Linchamentos, uma epidemia de raiva que se espalha na Venezuela


AFP/Arquivos / CARLOS BECERRAManifestantes venezuelanos põe fogo em suposto ladrão em Caracas


"Queimem-no!", "Maldito!", grita a multidão descontrolada enquanto chuta no chão um suposto assaltante. Os linchamentos se multiplicam na Venezuela, segundo especialistas, com explosões de ira e frustração.
Desta vez, um homem de cerca de 35 anos, que supostamente tentou roubar uma mulher com uma pistola em um concorrido setor de Caracas, foi pego por pedestres.
Em pouco tempo estava nu e quase inconsciente na calçada, mas os chutes na cabeça e no rosto dados por 20 pessoas não paravam, observou uma equipe da AFP.
Pelo contrário, um pequeno movimento avivou a fúria sem que um grupo de policiais - que chegou 10 minutos depois da captura - pudesse impedir. Impotente, uma mulher tentava conter a multidão.
"Te salvaram de te queimarmos", vociferou um homem enquanto o suspeito era levado arrastado e algemado até uma patrulha em meio a gritos de satisfação de seus agressores.
De janeiro a maio, 60 pessoas morreram linchadas e outras 36 sobreviveram a esses ataques; em 2016 houve 126 mortos contra 20 em 2015, de acordo com o Observatório Venezuelano de Conflito Social (OVCS), que adverte para uma "subnotificação muito grande".
"Nos linchamentos, os cidadãos canalizam a raiva, o descontentamento diante de um Estado que não garante os seus direitos. Acham que estão fazendo justiça e chegam a matar", disse à AFP o coordenador do OVCS, Marcos Ponce.
- Do medo à ira -
Por trás está a impunidade. Segundo o criminologista Fermín Mármol, apenas seis em cada 100 crimes recebem punição na Venezuela.
Um déficit alarmante em um dos países mais violentos, com uma taxa de homicídios de 70,1 a cada 100.000 habitantes em 2016 - nove vezes a média mundial -, de acordo com a Procuradoria.
"As pessoas não sentem que o Estado as proteja, assim optam por se defender, transformam o medo em ira", assinalou à AFP Freddy Crespo, professor de Criminologia na Universidade dos Andes.
E a cada vez os linchamentos se tornam mais cruéis. Em abril, um homem foi preso em chamas em Valencia; em maio, um conhecido ladrão foi retirado de sua casa por uma multidão que cortou três dedos de uma de suas mãos e o assassinou, segundo o monitoramento do OVCS.
Em janeiro, outro homem, surpreendido quando supostamente assaltava uma casa em Barrancas del Orinoco, foi morto e pendurado em uma árvore com uma placa que dizia "não queremos mais roubos".
"O objetivo é matar antes da polícia chegar", comenta Ponce. Queimar também tem uma carga simbólica: o desaparecimento.
Neste ardor morrem os inocentes. Em março, a justiça condenou um homem a seis anos e oito meses de prisão por cumplicidade no assassinato de Roberto Fuentes, linchado e queimado quando ajudava a vítima de um roubo e que foi acusado de ser o ladrão.
Como um reflexo do desarranjo social, os especialistas acreditam que os linchamentos também têm como ingrediente a grave crise econômica vivida pela Venezuela desde 2014.
"Os outros problemas pesam muito", afirma Crespo, que observa que no país se conjugam a "frustração social" e a "falta de confiança nas instituições".
- Rechaço à barbárie -
A justiça com as próprias mãos tem alta aprovação social, acrescenta o professor, que vê uma atitude passiva das autoridades para evitar.
Dámaso Velázquez participou de uma surra, segundo disse, movido pelo "ódio" a um assaltante, e não se arrepende.
"Não me deu pena porque o vi roubando [...], e o que lhe aconteceu está bem. O governo o prende e solta de novo", justificou à AFP.
O fenômeno ganhou tom político depois que um jovem foi esfaqueado e queimado durante um protesto opositor em 20 de maio, em Caracas.
O presidente Nicolás Maduro disse que Orlando Figuera, de 22 anos e que morreu em 4 de junho, foi vítima de "crime de ódio" depois de ser acusado entre a multidão de ser um ladrão ou um chavista infiltrado.
Maduro chegou a apresentar um vídeo do ataque.
Durante os protestos contra o governo, iniciados em abril e que deixam 70 mortos, manifestantes têm espancado supostos batedores de carteira.
Mas o apoio a estas práticas também gera rechaço do povo.
"Tampouco é justo que se você rouba, eu venha e te mate, te queime ou te machuque, ou me tornarei alguém mais bárbaro do que você foi", reflete María Hernández, vizinha de um setor onde houve vários casos como estes.


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