CONSULTOR DE CRISES?
Eu
não sei explicar exatamente como surgiu esse meio de ganhar a vida ao
longo de quase 20 anos. Fui aprendendo meio que na pancada o que eu iria
fazer.
Retrospectivamente, achava que acertei sem querer quando
defini um foco bem especifico para o que pretendia. Estava jovem, com
34 anos, e, sem qualquer planejamento, decidi que iria atuar como uma
espécie muito especializada de assessor de imprensa: só iria atuar nos
momentos dramáticos de meus clientes.
Enquanto tudo estivesse
bem, eu não seria necessário. O telefone não iria tocar. Só seria
acionado quando uma confusão de alto teor explosivo acontecesse. Assim,
tornei-me uma espécie de motorista do Samu da reputação dos outros,
aquela ambulância para os casos de emergência. Minha função seria correr
muito e com a sirene ligada, recolher o paciente espatifado no chão e
levá-lo às pressas para o pronto-socorro. Dali em diante, não era mais
comigo. Trabalhava só nos escândalos. O antes e o depois ficariam para
outros profissionais.
Era realmente muito estranha essa
atividade. Era mais estranho ainda imaginar que havia mercado para isso.
Acho que essa “profissão” era muito reveladora da realidade do nosso
tempo: de repente, um sujeito conseguia viver única e exclusivamente de
oferecer aconselhamento para pessoas cuja reputação estava sendo
incinerada publicamente. Não sei se 500 anos antes isso teria sido
possível ou se 500 anos depois será necessário.
Era por isso que
achava essa profissão esquisita um sintoma de uma fase da História.
Houve um tempo -- o nosso -- em que empresas e líderes contratavam
pessoas, como eu, apenas para lidar melhor com seus perrengues.
(Nos
tempos das carruagens reais, lá pelo século19, devia haver alguns caras
que sabiam tudo sobre o que um veículo como aquele deveria ter para
transportar um monarca. Talvez eles atendessem encomendas de diversos
reinos. Mil anos antes das carruagens, esse “negócio” não existia porque
elas não existiam. Hoje, esse negócionão existe porque reis não andam
mais com veículos movidos a cavalo. Então, talvez isso aconteça com a
profissão em que atuei. Há precedentes).
Ao longo dos anos, fui
cruzando com todo tipo de encrenca. Achava realmente fascinante ter
acesso àquelas pessoas alvejadas. Era como um veterinário que pudesse ir
à jaula do leão dopado e olhar suas presas bem de perto. Podia ver o
leão frágil, caído, fraco. Podia abrir a boca dele e tocar na sua
mandíbula. Eu nunca convivi com os leões fortes. Apenas com os abatidos
com tiro, e tiro pesado, capaz de derrubar leões.
Nessas horas,
não fazia juízos morais. Atraía-me a curiosidade. Até porque, na maioria
dos casos, eu não era contratado ou não cobrava. Como vocêjá sabe a
esta altura, sempre tive poucos clientes e desses obtive uma remuneração
bem, bem bacana. Tão bacana que podia me dar ao luxo de “praticar” o
quanto quisesse com outros, de graça, para aprender com eles e utilizar
esse conhecimento acumulado com os meus clientes efetivos.
Por
isso sempre fiz um paralelo com a medicina forense, só que aplicada à
comunicação: aprendia com os cadáveres ou sobreviventes dilacerados que
me procuravam. Tinha a oportunidade de dissecá-los, de ver as suas
feridas, tumores e entranhas, podia olhar de perto o “inimigo
públiconúmero1” da ocasião. E podia aplicar depois tudo o que observei
em meus próprios pacientes, na mesa de cirurgia, tentando salvá-los.
Como você já viu, adorava metáforas. Mas as comparações servem para
aproximá-lo desse mundo estranho que habitei profissionalmente.
Comunicação
de crise não é nenhuma invenção minha, é claro. Isso já existia nos
Estados Unidos há muito tempo. Basicamente, da mesma forma que uma
planta industrial é preparada para a hipótese de explosão (faz-se tudo
para que isso nunca aconteça), por extensão os planos de contingência
foram transpostos para o ambiente das relações públicas. A palavra-chave
éprevenção, e a premissa éque se pode planejar, antes, e prever ações e
reações que são inevitáveis durante uma crise. Li muitos livros sobre o
tema. Talvez a novidade, no meu caso, tenha sido “tropicalizar” esses
conceitos e focar o atendimento de crises, e apenas delas, no contexto
dos escândalos brasileiros.
Prevenção por quê? Porque somos muito
mais criativos para acertar do que para errar. Desde a copa das
árvores, inventamos milhões, bilhões de coisas boas. Mas, desde então,
também erramos quase sempre os mesmos erros.
São sete -- e apenas
sete -- os pecados capitais. Não fomos ainda capazes de inventar o
oitavo, embora já tenhamos chegado à Lua, criado a internet e construído
monumentais cidades ao redor da Terra. Porque erramos do mesmo jeito,
quase sempre, devemos prestar bastante atenção nos nossos erros. Nunca
formos muito criativos no ato de pecar.
Comecei em grande estilo.
Meu primeiro cliente foi o financista Daniel Dantas. Eram os idos de
1999 e o dono do Grupo Opportunity ainda não tinha enfrentado tantas
polêmicas naquela época. Acabaria até sendo preso anos depois em meio à
operação Satiagraha. Um choque na época, mas já não estava mais com ele.
O tempo passou e ele conseguiu reverter o processo e obter vitorias
notáveis no campo judicial. O Daniel com que trabalhei ainda não era um
personagem polêmico,mas já iniciava sua trajetória de embates
empresariais como um dos capitães do processo de privatização posto em
prática pelo governo de então.
Comecei com um fee mensal robusto
para os meus padrões, sobretudo na época: US$ 15 mil. Cheguei a Daniel
graças à indicação de um amigo comum, empresário de primeira linha
também. Basicamente, nesse período, o consultor de crises ainda não
havia nascido. Tinha, é claro, um ótimo relacionamento com a imprensa,
pois acabara de sair de lá e meus contemporâneos é que estavam em várias
posições de destaque.
Daniel era realmente muito impressionante,
um sujeito simpático e sedutor, sobretudo quando queria. Tinha
encontros regulares com ele. Participei de diversas conversas dele com
jornalistas. Era interessante, agradável, sólido. Enfim, matador. Com o
passar do tempo, o grupo foi entrando em embates naturais de uma
corporação com crescentes interesses conflitantes. Passei a ser mais
demandado para esse combate de noticiário: influenciar a cobertura
jornalística, tentar fazer com que nossa versão prevalecesse sobre a do
adversário e, de vez em quando, claro, agir na ofensiva e buscar espaço
para desgastar as teses de nossos concorrentes. É do jogo e sempre será.
Com
o passar do tempo, porém, fui me sentindo deslocado (lembre-se de que
eu não estava planejando nada. Estava apenas entregue a esse jorro
aleatório que chamamos vida). Me incomodava um pouco o crescente volume
de conflitos -- de mídia -- que tinha de administrar. Ao mesmo tempo, o
fee era bom…
Hesitei durante uns dias e dei um outro salto no
escuro. Fui ao Daniel e me lembro de formular a ele, pela primeira vez,
sem querer, coisa do momento, um conceito que iria me guiar por todos os
anos seguintes, até hoje:
- Eu não sou pistoleiro. Eu sou
guarda-costas. Eu morro por você, mas eu não mato por você. Posso até
trocar tiros, mas para nos defender. Não existem muitos bilionários no
Brasil. Se eu apenas atirar contra eles, eu vou estar matando mercado. E
do ponto de vista econômico, a longo prazo, não é o melhor para mim.
Sou
muito grato a Daniel primeiro pela oportunidade e, acima de tudo, por
ter-me ajudado a entender o que eu mesmo nem sabia. Pedi demissão, mas
saí feliz da vida. Meu calendário de confusões estava só começando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário