Se atiram em Lula, então eu estou ao lado de Lula
No final de 1999 eu ainda morava na minha cidade natal – São Miguel do Oeste, um pequeno centro urbano em uma região rural no interior de Santa Catarina – e tinha uma preocupação e um desejo. Pela necessidade de economizar espaço de memória em computadores pré-históricos onde cada byte contava, programadores haviam escondido em linhas de código o que poderia ter sido uma catástrofe de proporções planetárias: na virada do ano, quando o meu velho PC 486 precisasse atualizar a data para o ano 2000, ele poderia, com boa possibilidade, morrer.Eu estava com muito medo do bug do milênio. Imagine perder seu computador sem ter grana para comprar outro e deixar de usar o MIRC ou o ICQ ou jamais poder ler notícias em inglês ou encontrar piadas absurdas no faroeste dos antigos chats da AOL. Aquilo me tirava o sono. Era a possibilidade real de cortar meu acesso à Internet, espaço que eu frequentava desde meados dos anos 90 e que era, pra mim, o único motivo pelo qual ainda fazia sentido estudar jornalismo em uma universidade privada em vez de gastar todo aquele dinheiro com um carro rebaixado e cervejas, como faziam os meus amigos.
Felizmente, o bug do milênio foi um flop tão grande quanto a crença de que o mundo acabaria na virada do ano 999 para o ano 1000. Então pude me concentrar no meu maior desejo: votar no Lula.
Não lembro de ter ido às urnas na eleição de 1998, a primeira em que pude legalmente votar – eu deveria estar ouvindo Sepultura ou fazendo uma tatuagem. Mas, no começo dos anos 2000, o Brasil estava um caos: FHC, política econômica desastrosa, crash do real em relação ao dólar… e lembro que em algum momento eu comecei a me importar com aquilo tudo.
Meu pai até hoje lembra que “nunca ganhamos tanto dinheiro quanto naquela época”, quando o dólar a 1 por 1 em relação ao real nos permitia fazer negócios com a Argentina que ficava a poucos quilômetros da nossa casa. Depois, muita gente perdeu quase tudo e o número de migueloestinos pobres aumentou a olhos vistos. Lula era um dos maiores críticos ao modelo da época, o neoliberalismo promovido pelo FMI. O tom de Lula e suas palavras virulentas contra os poderosos eram música para ouvidos anti-establishment como os meus.
Daquele ano em diante eu votei no Lula, saí com minha bandeira do PT pelas ruas de Porto Alegre – onde fui estudar jornalismo – e a pendurei na janela do meu minúsculo apartamento no bairro mais “de esquerda” da cidade. E então minha história se repetiu como farsa: eu me decepcionei com o PT, odiei Lula e o partido por terem me traído, critiquei ambos em meus blogs e entre amigos e posso dizer que jamais os perdoei. Poucas vezes, nos últimos anos, eu concordei com as palavras de Lula em comícios e entrevistas. Eu continuei de esquerda e liberal, quem mudou foi Lula, o PT e a candidata escolhida por ele, Dilma, com seus conchavos, com o encarceramento em massa, com sua lei anti-terrorismo, com Belo Monte, com sua falta de coragem.
Nesta semana, Lula esteve em São Miguel do Oeste, vindo do Sul, refazendo um traçado muito parecido com o da Coluna Prestes (a coluna efetivamente passou em Descanso, que fica a 20 minutos de São Miguel, cujo nome se deve justamente por ter sido lá um dos locais de parada dos revolucionários). Eu tuitei vídeos enviados a mim que mostram aquele Lula do qual discordo, pedindo para que a polícia invada um apartamento para “dar um corretivo” em um cidadão que lhe atirava ovos.
Eu expliquei a amigos que jamais ouviram falar em São Miguel que a cidade é hoje ainda muito conservadora – um micro-cosmos que explica o grande oeste do Brasil, o mesmo oeste que vem conquistando as metrópoles mais próximas ao litoral com sua música sertaneja, com seu sotaque, com seus hábitos exagerados de novo rico, tudo isso a reboque de seu enorme PIB agrícola. Expliquei que esse imenso oeste é guiado intelectualmente por uma burguesia urbana de classe média, maçônica, branca, formada por comerciários, industriários e profissionais liberais que, em geral, odeiam negros, gays, pobres. E disse: “Eu conheço pessoalmente 10 pessoas que dariam um tiro em Lula em pleno palanque”. Eu tuitei sobre isso e fiquei pensando: “Essa turnê só pode ser provocação”.
“Sim, é exatamente para isso”, me respondeu por DM no Twitter um amigo muito próximo à organização da caravana. “Em um determinado momento, algumas pessoas se reuniram para discutir se valia a pena continuar. E Lula deixou claro que o objetivo era continuar, porque se a esquerda tem medo, era melhor deixar a esquerda morrer.” Depois ele mandou outra DM: “Eu conversei com algumas pessoas nesse final de semana que deixaram claro que o objetivo é o desafio.”
E hoje deram tiros em um dos ônibus de Lula. Não em São Miguel, mas na região – que tem o mesmo ethos de gente esquentada e armada e que, sobretudo nos últimos anos, desenvolveu um ódio ao PT e a Lula que parecem insuperáveis. Esse episódio não pode, no entanto, ser subvertido para culpar a vítima. Não pode servir de palanque a declarações como a que Geraldo Alckmin deu, dizendo que o PT colheu o que plantou. Se a caravana foi concebida como uma provocação, pouco importa. No momento em que a comitiva de um ex-presidente da República sofre um atentado à bala, precisamos nos posicionar contra isso, sem “mas”, sem “no entanto”, sem comparações com outros episódios para amenizar o tom, sem covardia. Eu nunca mais votei em Lula depois de 2002, eu discordo de quase tudo o que ele diz. Mas eu estou ao lado de Lula quando sinto o cheiro de pólvora vindo do lado dos boçais. É obrigação de todos os que acham que esse país ainda vale à pena.
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