certos impostos dos combustíveis. Essa vantagem econômica ele usava para lubrificar e expandir rapidamente sua rede.
O cartel das empresas internacionais, espertamente, decidiu lançar uma campanha institucional com publicidade e amplo apoio de veículos de comunicação, alertando para o perigo dos postos que vendiam gasolina adulterada. Era uma campanha de utilidade pública, mas com o propósito econômico de tirar do mercado os postos que se utilizavam dessa artimanha.
Acontece que, no caso da Aster, não havia gasolina adulterada. Ela crescera vendendo bons produtos, turbinada pelas liminares que garantiam a ela margem maior e, portanto, maior capacidade de expansão, sobretudo no território do maior mercado consumidor do país. Então o que fizeram os concorrentes? Descobriram que o dono da Aster estava respondendo por algo ligado à prostituição infantil. Nada tinha a ver com a qualidade da gasolina, mas um “pedófilo” bem que vinha a calhar.
A história era realmente delicada. Certa vez, ele estava no mesmo lugar que uma garota de programa, que aparentava ser maior de idade. Mas a cafetina da moça estava com problemas com polícia e armou-se um flagrante contra Carlos, que foi até preso. Atenção: Carlos foi inocentado ao fim dessa história toda, anos depois, mas, naqueles dias, a chapa dele estava assando.
O caso não era dos mais fáceis. Mas nosso esforço era demonstrar que a gasolina dos postos era de primeira e que eventuais questionamentos sobre o dono da distribuidora em nada prejudicavam os consumidores.
Eu achava o máximo viver essas complicações, confesso.
Logo depois dos postos, surgiu em minha vida um típico empreendedor brasileiro. Seu nome era Paulo Panarello, dono da Panarello, a maior distribuidora de medicamentos do país na época. Sua base de operações era Goiás, estado que havia atraído inúmeras empresas através de incentivos fiscais.
Eis que, de repente, surge uma CPI dos medicamentos e era preciso encontrar um vilão. Como os laboratórios farmacêuticos eram entidades internacionais, desde logo o governo decidiu que eles não poderiam ser molestados. Para não prejudicar a imagem do país no exterior. Sobrou então para as distribuidoras nacionais, Panarello à frente. Por ser a maior, era o maior alvo. As menores automaticamente se associaram aos deputados, oferecendo inclusive munição para demonizar a distribuidora líder.
Daí a distribuidora, convertida agora em “sonegadora", acabou se tornando o foco de atenção dos investigadores parlamentares. Quanto mais batessem nela, mais faziam o jogo das outras, que queriam se apropriar do espólio que estava em jogo.
Paulo Panarello, um goiano simples, com tino raro para o comércio, abrira a distribuidora na marra. Vivia totalmente dedicado à empresa e à família. Passamos por aquela tempestade, com muita dificuldade. Lembro do jatinho que ele tinha: o carpete tinha uma capa plástica. Um jatinho particular e plástico para proteger o carpete da cabine? Esse era o Paulo.
Ele foi depor na CPI. Não era nenhum tribuno. Falava como caipira e era tímido. A empresa estava tão mobilizada que os funcionários passaram o depoimento todo, transmitido pela TV, rezando, alguns de joelho.
O dono havia contratado um ex-secretário da Receita Federal que produziu bastante conteúdo que inocentava a empresa. O desgaste foi, aos poucos, diminuindo. Essa era uma guerra midiática de guerrilha. A empresa não era tão importante a ponto de ganhar muito destaque negativo,mas qualquer arranhãozinhodoía pra burro.
Fizemos algumas alianças, naquele momento, com veículos de comunicação. Fizemos campanhas institucionais, propaganda. E, de vez em quando, uma matéria boa aqui ou ali começou a sair. Era o suficiente.
No auge da CPI, fizemos road shows em redações. O âncora Boris Casoy nos recebeu com grande gentileza e generosidade.
Anos depois, Panarello vendeu a empresa para uma multinacional. De hábitos simples, não ficou muito confortável com a fortuna. Gostava mesmo era de circular freneticamente pelas filiais, rodar o país em seu jatinho de carpete plastificado, negociar, comprar equipamentos. Com a aposentadoria milionária que conquistou, foi entrando em depressão. Até que um dia se suicidou de madrugada, jogando-se da varanda de seu apartamento de altíssimo padrão, em Goiânia.
Vivi muitos dramas de perto.
Eu os chamava de “cases”, até um deles acontecer comigo. Passei a ver que aquilo era vida, a minha e a dos outros. Seja como for, essas experiências ajudaram a definir meu modelo de atendimento. E ainda tinha muita coisa para acontecer.
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