Quase nada se sabe sobre as origens do satanismo nas prisões brasileiras. Mas houve ao menos uma facção criminosa que, durante décadas, fez deste culto um modo de dominação e intimidação – mais adiante usando de seus convertidos à Satã no enfrentamento ao Primeiro Comando da Capital em seus primeiros anos de expansão.
Ao longo de 2017, The Intercept Brasil manteve contato com Diorgeres de Assis Victorio, um agente penitenciário e observador atento da Seita Satânica, uma das mais antigas e desconhecidas facções criminosas do país.
Victorio conheceu os rituais do grupo e suas lideranças durante os mais de 20 anos de trabalho dentro das cadeias. Foi testemunha ocular – e vítima – do conflito que resultou na hegemonia do PCC e na queda da Seita Satânica e de outras facções que fizeram oposição a ele entre os anos 90 e início dos anos 2000.
A história, transcrita em primeira pessoa na voz de Victorio, foi contada a mim.

Llembro do meu primeiro contato com a Seita Satânica. Eu estava nas minhas primeiras semanas como agente penitenciário, e aquele grupo de detentos já chamava a minha atenção. Então, certa manhã, fui até eles e disse ‘Bom dia’ e um deles logo me respondeu: ‘Bom dia não, mestrão, é mau dia…Tenha um mau dia’.
Foi assim que comecei a aprender como funcionava com o pessoal da Seita. No momento de se despedir, também não era ‘Que Deus te acompanhe’, era ‘Que o demônio te acompanhe’. Não era ‘Tudo de bom pro senhor’, e sim ‘Tudo de ruim pro senhor’. Como se fosse tudo ao contrário, mesmo. O bem virava o mal, e o mal virava o bem. Conforme fui assimilando as coisas, eu fui entrando no jogo. Eu queria entender aqueles caras. Afinal, eles estavam sob a custódia do Estado e eu era responsável por eles.
Eu tinha 23 anos de idade quando passei no concurso para agente penitenciário. Hoje, estou com 46. As pessoas temem falar sobre a SS e o pouco que se sabe sobre os rituais e a rotina diária deles. O que tenho para contar é aquilo que testemunhei e as informações a que tive acesso nas rodas do sistema penitenciário.
Embora eu nunca tenha presenciado os rituais da Seita e não saiba de ninguém que o tenha, eu convivia com suas consequências. Isso porque já levei várias vezes os membros da Seita Satânica para a enfermaria por conta daqueles rituais.
Eu havia acabado de liberar as celas de manhã quando descobri o que eles faziam. Como de costume, eu estava de óculos escuros. Assim, podia examinar discretamente os rostos, os gestos e a movimentação dos detentos ao meu redor. Foi quando um deles se aproximou de mim mostrando a palma da mão com uma queimadura grande e recente, pedindo para que eu o levasse para fazer um curativo. Perguntei o que havia acontecido, e ele me disse que Lúcifer tinha aceitado a oferenda e que eles queimavam as mãos porque o cheiro da carne no fogo é o elixir de Lúcifer.
Horas mais tarde, eu e outros agentes penitenciários decidimos fazer uma revista na cela do pessoal da Seita. Chegando lá, afastamos todos e deixamos apenas um deles para acompanhar o procedimento. Percebi que os outros agentes não gostavam de se envolver com ‘os caras do demônio’. Alguns ficavam até com receio de pegar um feitiço e tocar nos objetos deles. Aos poucos, meio que me tornei o único encarregado.
“Perguntei o que havia acontecido, e ele me disse que Lúcifer tinha aceitado a oferenda.”
Quando entrei na cela, o mais marcante era o cheiro: um cheiro de podridão. Nas paredes havia símbolos de estrelas de cinco pontas e cruzes invertidas, tridentes e escrituras em uma língua que não pude reconhecer. Também vi repetições do número 666 e desenhos de Baphomet e do olho de Lúcifer. Havia cachimbos, charutos, muitas velas e as roupas pretas que eles usavam todo dia e que hoje já não são permitidas nas cadeias. Então, percebi que aquele cheiro forte vinha de baixo da cama, onde encontrei vasilhames com sangue velho, já coagulado, que eles guardavam para os rituais. De onde vinha aquele sangue? Eles nunca revelaram e eu também nunca soube dizer.
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Ilustração de livro de Theodor Gsell-Feels publicado em 1881
ilustração: British Library
Quem me ensinou muito sobre a SS foi um detento chamado Benedito Honorato, já morto. Ele era branco, magro e tinha os olhos azuis. Não era um preso fechado desses que não falam nada… era bom de papo. A gente conversava bastante, pois ele constantemente me pedia para levá-lo até a enfermaria. E, como eu fazia o meu trabalho, que era zelar pela saúde dele, acho que o Honorato pegou certa confiança em mim. Mas conversávamos apenas na enfermaria, longe dos outros detentos; do contrário, ele poderia ter sérios problemas.
Certa vez,  eu havia comentado com o Honorato que estava lendo o livro “Alquimia, Satanismo e Cagliostro”, que é um livro sagrado para a Seita. Ele sabia do meu interesse em entender a SS. Acho que foi por isso que, numa tarde na enfermaria, ele me deu em segredo um bilhete e disse para que eu lesse depois, quando estivesse sozinho. No bilhete estava escrito o seguinte: 1) Que a verdade justiça infernal reine em nossos corações. 2)  Porque, na verdade, a justiça infernal é inviolável em toda a superfície do universo. 3) Nas profundezas do fogo, nas profundezas do inferno, em toda a superfície da terra, nas profundezas do mar e no espaço infinito, sempre para a glória infernal.
Era isso. O Honorato havia me dado uma cópia do estatuto que dita o estilo de vida dos membros da Seita Satânica.
Ao longo da sua história, a Seita Satânica já teve diversos líderes, entre eles o próprio Honorato. Mas o homem mais importante na trajetória da SS foi um sujeito chamado Idelfonso José de Souza, também conhecido entre o pessoal da Seita como “o pai fundador”.
Eu e o Idelfonso entramos no sistema carcerário no mesmo ano, em 1994. Eu conheci pessoalmente o Idelfonso. Ele, assim como qualquer líder de facção, era um cara de poucas palavras. Falava baixo, observava muito. Não era um cara forte, mas tinha conhecimentos de artes marciais e parecia bastante inteligente. Nunca conversei com ele da mesma maneira como conversava com os outros. E ele nunca me pediu auxílio para um curativo, não sei se porque não se queimava ou porque não se importava com as queimaduras.
Mas algo me deixava curioso: o porquê do Idelfonso José de Souza ser chamado de ‘o pai fundador’ da SS, sendo que ele fora preso pela primeira vez nos anos 90. O satanismo é muito antigo no mundo do crime, não só no Brasil. Os guardas mais experientes me diziam que era impossível saber quando tudo isso começou. Mas sabemos que ele já existia na década de 70 no Carandiru, por isso é considerada a facção criminosa mais antiga ainda em atividade no Brasil.
Depois de estudar o assunto, concluí que, antes do Idelfonso, o que havia era detentos que praticavam o satanismo de maneira esparsa e em diversos presídios. Foi se aproveitando dessa situação que o Idelfonso resolveu unir nos moldes de uma facção criminosa unificada todos aqueles homens que tinham apenas uma religião em comum. Para isso, ele precisava dar nome ao grupo, e foi daí que veio o ‘Seita Satânica’.
O Idelfonso tinha sido preso por matar um conhecido. Durante o cárcere, ele passou por muitos presídios e praticou diversas faltas. Depois ele progrediu para o semiaberto e fez a primeira saída no Dia dos Pais, em 2009. Ao todo, ele ficou 17 anos preso. A última notícia que tenho do Idelfonso é de setembro de 2010, quando ele foi solto.
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Ilustração: British Library
A Seita Satânica foi, durante um bom tempo, temida entre a população carcerária. Os membros viviam sendo transferidos de unidade, mas nunca estavam sozinhos, sempre encontravam companheiros antigos, realizavam batismos para novos integrantes e logo já estavam intimidando outros presos. Era uma das principais facões a ser combatida.
Via de regra, eles conviviam em harmonia com as outras facções, mas também disputavam territórios. Quando o PCC surgiu, a Seita Satânica e as outras facções que dominavam certas áreas tentaram barrar a expansão do grupo. Houve um conflito generalizado. O Carandiru foi o principal campo de guerra.
O Primeiro Estatuto do PCC diz que a facção nasceu em 1993, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, em consequência do massacre do Carandiru. Em 1994, quando eu era um novato, os presos falavam comigo sobre um tal “Partido do Crime”. Eu falava “tá bom”, fingindo que estava entendendo, pois não é bom demonstrar dúvida perto dos detentos.
Só depois, eu e o restante dos agentes fomos descobrir que o tal partido era o Primeiro Comando da Capital, que alguns também chamavam de “Sindicato do Crime”. Para nós, os agentes penitenciários, era evidente a força que o grupo estava ganhando, mas, durante muito tempo, o governo negou a sua existência.
Antes, o poder era mais dividido entre as diversas facções. Uma tinha mais influência em determinado presídio, outra, em outro. Ao longo dos anos 90, conforme o PCC foi se espalhando, ele foi tomando o controle. Isso aconteceu com a ajuda do Estado, que atendia às reivindicações dos rebelados que pediam para serem transferidos para certas unidades onde eles estavam perdendo território ou ainda não haviam sido dominadas por eles.
Foi nesse caldeirão que, no início dos anos 2000, o conflito explodiu: ou os membros de facções rivais do PCC eram mortos ou aceitavam que o PCC agora mandava no lugar. Foi o que aconteceu com a Seita Satânica, o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade, o Comando Democrático da Liberdade e todas as outras facções espalhadas pelo estado de São Paulo.
O conflito de poder deixou muitos mortos no Carandiru, que era um lugar crucial para qualquer grupo que desejava influência, uma cadeia colossal onde rolava de tudo.
Para você ter uma noção, em uma semana três importantes líderes da Seita Satânica foram assassinados no Carandiru. Começou no dia 13 de fevereiro de 2001, quando um preso de altíssima periculosidade da SS, o Nilson César Camargo, também conhecido como Caveira, foi morto por outro preso que atendia às ordens do PCC. Foi uma retaliação. No histórico prisional do Caveira diz que antes ele havia participado do assassinato de dois detentos, um atingido com 42 dois golpes de estilete e outro com 52.
Ou os membros de facções rivais do PCC eram mortos ou aceitavam que o PCC agora mandava no lugar. Foi o que aconteceu com a Seita Satânica.
No dia seguinte, mataram outro membro da SS, o José Eduardo Assaf, que sofreu varias estocadas na frente, nas costas e no pescoço por um homem chamado Paulo Alfredo Nunes, o Magrão. E, cinco dias depois, quem morreu foi o Benedito Honorato, aquele que me ensinou muito sobre a Seita Satânica e que havia sido transferido para o Carandiru. Ele foi estrangulado.
É importante notar que nos inquéritos daquelas três mortes há um nome em comum: o do Marcos Williams Herbas Camacho, o Marcola, que depois se tornaria o o líder mais notório do PCC.
Na época, o Idelfonso, pai fundador da Seita Satânica, se encontrava em uma unidade de Sorocaba, e logo foi transferido para Franco da Rocha, onde a Seita Satânica estava em maior número e tinha mais poder entre a população carcerária.
Com a SS acuada, o PCC venceu. Assim como os outros grupos, eles aceitaram a condição de inferioridade para que não fossem extintos.
Poucos dias depois da morte daqueles três membros da Seita no Carandiru, e depois de tantos outros conflitos em outras cadeias, teve uma megarrebelião. O PCC parou 27 unidades prisionais do estado de São Paulo, mobilizou uns 25 mil detentos. Mesmo que a megarrebelião tenha deixado uns 16 mortos, o objetivo maior do PCC era mostrar o seu poder, aparecer pela primeira vez em todos os meios de comunicação do Brasil e mostrar que ele existia. Foi algo grande. Por pouco não entrei na contagem do número de mortos.
Antes da megarrebelião, o PCC já tinha destruído inteirinho o lugar onde ele nasceu, a Casa de Custódia de Taubaté. Mataram um monte de gente lá e, depois, esse pessoal todo foi transferido para várias cadeias, que era exatamente o que eles queriam. Todos os agentes penitenciários e diretores de presídios estavam preocupados com isso. O comando se espalhava.
Então, um grupo de 20 integrantes do PCC veio parar no presídio onde eu estava. Logo no primeiro dia, mataram um inimigo enfiando uma caneta no ouvido dele. Eu fui conversar com aqueles caras do PCC, perguntei se eles vinham pra destruir e matar mais gente ou se iriam deixar eu e os outros funcionários mantermos o lugar em ordem. Eles disseram ‘aconteceu, o senhor sabe como é, mas agora vamos ficar pianinho’.
Realmente, eu sabia como era… aquilo era sinal de que a coisa estava esquentando. Nos dias que se seguiram, a cadeia ficou silenciosa e, é como o Drauzio Varella escreveu no livro Carandiru: quando a cadeia está silenciosa, é porque alguma coisa vai acontecer.
A rebelião aconteceu no domingo, quando as famílias esperavam o horário de visita do lado de fora. O dia de visita é o momento mais sagrado para os detentos. É uma espécie de trégua, quando ao menos numa tarde da semana eles fazem a paz prevalecer para receber os familiares. A única vez que havia acontecido uma rebelião em dia de visita tinha sido em 1995, e achávamos que isso nunca mais iria acontecer. Por isso, fomos pegos de surpresa.
Não queria ver o resto dos meus colegas morrerem na minha frente.
Os agentes penitenciários andam sempre em duplas. Mas naquele dia eu estava sozinho, distante das celas, fazendo a guarda de um dos raios da prisão enquanto o meu colega de turno almoçava. De repente, aparece um preso na minha frente, me rende e me leva pra cela do Castigo, onde ficam os presos indisciplinados. No caminho, vi que eles já estavam por todo lugar e haviam tomado o presídio.
Quando entrei fui derrubado de barriga pra baixo ao lado dos outros agentes e funcionários que também haviam sido rendidos. Eu achei, na verdade tive certeza, que iriam nos matar ali mesmo. Pensei quem seria o primeiro a ser cortado, decapitado e ter as orelhas jogadas para os jacks [gíria para estupradores] comerem à força. Também passou pela minha cabeça os Satanistas negociando com o PCC alguma morte ou sangue para os rituais deles. Pensei em várias maneiras de morrer. Desejei que eu fosse o primeiro. Não queria ver o resto dos meus colegas morrerem na minha frente.
Então um dos detentos que parecia um líder disse que precisava de dois reféns para ir com ele até a muralha do pátio. Era ali, na frente de todo mundo, que eles costumavam matar os reféns. Como na época do Exército eu havia tido aulas de prisioneiro de guerra, com porrada, tapa na cara etc., concluí que poderia estar mais preparado do que os outros para ir, então eu acenei com a cabeça para um colega que achei que tinha mais frieza e nós dois dissemos que iríamos.
‘Aqui é o PCC! Se o Choque entrar a gente mata todo mundo!’
Chegando lá, os caras estavam todos drogados, tomando tudo quanto era tipo de remédio com álcool, maria-louca, cocaína, fumando maconha. Começaram a nos torturar psicologicamente, dizendo que ali era o PCC, que eles mandavam em São Paulo e que estavam só esperando para nos matar. Isso era sempre dito aos delegados, juízes, promotores e gerenciadores de crises que negociavam a dialogavam com os assassinos do PCC.
Em seguida, tivemos nossas mãos amarradas umas às outras, um de costas para o outro, e fomos envolvidos por dois colchões, com as nossas cabeças de fora. Jogaram álcool em nós, pegaram um cilindro de gás industrial e abriram a válvula na nossa cara. Um deles estava com um isqueiro na mão, fazendo ameaças. Naquela hora, já pensava que era melhor morrer do que ter a vida destruída pelo trauma. Em pouco tempo a tensão no meu corpo era tanta que eu já me sentia morto. Era como se eu não estivesse mais ali.
Eu já estava praticamente sem consciência quando um dos rebelados gritou ‘Já era!’ e, em seguida, gritou junto com os demais ‘Aqui é o PCC! Se o Choque entrar a gente mata todo mundo!’. Então, fomos levados de volta pra cela. Chegando lá, eu abracei meu amigo que passou por aquilo comigo. Estávamos arrasados e sem conseguir segurar as lágrimas. Ficamos na cela com os outros reféns até o dia seguinte, sendo ameaçados o tempo todo.
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Ilustração: British Library
O que aconteceu comigo me abalou muito. Naquele dia morreu um Diorgeres e veio outro em seu lugar. A cadeia é uma fábrica de fazer loucos. Só neste ano [2017], num período de alguns meses, sete agentes penitenciários cometeram suicídio. E isso só no estado de São Paulo!
A cadeia vai sugando nossas forças, consumindo a nossa vitalidade. Não é à toa que tanto os presos quanto os funcionários se matam tanto.
É estranho! A cadeia vai sugando nossas forças, consumindo a nossa vitalidade. Não é à toa que tanto os presos quanto os funcionários se matam tanto. Esse é o grande problema, tão ignorado por todos: a despersonalização que o ser humano sofre dentro do sistema prisional. Vi diversos funcionários e presos surtando. Eu, inclusive, já surtei no cárcere e tive que ser internado.
O Estado sempre nega dizendo que está no controle, mas faz tempo que os presos dominaram o sistema penitenciário. Antes, eu falava ‘vou dar um rolê, trocar ideia com os ladrões, falar de futebol, de política, ver se tem alguém fazendo algo errado, fazendo faca, se tão fumando maconha’. Agora não tem mais isso. O carcereiro leva murro na cara, bicuda na canela. Ele quer ficar longe. E se é assim para quem tem o dever de trabalhar, imagina para quem quer estudar in loco o que acontece dentro das prisões? Vivemos nadando contra a corrente.
Sobre a Seita Satânica, hoje, apesar de continuarem presentes em diversos estabelecimentos prisionais, seus membros dedicam-se exclusivamente à sua religião e tornaram-se bastante reclusos.

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